Pular para o conteúdo
MUNDO

Aonde vão o governo do presidente Boric e o Chile

Raul Devia Ilabaca*, do Chile

Desde a posse de Gabriel Boric Font como Presidente da República, tem sido complexa sua instalação, tanto pela nomeação das pessoas como pela filiação política dos indicados para ocupar os cargos do aparato público, Ministros, Subsecretários, Delegados Presidenciais, Diretorias de Serviços Públicos, Secretários Regionais Ministeriais e Presidentes de Diretorias Corporativas das empresas do Estado.

A razão é que, ao haver um pacto de governo que foi ampliado no segundo turno das eleições para o “Socialismo Democrático”, há dois pactos eleitorais de apoio a esse programa e a distribuição dos cargos foi uma obra de engenharia bastante difícil, tanto que ainda não foram concluídas todas as nomeações dos responsáveis no aparato estatal.

Assim, o Partido Comunista (Apruebo Dignidad) obteve a área social de seu interesse e o Partido Socialista (“Socialismo Democrático”) foi o grande ganhador, obtendo a área econômica e seu principal cargo, o de Ministro da Fazenda, mas também grande influência no Ministério do Interior, por meio do Subsecretário Monsalve e, por último, com as Diretorias das grandes empresas estatais, Codelco (que dirige a mineração do cobre) e o Banco do Estado, entre outras. Dessa forma, os setores provenientes da “Nueva Mayoría”, formada no segundo governo de Michele Bachelet (2010-2014) conseguiram se converter no poder por trás dos simbolismos deste novo grande pacto social, (nova versão dos governos de Frente Popular1, surgidos ao calor das grandes lutas nas ruas e da chamada reação democrática2).

Portanto, as grandes frases grandiloquentes do presidente em sua posse no Palácio La Moneda, sobre transformações profundas em matéria social, reconhecimento de presos políticos, indulto, memória, justiça, reparação e não repetição3 de violações dos direitos humanos por parte da polícia, foram ficando rapidamente pelo caminho nesses primeiros meses de governo. Segue a repressão desatada contra os estudantes e aqueles (as) que se manifestam nas ruas, com o apoio do governo à repressão policial. O diálogo com os mapuches e que não haja mais estado de exceção no Walmapu4 somente ficaram nisso, só em palavras, porque outra vez está militarizada a zona territorial do povo mapuche, sem que se vislumbre uma solução distinta. Ou seja, o estado burguês opressor continua a utilizar seu braço armado, as forças repressivas militarizadas, contra aqueles/as que lutam e, segundo esses jovens governantes, já não haveria presos políticos do estalido e mapuches. Quem exemplifica mais radicalmente essa incoerência política é a porta-voz do governo, Camila Vallejos, militante do Partido Comunista, que agora diz que no Chile não há presos políticos.

Ligado a este processo de rebaixar substancialmente o programa de governo oferecido ao país nas campanhas eleitorais e a difícil instalação do governo, produziu-se, segundo as pesquisas de opinião, uma rápida queda nos percentuais de aprovação do governo Boric e de seus ministros, tendo o Executivo uma difícil relação com o Parlamento.

Este parlamento está composto em suas respectivas Câmaras por 50% de Senadores e Deputados de direita e ultradireita, incluído o Partido Republicano, cujo líder é o ex-candidato presidencial derrotado Kast, e pela socialdemocracia, que detém cerca de 25% dos postos e os setores da Frente Ampla e o do Partido Comunista que detêm os outros 25%. Dessa forma, o governo cedeu no tema da militarização do Walmapu, mantendo os Estados de exceção nessas regiões do Sul. Tentou aprovar leis menos invasivas que este estado excepcional, o que foi rechaçado pela maioria no Parlamento por ambas as Câmaras, segundo o projeto de lei denominado “Proteção de Infraestrutura Crítica”, obrigando o governo, portanto, a abandonar a ideia de fazer alguma concessão mínima aos grupos mais radicalizados do povo mapuche em luta. O que também mostra mais uma vez o caráter implacável da classe dominante contra a luta dos povos originários.

No que toca à economia, o Ministro da Fazenda, Mario Marcel, conseguiu rebaixar ao mínimo as propostas programáticas do Governo, respeitando a regra fiscal de não se endividar em demasia, desacelerando as ajudas econômicas, propondo uma reforma tributária que permita fazer algum tipo de concessões à população para que enfrente a crise inflacionária que se abate sobre o mundo e o Chile em particular, ao ser a economia mais aberta aos efeitos mundiais da crise (e possível próxima recessão) em curso. Conseguiu um pequeno triunfo no Parlamento ao ser aprovado rapidamente um projeto de lei que outorga um “bônus de inverno” pago por uma só vez aos 40% mais vulneráveis do país, com a soma de 120.000 pesos chilenos, que equivalem a 120 dólares. É preciso assinalar que o dólar teve uma semana de alta de aproximadamente 800 pesos a 1.000 pesos e que, junto com isso, houve uma baixa no preço do cobre em nível, que afeta seriamente a economia chilena, que depende em parte importante do preço deste metal. Ou seja, o Chile está sendo golpeado fortemente em sua economia havendo uma inflação galopante e a subida do dólar, que foi detida pela ação do Banco Central de colocar no mercado cambial uma soma importante de dólares para deter sua alta contínua acima dos mil pesos.
Esta situação econômica se reflete na estagnação da renda média dos e das trabalhadoras no Chile, que somente chega a 457.000 pesos chilenos (aproximadamente 457 dólares), perante uma inflação sem controle, combustíveis – gasolina, gás e parafina em alta e um endividamento familiar endêmico por meio de cartões de crédito e até em lojas comerciais e grandes supermercados. Dessa forma, se torna difícil sustentar a economia familiar para levar o alimento à mesa dos lares, sobretudo quando o Ministro da Fazenda negocia a reforma tributária com as grandes empresas e seus donos. Dessa forma, se tona difícil sustentar a economia familiar para levar o alimento à mesa de seus lares, sobretudo quando o Ministro da Fazenda negocia a reforma tributária com as grandes empresas e seus donos. O exemplo mais claro é o que sucedeu com o aumento do royalty mineiro a ser pago pelas empresas, que, em definitiva, está em discussão no Parlamento, com um difícil prognóstico de aprovação.

E, além de todos estes fatos, terminou de ser escrito o texto da nova Constituição que será plebiscitado no próximo 4 de setembro, data emblemática, pois, antes do golpe, neste dia se realizavam as eleições presidenciais e em um 4 de setembro de 1970 foi eleito Salvador Allende Gossens, derrubado pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Trata-se de um ponto de inflexão na história do Chile que, depois do estallido social de outubro de 2019, em novembro desse mesmo ano tenha sido firmado um acordo pela Paz e a Nova Constituição, para levar a mobilização nas ruas para as urnas, por meio da reação democrática, entregando a um processo constituinte a substituição da velha Constituição da ditadura.
Foi determinado no mencionado acordo que esse processo tivesse 3 passos:

– em primeiro lugar, foi realizado um plebiscito de entrada para decidir se deveria ser elaborada uma nova constituição, proposta que acabou obtendo 80% de aprovação, além de se decidir por 75% de votos para que essa tarefa fosse entregue a constituintes eleitos por votação popular;

– A seguir, foram eleitos constituintes em forma paritária entre homens e mulheres, com vagas reservadas para os povos originários, além de listas de independentes. Essas regras mais democráticas permitiram o ingresso por primeira vez na história do Chile de representantes dos povos originários para ser parte da formação de um novo pacto social (Constituição), além de igual número de mulheres e homens, com a participação de movimentos sociais que, mediante as listas de independentes ganharam uma quantidade importante de constituintes.

– O último desses passos definidos no acordo é o plebiscito de saída, que deve se pronunciar para aprovar a nova Constituição ou rechaçá-la, em cujo caso se manteria vigente a constituição da ditadura.

Agora, sem dúvida, a situação está complexa, pois ao rechaço relativo à nova Constituição se somaram forças desde o conservadorismo de extrema-direita ao centro político e todos os que desejam manter os privilégios providos pela ditadura às grandes empresas nacionais e multinacionais e seus administradores, além de setores importantes da velha política dos acordos espúrios e do sistema binominal5, que impedia que o povo pobre pudesse ingressar na institucionalidade do Estado, ainda que fosse para realizar reformas relativamente pequenas. O centro político está sumamente dividido: ainda que os partidos da velha Concertación e da ex Nova Maioria, tenham decidido institucionalmente pela aprovação, fortes lideranças entre elas chamam ao rechaço, como o ex-presidente Eduardo Frei (DC), ou como Ricardo lagos Escobar (PS), que dirige uma carta ao país, criticando a nova Constituição, e que chama à unidade sem se pronunciar formalmente por uma das alternativas. Em sentido contrário, a ex-presidenta Michele Bachelet chama e se pronuncia pela aprovação e essa divisão segue entre Senadores e Deputados, ex-ministros, que se pronunciam contra a nova Constituição e outros que a aprovam, como a coalizão de governo Apruebo dignidad e seus sócios de última hora nas eleições presidenciais, “Socialismo Democrático”, que estão comprometidos com o Apruebo, com qualificações, “Aprovar para reformar”, ou seja, antes de que esta nova Constituição funcione e se veja sua implementação, querem colocar as mãos nela para tranquilizar a burguesia.

Em sua história, o Chile teve várias experiências constitucionais, mas as três mais importantes foram posteriores a fatos violentos, pronunciamentos militares, ou como a última, que foi diretamente um golpe militar (1973) e sua constituição de 1980, todas impostas pela oligarquia e escritas por homens entre quatro paredes. A Nova Constituição que irá ser plebiscitada foi discutida por 155 constituintes, eleitos democraticamente, de forma paritária – 50% mulheres e 50% homens, com vagas reservadas para cada um dos povos originários pré-existentes à formação do estado chileno, além de ter contado com a participação de movimentos sociais por meio de listas de independentes. Deste modo, nela se expressou efetivamente a diversidade dos habitantes do território nacional; por outro lado, as normas aprovadas no plenário contaram com a aprovação dos constituintes, ou seja, pelo menos 103 deles as aprovaram, mas a média de aprovação de todas e cada uma das normas chega a 116 constituintes, inédito na história de nosso país, que, por primeira vez, desfruta da oportunidade de ter uma constituição democrática e não imposta a sangue e fogo como as anteriores.

Claramente, este processo deixa normas que vêm ratificar o que foi pedido nas ruas: foram aumentados os direitos fundamentais, o direito a uma vida digna, à educação, à saúde, à moradia, à seguridade social, ao trabalho, à liberdade sindical, à greve, à negociação coletiva por categoria; em relação à mulher, contém transformações profundas, como o direito ao aborto sem necessidade de estabelecer causas, à igualdade de remunerações, à não discriminação, à composição paritária dos diferentes organismos do Estado; a desmercantilização dos direitos fica claramente expressa, enfim, sem dúvida, têm valiosas transformações que poderão permitir uma vida melhor aos habitantes do território e não somente deles, pois também são outorgados direitos à natureza, aos animais e à agua, como bens comuns inapropriáveis. Por isso, devemos seguir lutando por sua implementação e que cumpra com a definição de ser um “Estado de Direito social e democrático, solidário, paritário e plurinacional”, como assinala seu artigo número 1. Isso depende, certamente, de conseguir mediante a mobilização seu respeito e implementação por aqueles que governem.

Também assinalamos que essas conquistas foram menores do que se teria podido conseguir com a extraordinária força do “estallido social” de 2019 e que ficaram pendentes tarefas democráticas e socialistas, em matérias econômicas – como a nacionalização do grande empresariado-, assim como a grande tarefa democrática de terminar com as forças armadas repressivas e formadas na lógica da guerra interna na “Escola das Américas”, em que os soldados não têm o legítimo direito de desobedecer ordens imorais e/ou ilegais, constituindo novas forças de ordem e segurança, formadas no respeito aos direitos humanos e na defesa dos direitos dos povos que habitam o território; além disso, o estabelecimento de novas formas de produzir, de distribuir e de consumir, para combater diretamente a crise climática, econômica e sanitária que assola o planeta, pleno respeito aos povos originários e pré-existentes e à sua livre autodeterminação política, territorial e administrativa.

Apesar disso, houve pressões dos grupos mais conservadores aos que foram feitas concessões para graduar a implementação dos direitos obtidos, deixando para leis e regulamentações sua efetivação, colocando um prazo de dois anos para que o Presidente envie os projetos para o Parlamento, aos que se somam mais dois anos para que o Congresso faça sua tramitação. Ou seja, mantendo até 2026 o atual Congresso e não o substituindo por um eleito com as novas normas eleitorais. Por isso, devemos nos preparar para defender estas conquistas e exigir sua implementação por meio da mobilização, para que não somente fiquem como princípios e no papel.

É neste contexto histórico que devemos apoiar, trabalhar e obter uma grande vitória popular em 4 de setembro, aprovando este processo constituinte e esta Nova Constituição para seguir lutando por nossos direitos e pelo socialismo, abandonando o legado da Ditadura de Pinochet e jogando sua constituição no lixo.

Notas

1 Sob esta denominação genérica nos referimos aos vários tipos de governos de aliança entre partidos que se reivindicam anticapitalistas e alas de “esquerda” da burguesia, em base a um programa comum inferior aos objetivos da classe trabalhadora e do povo pobre. Esse nome foi adotado pela primeira vez em 1935 por resolução do VII Congresso da Internacional Comunista sob a direção de Stálin. Seus primeiros exemplos foram na França e na Espanha na década de 30 (com graves consequências para a luta desses povos), bem como no Chile sob a presidência de Pedro Aguirre Cerda entre 1938 e 1941. Este tipo de aliança teve importância decisiva no trágico desenlace do mandato de Allende no Chile. Neste novo século, sob distintas formas, repetiu-se esse tipo de governos na chamada onda progressista na América Latina.
2 Denominamos reação democrática a política da burguesia de buscar canalizar grandes processos de mobilização em direção a saídas de tipo eleitoral, marcadas por acordos que autolimitam a ação das massas sob a esperança de mudanças pelo voto, o que diminui seu potencial e facilita que a burguesia retome a iniciativa e possa passar à ofensiva e inclusive recorrer a saídas de tipo autoritário e inclusive ditatorial.
3 As Garantías de Não Repetição são medidas implementadas pelo Estado que comprometen a sociedade de conjunto para que as violações dos Direitos Humanos e as Infrações ao Direito Internacional Humanitário nunca tornem a ocorrer.
4 Nome atribuido pelos mapuches ao território por eles habitado desde antes da conquista espanhola, também denominado no Chile como Arauco ou Araucania.
5 Sistema eleitoral que privilegia as grandes coalizões ao dividir os distritos eleitorais com números pares e a eleição de listas majoritárias que devem ser o dobro da outra para eleger as duas vagas disponíveis. Assim, o resultado mais provável era um para cada setor, apesar de que o maior deles obter 65% da votação e o outro, 35%.

 

*Advogado, ativista social e político
Leia em espanhol: A donde va el gobierno del presidente Boric y Chile
Marcado como:
chile / gabriel boric