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BRASIL

Com 300 mil mortos, Bolsonaro discursou para além de sua base

Rafael Rabelo, de Fortaleza, CE
Reprodução

O último discurso presidencial em rede nacional de rádio e TV, no dia 23, merece ser analisado. Há de fato uma mudança nos rumos do governo Bolsonaro em relação ao combate à pandemia? Esta pretensa mudança se deve à pressão de setores do empresariado, queda de popularidade ou à reentrada do ex-presidente Lula no jogo político? Muitos na esquerda foram pegues de surpresa com o tom estadista e com a promessa de vacinação em massa feita pelo genocida, então precisamos, mais do que nunca, de clareza nas análises. 

Aqui, levantamos três questões para contribuir com o debate antes de analisar o discurso em si. A primeira é a mais óbvia e que, em hipótese nenhuma, pode ser esquecida: Bolsonaro discursa em cima de uma pilha de 300 mil mortos, vítimas de uma doença que, desde dezembro, já possui vacina e na qual, segundo epidemiologistas, 4 em cada 5 mortes poderiam ter sido evitadas.  

A segunda questão é que o projeto neofascista brasileiro é muito bem organizado, articulado internacionalmente e possui um plano de comunicação muito eficiente. Desde o pastor, o pequeno-burguês e emprecariado, o militar de baixa patente ou caminhoneiro que estão na ponta do processo de transmissão da política do núcleo neofascista; até médicos, jornalistas, advogados e empresários que se valem do discurso de autoridade técnica, científica e econômica para servir como retaguarda e validá-lo; passando pelas redes de televisão, rádio e portais de notícias “alternativos”, existe um método e um direcionamento. A extensa continuidade do uso de um pretenso “tratamento precoce” contra COVID, mesmo contra todas as evidências de efetividade (inclusive do próprio fabricante da Ivermectina), é um bom exemplo do quão forte e eficiente é o alicerce deste projeto. Não estamos lidando com uma simples lista de transmissão da “tia do zap”, é importante que isso fique claro. 

O terceiro e último ponto é a compreensão do caráter da burguesia brasileira. Questão amplamente debatida, mas que se faz necessária, principalmente levando em consideração a compreensão que a Teoria Marxista da Dependência tem acerca da nossa classe dirigente. O neofascismo brasileiro é apenas mais um caso em nossa breve história republicana onde se busca a implementação de um projeto político e econômico pela via autoritária. Na verdade, os momentos em que o “consenso” prevaleceu sobre a “coerção” no nosso cenário político, ou pelo menos onde se buscou algum equilíbrio, são exceções. Via de regra e guardadas as proporções em relação aos números da pandemia, 60 mil mortos de forma violenta, destes a maioria jovens, negros e periféricos, representam um genocídio anual “não oficial”. Nunca é demais afirmar, nossa classe dirigente é escravocrata, entreguista, genocida e não conseguiu, historicamente, construir um projeto de desenvolvimento nacional. 

Esta mesma burguesia, depois de 300 mil mortos, começa a apresentar sinais de ruptura em relação ao projeto neofascista. A carta assinada por 500 empresários e economistas exigindo do governo federal medidas urgentes de combate à pandemia, bem como o posicionamento de uma parte desta elite com um viés mais “humanitário”, Luiza Trajano por exemplo, e de porta vozes do mercado, como Vera Magalhães; são elementos que corroboram esta análise. Não é o caso de acreditar que este setor se tornou mais “consciente”, mas de imaginar que o custo econômico representado pela morte de 1 milhão de brasileiros por COVID-19 já começa a ser “precificado” pelo mercado. Número que já é possível de ser calculado caso a pandemia continue sem controle e este aumento exponencial de casos e óbitos siga por mais 3, 6 ou 12 meses. Falando de forma mais clara, o impacto econômico das mortes causadas pela pandemia começa a pesar mais a médio e longo prazo do que as médias de isolamento social e lockdown (não) adotadas até aqui. A burguesia brasileira começa a se dar conta do que seus pares na Europa e EUA já perceberam desde o ano passado, não existe saída para a normalização econômica por fora da vacinação em massa. Aparentemente as crendices, negacionismo e a “ideologização” das medidas de controle da pandemia atingiram seu limite. 

Com base nestes pontos, partimos do princípio de que sim, houve uma mudança de orientação neste último discurso em relação aos anteriores. Esta mudança não está no fato de que o presidente se “solidarizou” com as vítimas e com os profissionais de saúde (isso sempre estava presente nos discursos anteriores, apesar de não ser o centro), ou no seu posicionamento menos agressivo. Devemos entender que os pronunciamentos oficiais têm outro tom em relação aos discursos no “cercadinho” para apoiadores em Brasília. São, em essência, mais formais e menos agressivos. Mesmo nesta perspectiva, Bolsonaro não deixou de falar do seu “histórico de atleta” e de chamar o SARS-COV2 de “gripezinha” em 24/03/2020; de se posicionar frontalmente contra o isolamento social e as medidas restritivas em 06 e 31/03/2020; bem de como de fazer propaganda explícita do pretenso “tratamento precoce” com hidroxicloroquina em 08/04/2020. É icônico o fato deste ser, em um ano, o primeiro pronunciamento em que são tratadas de forma central as questões da vacinação, da possibilidade de uma articulação nacional e de ações coordenadas para o combate da pandemia.  

O outro elemento é político. Bolsonaro tem uma base social muito consolidada e a forma como vem se construindo os elementos de suporte do discurso bolsonarista nesta base é algo que precisa ser estudado. Há alguns pesquisadores infiltrados em grupos de apoiadores do presidente e uma literatura de fácil acesso a qual eles produzem que trata desta “arquitetura” do discurso neofascista que podem referenciar esta análise. Para esta base, os números da pandemia são irrelevantes. Foi um erro acreditar que 10.000, 100.000 ou 200.000 mortes evitáveis resultantes da pandemia causariam uma comoção suficiente para derrubar o apoio ao presidente. Aparentemente, experiência concreta do caos visível na saúde e economia por si só não são suficientes para desconstruir a “arquitetura” deste discurso, algo muito parecido com o conceito de “consciências em contradição” estudado por Gramsci em sua análise sobre os trabalhadores que são, ao mesmo tempo, explorados e defensores do sistema capitalista. No nosso caso, o mês de março nos trouxe uma série de relatos de bolsonaristas que foram vítimas da doença, como o Major Olímpio e o Irmão Lázaro, por exemplo, sem que a “consciência” da base social bolsonarista fosse aparentemente abalada de maneira significativa. Segundo pesquisas, esta base hoje gira em torno de 25% a 30% dos eleitores brasileiros. É impressionante, mas bastante plausível, que, segundo o Datafolha, ainda 46% dos entrevistados considerem a gestão da pandemia do governo Bolsonaro como aceitável e 57% não o vejam como o principal responsável pela catástrofe sanitária pela qual passamos.   

Dito isto, 30% de apoio é um número mais do que suficiente para levar Bolsonaro ao segundo turno em 2022. Mais do que isso, o possibilitaria ganhar ainda no primeiro turno. Um número menor acenderia o sinal de alerta em seu núcleo. A própria gestão desastrosa da pandemia (que por si só reduziu a popularidade do presidente) e, agora, a possibilidade de entrada no jogo político de Lula, um adversário que pode ameaçar seu projeto (tanto por contar com apoio popular, quanto por ter a possibilidade de representar uma alternativa mais razoável à implementação da agenda do mercado), fizeram Bolsonaro, repito, pela primeira vez desde o início da pandemia, buscar ampliar o alcance do seu discurso para fora da base bolsonarista tradicional. É possível que nas próximas semanas, e provavelmente de forma contínua até 2022, o presidente se apresente de forma mais “racional”, inclusive reformulando seu ministério para demonstrar alguma disposição de combater a pandemia e salvar vidas. Mais uma vez, isto em nada interfere na dinâmica de sua base consolidada. É uma forma de ampliar o seu arco de apoio para além dela, o que o possibilitou vencer as eleições em 2018. 

Acerca do discurso em si, à despeito de tratar pela primeira vez em vacinação e ações coordenadas do governo federal no combate da pandemia, foram 3:20 recheados de mentiras, exageros e manipulações de números. Trataremos delas abaixo.

Mentindo com números: Qual é a verdadeira posição do Brasil no mundo?

Somos o 5º país em número de vacinados, mas em uma análise absoluta. Com o tamanho da nossa população, isto pouco representa. Quando fazemos a conta correta, de imunizados por 100.000 habitantes, caímos para 73ª posição no mundo. Somos o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes a contar com um sistema público de saúde e temos um dos melhores programas de vacinação do planeta, e, ainda mais por isso, nossa velocidade de vacinação é criminosa. Em comparação com outros países onde não existe sistema público de saúde, como nos EUA por exemplo, podemos perceber o tamanho do escândalo: eles estão chegando ao impressionante número de 2 milhões de doses de vacina por dia. Podemos também fazer uma relação com países menos economicamente desenvolvidos, como o Chile, que vacinou 16% da população. Em todos os cenários comparativos, nossa situação é bem pior do que foi relatado pelo presidente no seu discurso. 

O acordo com o consórcio Oxford-Astrazeneca, bem como o COVAX-Facility são verdadeiros. Mas nem de longe possibilitariam ter número suficiente de doses a curto e médio prazo para controlar a doença. Em quase todos os países a estratégia foi a de comprar o máximo de vacinas possíveis dos mais variados distribuidores para garantir a imunização no prazo necessário de cada região e não ficar dependente da disponibilidade de um ou dois fabricantes específicos. O Brasil rejeitou 70 milhões de doses de vacina da Pfizer em agosto de 2020 que poderiam ter sido entregues em dezembro. Bolsonaro pessoalmente desconsiderou três ofertas de vacinas produzidas pelo Instituto Butantan entre julho e outubro, o que teria nos possibilitado, até janeiro de 2021, pelo menos mais 45 milhões de doses. A situação é tão escandalosa que segundo o pesquisador Átila Iamarino, 80% das mortes ocorridas na segunda onda de COVID no Brasil poderiam ter sido evitadas caso tivéssemos iniciado a vacinação em dezembro ou janeiro. Desta forma, as 100 milhões de doses da Pfizer programadas para setembro de 2021 ou 500 milhões prometidas até dezembro não tem força para fazer o tempo retroceder e evitar a tragédia pelo qual estamos passando. 

Tanto a FioCruz quanto o Instituto Butantan já poderiam ter fábricas de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA), caso não houvesse, há vários anos, seguidos cortes de orçamento para o desenvolvimento de pesquisas nestas instituições. As universidades públicas às quais os institutos são vinculados têm sido vítimas de diversos ataques e desmontes tanto do governo federal, quanto do estadual de São Paulo. Infelizmente a iniciativa de ser autônomo na produção de vacinas só surgiu após a catástrofe constatada pela COVID-19, e com um ano de atraso. E não se sustentará, diante de todas as medidas de austeridade, que sufocam o serviço público, que estão sendo aprovadas a toque de caixa no Congresso Nacional.      

De acordo com o presidente, 2021 será o ano da vacinação dos brasileiros. É verdade, mas também será o ano que, mesmo vacinados, estaremos de luto pelas centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas caso não houvesse um plano de genocídio em prática no nosso país. 

Deus nos ajude.