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CULTURA

Usina editorial lança o livro ‘Imagens de Lênin’, de Leon Trótski

No dia do centenário da morte de Lênin, a Usina Editorial anuncia o lançamento de ‘Imagens de Lênin’, de Leon Trótski em homenagem ao líder revolucionário russo. Confira aqui no Esquerda Online apresentação do livro.

Por Henrique Canary

Esta é uma obra íntima. Ela foi escrita (em alguns casos, pronunciada na forma de discurso) ao longo de vários anos e em muitos lugares: no fronte da Guerra Civil, numa sessão do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia, numa estação de trens no meio do Cáucaso, no leito de um sanatório em Kislovodsk. No seu centro está um homem: Vladímir Ilitch Lênin. Porém, como observa o autor já no prefácio da obra, não se trata de uma biografia. Aqui não encontramos uma exposição mecânica de fatos e cronologias estéreis. Muito menos o culto à personalidade que se tornou a ideologia oficial do regime após a morte de Lênin. Trata-se muito mais de lembranças, reflexões, comparações, ensaios e tentativas de caracterização – “materiais para o biógrafo”, como indica o subtítulo da edição de 1924. Os textos aqui reunidos refletem o impacto das reviravoltas ocorridas na vida de Lênin na consciência do próprio Trótski: o atentado de 1918, o cinquentenário de 1920, a doença de 1923 e a morte de 1924. Diante de cada um desses episódios, o organizador do Exército Vermelho se põe a refletir, resgatar da memória velhos diálogos, olhares, tons de voz e gestos, recuperar as nuances da personalidade do grande arquiteto da revolução, mas também do mentor e camarada. O resultado é um retrato vivo, um Lênin humano, militante, sensível, bem-humorado – às vezes até brincalhão – e mortal, tragicamente mortal.

Apoiando-se inteiramente em sua afiada memória política, Trótski traça um detalhado perfil psicológico de Lênin, bem como de outras figuras decisivas do Partido Operário Social-Democrata Russo, principalmente do seu período “iskrista”: Vera Zassúlitch, Iuli Mártov, Gueórgui Plekhánov, Pável Akselród, Nadiéjda Krúpskaia e outros. Mas Trótski não se limita à psicologia, nem mesmo é esse seu principal interesse. Seu objetivo é, antes de tudo, educar o partido. Assim, aos poucos, por meio de episódios aparentemente secundários, desvendam-se para o leitor as complexas interações entre Lênin e sua criatura: o POSDR e sua fração bolchevique. Vladímir Ilitch não é o chefe supremo e inquestionável de uma seita autômata e desprovida de vontade. Sua relação com os quadros dirigentes é de um duelo dialógico, repleto de tensões e lutas: sobre as Teses de Abril, as Jornadas de Julho, o pré-parlamento, a insurreição armada, a coalizão com os partidos socialistas, a dissolução da Assembleia Constituinte, a transferência do governo para Moscou. Isso fala tão bem de Lênin quanto do próprio partido. De Lênin, porque ele viu mais longe e estava certo em cada um desses embates; do partido, porque esse não aceitava, pelo menos naquele momento, nenhum poder absoluto, nenhuma diretriz inquestionável. A autoridade de Vladímir Ilitch era enorme, mas ela se chocava com quadros de altíssimo nível político, forjados não apenas pela época mais revolucionária que a história já conheceu, mas também pela escola de Lênin. Tal era a dialética do embate que se produzia a cada passo na história do partido. Com o tempo, como observou certa vez o historiador francês Pierre Broué, esses quadros aprenderam e até se acostumaram a ceder diante de Lênin, anulando com isso a própria possibilidade de superação do mestre. Mas até aí foi um longo caminho. Lênin foi o primeiro a perceber essa dinâmica e o que mais lutou por construir uma nova direção capaz de enfrentar os desafios históricos impostos pela vitória da revolução na Rússia. Como sabemos hoje, não obteve sucesso.

Ao traçar o retrato multifacetado de Lênin, Trótski descreve uma série de curvas e manobras, que vão constantemente do específico e pessoal ao histórico e universal, e vice-versa. Em seu estilo elegante, caracteriza a relação de Lênin com o povo russo como um todo, sua história e cultura nacional; em um diálogo não explícito com a clássica brochura de Plekhánov, O Papel do Indivíduo na História, analisa a intuição política de Lênin e o peso de sua intervenção no sucesso da insurreição armada de 25 de outubro de 1917; em um dos trechos mais tensos do livro, relembra a importância de Vladímir Ilitch na assinatura da paz de Brest-Litovsk. No outro extremo, se encontra um universo microscópico, mas igualmente fascinante: “a mão plebeia, vigorosa”, “as protuberâncias expostas do crânio”, “um sorriso brincalhão”. Lênin aparece por inteiro, em todas as suas dimensões.

É interessante observar, também, como o próprio Trótski cresce ao longo do livro. Quando chega a Londres, em 1902, é um jovem cheio de personalidade e opiniões próprias, mas sobretudo maravilhado pela possibilidade de trabalhar junto com os veteranos da social-democracia russa, em especial o próprio Lênin, cujas obras e artigos lera durante o desterro siberiano. Quando o autor se reencontra com seu objeto, em 1917, já é, ele próprio, um veterano. Dirigira o soviete de São Petersburgo em 1905, fora exilado pela segunda vez em 1907, trabalhara como correspondente de guerra em 1910, estivera à frente de várias iniciativas políticas e publicísticas, fora internado em um campo de concentração canadense por se opor à guerra. Mas Trótski não aspira a se igualar a Lênin. Reconhece a superioridade desse e imediatamente se localiza junto ao mestre como primeiro discípulo. Primeiro, mas ainda assim – discípulo. Aqui se expressam com toda a força as palavras ditas por Trótski em O Novo Curso sobre sua relação com Vladímir Ilitch: “Eu caminhei em direção a Lênin lutando, mas cheguei a ele de forma completa e total”.

Trótski e Lênin nunca foram amigos pessoais. Sempre se trataram por “vós” e se chamavam por nome e patronímico, essa forma distante de tratamento que causa tanta estranheza aos informais brasileiros, mas da qual os russos não abrem mão. Mas isso não significa que não houvesse afeto entre eles. Na noite de 25 para 26 de outubro de 1917, “a noite que decide”, segundo a clássica expressão utilizada por Trótski em sua autobiografia Minha Vida, descobrimos os dois homens deitados no chão de uma sala vazia e escura do Instituto Smólni, enquanto aguardavam o resultado do assalto ao Palácio de Inverno. A cabeça de Lênin gira, ele se confunde e, por algum motivo, começa a falar com Trótski em alemão. Tu, vós – de que importam os pronomes? Poderia se imaginar proximidade maior do que essa? Os dois revolucionários estavam unidos por laços muito mais poderosos do que os pessoais, que sempre carregam consigo algo de acidental: juntos, estavam fazendo a história!

As lacunas do livro são, até certo ponto, naturais e inevitáveis, e também refletem a vivência do autor. Tendo se afastado de Lênin de 1903 a 1917, Trótski não nos informa nada sobre esse período. É o mais honesto a se fazer, já que, como assinalado anteriormente, não se trata de uma biografia baseada em documentos, mas de lembranças pessoais. Em compensação, o período pós-revolucionário é descrito com riqueza de detalhes. Sabemos, por exemplo, que Lênin, nas reuniões de governo, dava apenas cinco ou dez minutos para os relatores encarregados apresentarem suas questões; depois disso, se realizava um brevíssimo debate e se passava às votações. Não era tempo de discussões; era tempo de decisões. A exuberância da narrativa como que nos transporta em pessoa para o Instituto Smólni, com seus apertados corredores e sua multidão de marinheiros que o dia inteiro levavam bilhetes de Lênin para Trótski, “com duas ou três frases incisivas destacando-se num pequeno pedaço de papel, cada uma em um parágrafo, com as palavras mais importantes sublinhadas por dois ou três traços de caneta”. Em seguida, alguma mágica acontece no texto e nos vemos no Kremlin do início dos anos 1920, essa “enorme esplanada”, na qual o trabalho também era confuso e pesado, mas onde Lênin encontrava tempo até mesmo para pregar uma peça quase infantil em Trótski e “multá-lo” por se atrasar para uma reunião.

Trótski foi um polemista durante toda sua vida e neste livro não deixa de expressar essa sua segunda (talvez primeira?) natureza. No capítulo sobre a entrevista concedida por Lênin ao escritor inglês H. G. Wells, nos mostra como as conclusões deste último sobre o “sonhador do Kremlin” (expressão usada por Wells para definir Lênin) não podiam estar mais erradas. Não somente a caracterização psicológica, mas inclusive a descrição física de Lênin por Wells é destruída até não sobrar pedra sobre pedra, sempre com o sarcasmo e a ironia típicos de Trótski. Quando critica o ensaio de Górki sobre Lênin, Trótski é mais cuidadoso, reconhecendo o valor de certas ideias e passagens, mas não deixa de apontar o que avalia como superficial, idealista e puro mau gosto do aclamado escritor. O texto de Trótski sobre Górki tem, portanto, também o valor de uma crítica literária, e das mais ácidas já produzidas sobre o autor de A Mãe.

Como décimo capítulo do longo ensaio “Ao Redor de Outubro”, incluímos um texto que não está na versão original russa, mas que aparece em algumas edições francesas. Trata-se de uma deliciosa análise de Trótski a respeito de um livrinho com contos, relatos e poesias sobre Lênin produzidos por crianças soviéticas. Essa é, talvez, a parte mais humana e comovente de toda a coletânea. Trótski está verdadeiramente encantado com a profundidade do pensamento infantil a respeito de Lênin. Para ele, as crianças não apenas captaram a essência da personalidade viva de Ilitch (coisa que H. G. Wells e Górki foram incapazes de fazer), mas também expressaram da melhor forma os terríveis sentimentos sobre sua morte.

Trótski se manteve um discípulo fiel de Lênin mesmo depois do falecimento do mestre. Considerava a si mesmo e suas ideias como uma continuação lógica do leninismo, mas jamais sua superação. Fez questão de deixar isso claro inúmeras vezes. A estima que tinha pelo preceptor morto era sincera e ilimitada. Já no terceiro exílio, escreveu ensaios, artigos e iniciou o trabalho sobre uma ambiciosa biografia, que no entanto permaneceu inacabada. Em A História da Revolução Russa, de 1930, diminuiu conscientemente seu próprio papel no levante de outubro de 1917 para destacar a ação das grandes massas, mas demonstrou com detalhes a importância de Lênin em todo o processo. Com sua expulsão da URSS, em 1929, teve início a revisão stalinista da história, que atingiu formas verdadeiramente grotescas nos anos 1930, com as confissões forjadas dos Processos de Moscou, a falsificação de documentos e a adulteração de fotografias. A figura de Trótski foi varrida da memória coletiva russa e também o foram suas relações com Lênin. Velhas desavenças entre os dois, há muito esquecidas por todos – e em primeiro lugar por Trótski –, foram ressuscitadas e impressas aos milhares em jornais, revistas, livros e cartazes. A assim chamada “desestalinização” de Khruschóv não reviu toda a injustiça cometida contra aquele que foi a voz de Outubro, a pluma da revolução, a baioneta da Guerra Civil. Trótski só foi oficialmente reabilitado em 2001, em uma decisão discreta da Procuradoria Geral da Federação Russa. Sua cidadania soviética foi então devolvida e todas as acusações feitas ao longo dos Processos de Moscou reconhecidas como falsificações. Politicamente, claro, as coisas são mais complexas. A figura de Trótski ainda hoje provoca intensos debates na Rússia e seu papel histórico é atacado tanto por ultraconservadores putinistas quanto por stalinistas, o que, aliás, não surpreende ninguém.

Trótski trilhou um longo e tortuoso caminho até chegar a Lênin. Nós, ativistas e militantes socialistas do século 21, temos também uma longa estrada a percorrer rumo ao restabelecimento da verdade histórica. Este livro é um pequeno passo nesse sentido.

Autor: Leon Trótski
Editora: Usina Editorial
256 págs