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MUNDO

O que os israelenses não irão perguntar sobre os palestinos libertados por reféns

A lista de palestinos que devem ser trocados por israelenses deve provocar uma reflexão sobre o papel do encarceramento em massa na ocupação.

Orly Noy, do portal +972Magazine. Tradução de W. Mermelstein, do Esquerda Online.
Jamal Awad/Flash90

A polícia prendeu um jovem palestino durante um protesto contra um canteiro de obras de um novo parque público perto de túmulos muçulmanos, nos arredores da Cidade Velha de Jerusalém, em 29 de outubro de 2021. (Jamal Awad/Flash90)

Hoje cedo, Israel e o Hamas finalizaram os detalhes de um acordo para pausar as hostilidades na Faixa de Gaza, quase sete semanas após o início da guerra. O acordo inclui um cessar-fogo de quatro dias e uma troca de 50 reféns israelenses por 150 “prisioneiros de segurança” palestinos, com a possibilidade de haver novas trocas posteriormente. Esses são termos que o Hamas teria oferecido a  Israel semanas atrás, nas fases iniciais da guerra, mas o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu preferiu realizar um ataque total à Faixa sitiada, matando mais de 14.000 palestinos, antes de considerar um acordo – mesmo em detrimento da segurança e do bem-estar dos reféns israelenses. 

Israel publicou os nomes de 300 prisioneiros palestinos que está considerando libertar como parte do acordo ou após a libertação de mais reféns israelenses, a fim de permitir recursos legais nos tribunais israelenses contra a libertação de indivíduos específicos. Todos os reféns e prisioneiros a serem trocados nesta fase são mulheres e menores de idade. Ainda assim, muitos entre a direita israelense, e talvez no público em geral, acreditam que o governo está fazendo uma concessão significativa ao libertar perigosos “terroristas” para o bem dos poucos reféns.

Lendo a lista de prisioneiros palestinos programados para libertação, a primeira coisa que chama a atenção é a idade deles. A grande maioria deles  – 287 – tem 18 anos ou menos, incluindo cinco a partir de 14 anos, o que levanta a questão: como um garoto de 14 anos se torna um “prisioneiro de segurança”?

Os nomes na lista incluem supostos membros de facções políticas palestinas como Hamas, Fatah, Jihad Islâmica e Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), além de muitos que não são afiliados a nenhum grupo. Nenhum foi condenado por homicídio. Alguns foram condenados por tentativa de homicídio, enquanto a maioria foi acusada de crimes menos significativos, incluindo um grande número que foi preso por atirar pedras. Um deles, um adolescente de 17 anos, está atrás das grades há dois anos por atirar pedras em um veículo da polícia israelense em Jerusalém – a mesma cidade onde colonos judeus podem realizar motins contra palestinos que raramente terminam em investigações, muito menos prisões.

Soldados israelenses prendem um jovem palestino durante confrontos entre jovens palestinos e soldados israelenses na cidade ocupada de Hebron, na Cisjordânia, em 9 de setembro de 2022. (Wisam Hashlamoun/Flash90)

Acima de tudo, a lista é um impressionante testemunho de como a detenção e a prisão são centrais para a ocupação e o controle de Israel sobre os palestinos. De acordo com dados do grupo israelense de direitos humanos HaMoked, em novembro de 2023, Israel mantinha 6.809 “prisioneiros de segurança”. Destes, 2.313 cumprem pena de prisão; 2.321 ainda não foram condenados na Justiça; 2.070 estão detidos administrativamente (presos por tempo indeterminado sem julgamento ou devido processo legal); e 105 são “combatentes ilegais” que foram presos durante os ataques do Hamas em 7 de outubro no sul de Israel.

Quase todos os 300 palestinos que estão sendo considerados para libertação são prisioneiros relativamente novos, detidos nos últimos dois anos. As exceções são 10 mulheres de Jerusalém e da Cisjordânia que estão presas desde 2015-17, a maioria delas acusadas de tentar ou cometer ataques a facadas contra as forças de segurança israelenses – alguns dos quais terminaram sem qualquer ferimento, enquanto outros causaram ferimentos leves a moderados.

Tudo isto, recorde-se, é supervisionado pelo mesmo sistema judicial que, entre inúmeros outros exemplos, decidiu arquivar o processo contra um colono israelense que esfaqueou um jovem palestino até à morte em maio de 2022 porque “não foi possível descartar a versão [do suspeito] de que agiu em legítima defesa”. É o mesmo sistema que, em julho deste ano, absolveu um policial israelense  que matou a tiros Iyad al-Hallaq, um palestino autista, apesar de testemunhos claros e evidências em vídeo provarem que ele estava desarmado e não fez nenhum tipo de ameaça.

Isso se soma ao fato de que os “prisioneiros de segurança” palestinos são julgados em um sistema judicial militar separado que possui uma taxa de condenação entre 95% e 99%. A clemência, aos olhos do regime do apartheid israelense, é um direito reservado apenas aos judeus.

Soldados israelenses prendem um menino palestino enquanto israelenses realizam um tour pela cidade de Hebron, na Cisjordânia, durante o feriado judaico de Sucot, 23 de setembro de 2021. (Wisam Hashlamoun/Flash90)

Enquanto os judeus que se revoltam, atacam e até matam palestinos estão imunes a processos, a lista de prisioneiros nos recorda que os palestinos podem ser presos no atacado, com base apenas na “intenção” de realizar um ato violento. Uma das pessoas da lista, uma mulher de 45 anos de Jerusalém, está presa há mais de dois anos porque “foi apanhada na Cidade Velha com uma faca na mão” e “disse que pretendia realizar um ataque”. Enquanto isso, o ministro da Segurança Nacional de Israel  pede aos judeus que se armem enquanto distribuem armas como doces, e muitos israelenses de direita estão escrevendo inúmeras mensagens, em público e privado, anunciando alegremente sua intenção de “assassinar o maior número possível de árabes”.

Às vezes, a “intenção” nem aparece na lista de acusações. Um jovem de 18 anos de Jerusalém foi “preso junto com outros porque gritou ‘Allahu Akbar'”. Uma jovem de 18 anos da Cisjordânia está presa há meses por “incitação no Instagram”. Entre o público israelense, em contraste, apelos explícitos por genocídio são considerados uma maneira legítima de elevar o moral nacional, enquanto palestinos com cidadania israelense podem ser presos por postar algo tão simples quanto uma foto de shakshuka (1) ao lado da bandeira palestina.

Das acusações listadas, apenas algumas estão relacionadas ao uso de armas e abertura de fogo contra as forças israelenses (e mesmo nesses casos, não houve mortes). A grande maioria dos incidentes envolve atirar pedras ou coquetéis molotov, disparar fogos de artifício e causar “desordem pública”. Valeu a pena deixar reféns, mulheres e crianças israelenses definharem em Gaza por mais algumas semanas para continuar aprisionando um jovem que ousou gritar “Deus é grande?”

Notas

1 Shakshouka é um prato de ovos poché em um tipo de molho de tomate. O molho de tomate tem azeite, pimentão, cebola e alho. Originário do norte da África, foram trazidos pelos judeus que vieram para Israel, principalmente do Marrocos3

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