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OPRESSÕES

Uma menina contra o neofascismo, ou um Brasil em transe

Sonara Costa*, do Rio de Janeiro, RJ

“O patriarcado é um juiz
Quem nos julga por nascer
E nosso castigo
É a violência que você vê.
(O estuprador é você. Canto chileno contra violência misógina)

Por metade de sua vida a menina capixaba teve o corpo violado, abusado, penetrado. Quantas vezes? Impossível saber. Esta experiência, que em uma pessoa adulta já seria devastadora, em uma criança tão pequena pode ser sua destruição. A gravidez, nesse corpo, pode ser fatal

Não é a primeira vez que fundamentalistas tentam reverter o aborto legal. Em 2017, com a PEC 181, conservadores buscaram proibir o aborto nos casos de estupro e risco de vida às mulheres. Os dois casos em que se enquadra a menina. Naquela ocasião o movimento feminista reagiu e derrotou o projeto

A pandemia aumentou o número de casos de violências misóginas e racistas, mesmo a ONU reconhece a explosão dos casos de violência doméstica, local onde ocorrem a esmagadora maioria dos casos de abuso infantil. Ainda assim, governos de extrema direita em todo o mundo buscaram reverter a legislação sobre direitos reprodutivos em seus países e obstar o acesso ao aborto, mesmo em casos permitidos. Aproveitando-se das clínicas e fronteiras fechadas lançaram mão de medidas autoritárias para restringir o acesso aos serviços já estabelecidos, fechando alas nos hospitais e redirecionando equipes e recursos, e perseguindo médicos comprometidos com o aborto legal.

A menina de São Mateus foi pega por essa ofensiva, e com apenas dez anos, alvo do método norte-americano dos pró-vida, foi transformada no bode expiatório do neofascismo. 

Ministério e orações e tochas

Na quarta feira (12) a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH) enviou uma equipe de sua pasta para acompanhar o caso em São Mateus, segundo informações divulgadas pelo site oficial do governo, além de reuniões com a secretaria municipal de Assistência Social e o Conselho tutelar, a equipe  esteve atenta e acompanhando de perto todos os desdobramentos do caso”. 

Damares Alves postou, em sua página oficial, sobre o caso duas vezes, em ambas chamou a atenção para a idade gestacional, em uma delas afirma ter “passado do prazo” permitido por lei. Como sabemos, a Ministra é uma entusiasta do Estatuto do Nascituro, e de modificações constitucionais que concedam proteção aos fetos desde a concepção. 

Na sequência Sara Winter, em suas redes sociais, confessa ter informações privilegiadas, e publiciza a idade gestacional exata da menina (semanas, dias, e gramas do feto). Afirma que o pai da menina está preso, e que o tio contribui com a renda familiar, e nos cuidados da criança, enquanto a mãe trabalhava. Em meio à suposta tristeza pelas consequências de um “chefe de família ausente” anuncia o endereço do hospital, os nomes da menina e do médico, e convoca seus apoiadores a impedir a realização do procedimento.

Sara Winter recebeu o privilégio de cumprir prisão domiciliar, após protagonizar atos fascistas na porta do supremo, e desde aí orquestrou um ataque brutal a uma menina que se encontra extremamente vulnerável, expondo-a a mais violências. 

A decisão judicial de apagar as postagens não é suficiente, Winter deve ter o uso de redes sociais imediatamente proibido, e a sua prisão domiciliar revogada. As autoridades devem investigar a possível participação de servidores públicos e membros do governo no vazamento das informações.  

Ao mesmo tempo é urgente o debate de gênero e sexualidade nas escolas como forma de prevenção ao abuso infantil e à pedofilia, bem como maior agilidade em reconhecer os casos e impedir os estupros no interior das famílias.

Neofascismo brasileiro 

O Bolsonarismo é a expressão política do rancor, do ressentimento e do ódio a todo projeto de igualdade. É a saída reacionária a uma crise social, política e econômica profundas. É a resposta à falência do projeto neoliberal implementado por sucessivos governos.  Ao mesmo tempo é seu herdeiro. Transforma em inimigos da pátria justamente aqueles que são os mais prejudicados com as medidas de austeridades e contrarreformas. Bebe no individualismo extremo, na competitividade permanente entre indivíduos que não podem contar com quase ninguém. É a oposição violenta, o uso do terror, contra determinados setores sociais, direcionados especialmente contra as formas organizativas dos setores populares, oprimidos e da esquerda.   

Bolsonaro se sustenta pela mobilização permanente contra ameaças imaginárias à família, à ordem, e à pátria. Reúne preconceitos sociais com um projeto autoritário. A mudança de tom do presidente nas últimas semanas, frente à investida do Supremo, não pode durar, sob pena de perder a ligação com a base que sustenta seu projeto autoritário. Nesse governo o racismo, a misoginia e homofobia se transformam em política de Estado, e norteiam a atuação de agentes públicos, e políticas sociais. Nesse governo pressionar, expor, e humilhar uma criança estuprada é permitido.  

 Fortalecidas desde a onda conservadora, as idéias defendidas por Bolsonaro e seus apoiadores gozam de lastro social, como demonstra a popularidade da ministra Damares, porque se baseiam no medo do rebaixamento social dos setores médios, arruinados e conservadores, que temem a pobreza, num país marcado por profundas desigualdades. Tentam incutir a apatia e desesperança frente às injustiças, para evitar a resistência. Justo por essa razão o movimento feminista de Pernambuco foi exemplar em sua ação, ao mobilizar dezenas de mulheres para defender a menina estuprada a protegeu dos fundamentalistas, demonstrando que é possível resistir e vencer. O jogral em frente ao hospital foi uma lição de solidariedade, de ação coletiva desinteressada, de afeto e de humanidade, que só projetos emancipatórios pode proporcionar. O feminismo salva vidas!

*Da Resistência Feminista.

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