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50 anos do golpe no Chile

Neste mês de setembro o Esquerda Online inicia um especial sobre o cinquentenário do golpe no Chile, que terminou com os mil dias do governoda da Unidade Popular.

As razões para isso são muitas. Nomeamos algumas delas:

O processo chileno se deu em um contexto de lutas muito importantes no sul do continente: Argentina, Bolívia, Chile, Peru e Uruguai.

O que se passou no Chile foi uma grande demonstração da força da classe trabalhadora e seus aliados, os pobres da cidade e do campo e setores da classe média. Nunca antes, os trabalhadores chilenos lutaram tanto, com tanta força e radicalização.

O imperialismo americano, desde o começo do governo, conspirou para derrubá-lo, o que deve ser recordado para novos processos de luta na região, o chamado “quintal” dos EUA.

O governo da Unidade Popular foi a culminação de quase um século de lutas em um país em que a organização política dos trabalhadores estava fortemente estabelecida com o partido socialista e o partido comunista que tinham juntos quase 300 mil militantes. A Democracia Cristã se dividiu e surgiram organizações de esquerda, como o MAPU, a Esquerda Cristã e Cristãos pelo Socialismo

O primeiro ano foi de grandes avanços, tanto no campo social como na reapropriação das riquezas naturais e na nacionalização de empresas monopólicas. A partir das primeiras medidas do governo, a classe trabalhadora queria mais e superar os limites evidentes do programa da UP. E a oposição de direita começou a contestar isso diretamente, com um locaute de quase um mês em 1972

A reação das massas foi fortíssima e derrotou o locaute financiado pelo imperialismo americano e o grande capital.

A partir daí, os limites da UP começaram a aparecer. E o governo não estava à atura das esperanças que despertou e buscou uma saída conciliatória incluindo os comandantes das forças armadas no gabinete. O que foi um erro grave e permitiu que as forças da direita se recuperassem da derrota no locaute.

O ponto mais crítico foi a confiança no caráter profissional e constitucionalista das forças armadas, sem buscar se apoiar na simpatia que havia na base das forças armadas contra o golpismo.

O terrível desfecho da experiência foi dramático. Até hoje as imagens da força aérea chilena bombardeando o palácio presidencial horrorizam o que era o prelúdio da sangrenta ditadura que matou mais 3 mil pessoas, incluindo exilados no país que era “o asilo contra a opressão”.

Os brasileiros exilados eram mais de 3 mil, alguns dois quais foram presos e torturados e assassinados, como Túlio Quintiliano.
Para agradecer à hospitalidade do Chile, cerca de 100 ex-exilados brasileiros estão no país desenvolvendo importantes atividades.

A ditadura brasileira teve um papel fundamental no combate contra o governo Allende, na preparação do golpe e no apoio ao novo regime chefiado pelo infame Pinochet.

A sombra se abateu não só sobre o Chile. Desde 1971, uma onda de ditaduras militares se estabelecem no sul do continente (pela ordem cronológica, Bolívia, Uruguai, Chile, Peru e Argentina. A sinistra Operação Condor assassinou opositores em vários países.

A recuperação das liberdades democráticas em todos esses países foi um fator de alento, mas o surgimento e a força das correntes neofascistas nos últimos anos faz com que devamos olhar com cuidado as lições da experiência chilena.

“O maior erro de Allende foi acreditar que os democratas-cristãos eram democráticos”

“O maior erro de Allende foi acreditar que os democratas-cristãos eram democráticos” Gorka Castillo

Marcos Roitman, sociólogo chileno
Reprodução/Youtube

Em 11 de setembro de 1973, o presidente chileno Salvador Allende virou mito. O bombardeio do Palácio de La Moneda, o drama de suas últimas palavras e, finalmente, sua imolação transcenderam sua imagem de estadista para dar-lhe uma dimensão de idealista universal. Foram necessários apenas alguns minutos de melancolia luminosa. Aqueles que serviram para verificar as intenções de um exército aviltado, sob o comando de Pinochet. O sociólogo, ensaísta e exilado chileno Marcos Roitman (Santiago do Chile, 1955) não esquece o papel desempenhado pelos democratas-cristãos naquele golpe de Estado e a determinação de Allende em salvar a democracia. “Eles promoveram uma campanha de terror e tentaram justificar, entre outras coisas, as violações de direitos humanos que estavam começando a cometer”, diz ele. Autor do esclarecedor livro Por que no fracasó el gobierno de la Unidade Popular (Ed. Sequitur, 2023), Roitman reconhece que sente tristeza de olhar para trás e reviver aquele infame 11 de setembro de 1973. “A grande mentira oficial é culpar o governo da Unidade Popular pela falência da democracia, pelas vítimas. Foi isso que Aylwin defendeu na época dele, o que Eduardo Frei Ruiz-Tagle reiterou e depois Ricardo Lagos, Bachelet, Piñera e agora Gabriel Boric apoiaram”, diz. O Chile está profundamente dividido na recordação desse episódio sangrento. 50 anos após a morte de Allende, ele continua preso entre o ressentimento de um único líder e o desejo de uma experiência política que foi dizimada.

50 anos depois do golpe de Estado no Chile, a ferida não está cicatrizada. Quantas gerações terão de passar antes de considerarmos que esta foi uma ditadura sanguinária?

O problema não é de gerações, mas da construção de uma narrativa que permita entender que se tratou de um golpe de Estado contra a ordem democrática e constitucional por parte da direita, dos democratas-cristãos, dos Estados Unidos e das Forças Armadas. Acredito que, enquanto não liquidarmos a verdade oficial que eles construíram, será impossível entender a magnitude desse extermínio. Repito que o problema não é geracional. É de memória democrática e dignidade para que todos possam assumir a responsabilidade pelos fatos ocorridos. A questão não é quem teve culpa ou não, mas quem foi responsável por matar, matar ou torturar pessoas que no dia 11 de Setembro eram cidadãos e no dia seguinte se tornaram terroristas perigosos aos olhos do poder. Acho que é só isso. Um problema de assumir responsabilidades. E enquanto isso não for feito, no Chile não haverá realmente uma ruptura com o período da ditadura.

Ao contrário da Espanha, no Chile o ditador não morreu na cama. Isso teve um efeito na consciência.

O senhor foi um dos arquitetos do processo contra Pinochet. Você acha, pelo menos, que essa exigência contribuiu para que o ditador entrasse para a história da humanidade como um tirano implacável?

O crédito vai para as vítimas que, desde 11 de setembro de 1973, se apresentaram para pleitear habeas corpus. Permitiram, portanto, que as atrocidades cometidas por Pinochet não fossem esquecidas. O outro grande arquiteto do processo judicial contra o ditador é, sem dúvida, Joan Garcés. Sem ele não teria havido processo e é justo reconhecê-lo. Além, é claro, do povo chileno, que teve a força de continuar lutando, lutando e denunciando as violações de direitos humanos cometidas em meu país desde o dia em que o presidente Salvador Allende foi assassinado. E respondendo a sua pergunta, direi que acredito que o processo foi o ponto de partida da transição chilena. O fato de que tenha sido preso teve um efeito de inflexão na consciência interna e internacional porque, ao contrário da Espanha, o ditador não morreu na cama. Infelizmente, a partir desse momento, um partido transversal como o Partido Socialista, o Partido Democrata Cristão e o PPD, figuras proeminentes como o ex-presidente Patricio Aylwin, através de Eduardo Frei Ruiz-Tagle e Ricardo Lagos, construiu uma versão oficial de apoio tácito a Pinochet dizendo que ele seria julgado no Chile, mas que não era apropriado acusá-lo de crimes contra a humanidade.

O que essa acordo político criado para proteger Pinochet significou para o Chile?

Eu diria que demonstra, entre outras coisas, a força da traição ao governo democrático de Allende e a manutenção do que era o projeto de refundação da ordem, que é como Pinochet denominou seu golpe. O ditador já dizia que não tinha prazos, mas metas. Quero recordar as palavras de Alejandro Foxley, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Michelle Bachelet, em 2000, quando disse que Pinochet tinha mudado a sua vida para melhor, não para pior, porque estava à frente do seu tempo e merecia estar num lugar de destaque na história do meu país. Isso foi o que disse um homem que mais tarde ocupou uma posição de destaque no governo do Partido Socialista e que foi um membro importante dos democratas-cristãos. Com isso, está tudo dito.

O DC juntou-se ao levante militar e declarou o governo de Allende ilegítimo e ilegal.

Você acha que a DC teve alguma responsabilidade na conspiração contra Salvador Allende?

Toda. Teve muito mais responsabilidade do que a direita tradicional chilena que patrocinou o golpe porque o DC se juntou ao levante militar e declarou o governo de Allende ilegítimo e ilegal. Basta lembrar a carta enviada por Eduardo Frei Montalva, presidente do Senado em 11 de setembro de 1973, ao presidente da Democracia Cristã justificando o golpe. Além disso, deve-se notar que Frei e os setores mais reacionários da DC começaram a conspirar contra o legítimo governo de Unidade Popular em 4 de setembro de 1970. Frei esteve ligado a duas tentativas de golpe e à ‘Operação Gambito’, que visava se reerguer à presidência após dissolver o Congresso e convidar as Forças Armadas para controlar o poder.

No entanto, um dos líderes históricos do DC chileno como Patricio Aylwin disse que o principal motivo que encorajou os militares a derrubar Allende foi a rejeição social que existia em relação ao seu projeto de transição democrática para o socialismo. O que você acha?

Isso é uma falsidade histórica. Aylwin escreveu dois livros onde justifica esse argumento, mas é óbvio que o fato mais democrático naquela época era que a Unidade Popular, apesar de sofrer três anos de desestabilização em todos os níveis, obteve 44% dos votos nas eleições parlamentares de março de 1973. Portanto, falar nos termos que Aylwin fez é tentar lavar o sangue que a DC tem em suas mãos. Aylwin foi o coordenador civil do golpe militar. É por isso que o golpe de Pinochet é conhecido no Chile como um “golpe civil-militar”. A história está aí. Acabo de escrever um pequeno livro intitulado Por que a Unidade Popular não fracassou e lá cito textualmente, o que ele disse alguns dias antes do golpe e o que disse depois. E, claro, agora tentam posar de inocentes. Essa é a mentira oficial. Que a culpa foi da Unidade Popular, que a culpa do golpe de Estado foi das vítimas. Foi o que Aylwin defendeu, o que Eduardo Frei Ruiz-Tagle manteve e depois Ricardo Lagos, Bachelet, Piñera e Gabriel Boric apoiaram. Essa é a narrativa oficial que existe hoje no Chile.

No Chile, critica-se que a esquerda não tenha buscado um consenso no diálogo com a DC para evitar o golpe. E esse é o discurso que Boric defende.

Uma aberração para milhares de vítimas.

Mas eles ainda usam. Nem sequer falam de golpe de Estado, mas de insurreição, de restabelecimento da ordem, de ruptura da democracia. Eles usam o termo fracasso para explicar que o projeto de Unidade Popular não fazia sentido no Chile e que o caminho pacífico para o socialismo era totalmente irrealizável, pois nem mesmo os militantes da Unidade Popular nele acreditavam. E falam da inevitabilidade da derrota porque a Unidade Popular não acreditava na democracia, que se limitou a instrumentalizá-la e que isso levou o socialismo chileno ao fracasso. Esse é também o entendimento da própria social-democracia. No Chile, critica-se que a esquerda não foi democrática o suficiente porque não buscou um consenso no diálogo com a DC para evitar o golpe. E esse é o discurso que Gabriel Boric defende hoje.

Você considera que os democratas-cristãos imaginaram a carnificina que os militares estavam a preparar?

Óbvio, óbvio. Eu poderia ter sido ingênuo quando o golpe aconteceu, porque eu tinha 18 anos e não sabia o que era fascismo, mas tinha consciência suficiente para ver que Eduardo Frei Montalva, um anticomunista declarado, e Patricio Aylwin, sabiam as condições em que o golpe iria acontecer. Promoveram uma campanha de terror e tentaram justificar, entre outras coisas, as violações dos direitos humanos. Temos que esquecer que todos os partidos de esquerda foram perseguidos enquanto os democratas-cristãos foram colocados em recesso e alguns de seus líderes fizeram parte do governo militar da ditadura de Pinochet? O problema da Democracia Cristã é que ela descobriu a democracia tardiamente. Minha dúvida é se ele já descobriu.

Os compromissos de Allende há 50 anos citam expressamente as demandas das mulheres por igualdade.

Olhando para trás, considera que o projeto de transição democrática para o socialismo que Salvador Allende tentou foi uma utopia?

De modo algum. Durante o governo de Unidade Popular, grandes progressos foram feitos em todas as áreas da vida. Mais habitação social foi construída do que em qualquer outro período da história do país. Toda a riqueza básica foi nacionalizada, o povo foi alfabetizado, a saúde foi ampliada, a reforma agrária foi aprofundada, os salários aumentaram. Cumpriram todos e cada um dos planos incluídos nas medidas políticas da Unidade Popular. Embora agora falem em derrota e fracasso, o projeto ainda é válido hoje. Se você ler os compromissos assumidos por Allende há 50 anos, verá que ele menciona expressamente as demandas por igualdade das mulheres, das lutas feministas e da juventude. Era um projeto cultural avançado de cidadania política. Faz-me lembrar muito o que aconteceu com a Segunda República Espanhola. No Chile nunca houve tanta democracia, tanta liberdade, tanto desenvolvimento em termos políticos, econômicos, sociais e culturais como nos três anos de Unidade Popular. Os direitos dos povos indígenas, como os mapuches, foram reconhecidos e respeitados. Como você pode dizer que isso foi um fracasso? Foi um fracasso que o povo chileno tivesse a possibilidade de sentir a emancipação mental e política exigida desde a independência? Se você relacionar o discurso de Allende de 4 de setembro de 1970 com o de 11 de setembro de 1973, a quem ele agradece tudo? À mulher, ao camponês, ao trabalhador. Isso não é coincidência. O problema é que tudo isso foi invisibilizado por personagens que se consideram democratas acima de tudo. Mas, é claro, eles não podem ser chamados de traidores, embora todos saibamos que os piores geralmente são os convertidos.

Qual foi o maior erro de Salvador Allende?

Acreditar que a direita era democrática.

E o maior legado que ele deixou ao povo chileno?

Os princípios de dignidade que caracterizaram seu comportamento, sua defesa do direito internacional e o respeito à sua proposta de justiça social. Allende foi um grande humanista e seu legado, entendido em termos de pensamento emancipatório, é patrimônio de toda a humanidade. É por isso que ele se definiu como socialista e marxista, porque lá estão os fundamentos de seu humanismo.

Qual o papel de Gabriel Boric nesse período de renascimento da direita negacionista no Chile?

Embora o Chile seja um regime presidencialista, devemos falar do governo chefiado por Gabriel Boric. Penso que é mais correcto, digamos assim, colocá-lo nesses termos. E digo isso porque sua missão é manter a economia de mercado através de uma refundação 3.0 da Concertación de partidos que governou o Chile por cinco governos. Serve como um lembrete de que Boric descreveu Sebastián Piñera como um grande democrata e Patricio Aylwin como um exemplo para a democracia no Chile. Metade dos seus ministros são democrata-cristãos, do Partido Socialista e do PPD, todos partidos que a Frente Ampla tinha derrotado. É como se na Espanha o PSOE ganhasse e os ministros fossem do Partido Popular e do Ciudadanos, se é que ainda existissem. Devemos lembrar que no Chile não se fala em neoliberalismo, mas em refundação da ordem, conceito que implica também individualismo, destruição do social e coletivo da cidadania política, que é onde repousam a ética e o compromisso. É por isso que Boric diz uma coisa num dia e no outro, outra. Prefiro parar de adjetivar, mas me parece que, apesar de nunca ter tido uma militância política em termos de formação pedagógica, ele é considerado como um homem de 35 anos capaz de enfrentar a plutocracia que lidera este país há 150 ou 200 anos. Custa-me a acreditar nisso. Pelo contrário, acredito que seu governo é sem princípios.

Vocês que foram perseguidos pela ditadura, como vão passar os 50 anos do golpe de Estado contra Allende?

Com grande pesar pelos companheiros detidos e desaparecidos, mas com a ideia de que o golpe de Estado não ocorreu porque a Unidade Popular estava fracassando, mas porque a altura internacional do presidente Salvador Allende estava ganhando presença no mundo. Essa é uma perspectiva que nos encoraja a continuar afirmando que o projeto de Unidade Popular ainda está vivo. É por isso que escrevi o livro Por que o governo de Unidade Popular não fracassou.

Original em: https://ctxt.es/es/20230901/Politica/44052/marcos-roitman-entrevista-chile-salvador-allende-pinochet.htm