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MUNDO

Suprema Corte derruba decisão que garantia o direito ao aborto nos EUA

Queda do Roe vs Wade é um choque e atinge milhares de mulheres nos Estados Unidos e no mundo

Aline Coutinho*
Você só pode banir abortos seguros
Reuters/ Mundo ao minuto

“Você só pode banir abortos seguros”

Hoje, dia 24 de junho de 2022, foi revogada após 49 anos a garantia do direito ao aborto nos EUA pela Suprema Corte, revertendo a decisão de 1973 conhecida como Roe vs Wade. Com uma maioria de 6 contra 3, a guinada conservadora da Suprema Corte já era esperada desde o vazamento de um rascunho que apontava a derrubada da decisão no início de junho – e que teve grande impacto na opinião pública, promovendo a mobilização nas ruas de milhares de mulheres para pressionar pela continuidade do Roe vs Wade no país. 

Ainda que a revogação não seja uma proibição do aborto nos EUA, ela produz uma maior liberdade e permissão aos estados para aprovarem legislações cada vez mais restritivas, que impossibilitam de diferentes formas as mulheres de terem um real acesso ao aborto. Ao menos metade dos estados dos EUA irá seguir a decisão da Suprema Corte, tendo como consequência que em torno de 26 estados, o acesso ao aborto não existirá ou será fortemente restringido para milhares de mulheres – sendo que em 13 desses estados, as proibições irão entrar em vigor de forma imediata ou nos próximos dias. 

Assim, o fim da Roe vs Wade tem o efeito prático de tornar indisponível o aborto em grandes áreas dos EUA, e, portanto, tem grande impacto em mulheres negras, imigrantes e pobres, que para terem acesso a sua autonomia reprodutiva, terão que atravessar fronteiras estaduais até chegarem a um estado que o aborto seja permitido – dentro da realidade do tempo de suas gestações. Afinal, as legislações cada vez mais restritivas dos estados, que passam leis como a do “batimento fetal”, em que abortos somente podem ser realizados até 6 semanas não condizem com a vida das mulheres e mesmo das meninas que sofrem violência sexual e não sabem que estão grávidas ao atingirem o limite da lei e que serão obrigadas a levarem a gestação adiante – contra suas vontades. Texas, Mississipi, Oklahoma e Missouri são alguns dos estados nos EUA em que a possibilidade de acesso ao aborto irá se tornar impraticável ou será abolido de fato o direito ao aborto. 

O resultado de decisões como essa realizada pela Suprema Corte dos EUA é algo que a realidade latino-americana conhece muito bem devido ao conservadorismo e as restrições que a maior parte dos países tem por aqui: mulheres ricas irão realizar o aborto sem grandes dificuldades, enquanto mulheres pobres e racializadas irão sofrer com a realização de abortos ilegais, que expõem essas mulheres a sequelas de saúde graves e mesmo à morte. 

O choque do fim do Roe vs Wade e o retrocesso no direito ao aborto é gigantesco e não se localiza somente nos EUA, reverberando pelo mundo. Os EUA, conhecidos e reconhecidos no cenário internacional como os “defensores da liberdade” e mesmo “defensores dos direitos humanos” – ainda que tais títulos não sejam condizentes à verdade de milhares de casos de violações dessas liberdades e direitos – tem grande influência simbólica e reverberam suas decisões para outros países. A atuação e mobilização de políticos e ativistas antiaborto de forma transnacional, como visto na aprovação da Declaração de Consenso de Genebra em outubro de 2020, que foi coordenada pelo EUA de Donald Trump e o Brasil de Jair Bolsonaro, tem como uma de suas diretrizes a afirmação que “não existe direito internacional ao aborto”. A coalização de países que assinaram a Declaração mostra que essa articulação não é nova e vem lentamente se desenvolvendo desde a compreensão das Conferências da ONU de Cairo e Beijing (1994,1995), quando os Direitos Reprodutivos foram reconhecidos como parte integrante dos Direitos Humanos e proporcionaram a ampliação da garantia do acesso ao aborto legal.

Mas, ainda que a conjuntura política atual possa ser desalentadora as estadunidenses, é importante ter em mente que ações e mobilizações são o meio para transformar o jogo político e retomar os direitos reprodutivos das mulheres. A luta pela autonomia reprodutiva mobilizada arduamente e continuamente pelas mobilizações feministas desde o século XX tem no sopro da potente Maré Verde latino-americana sua vitalidade e esperança atual. Se os ventos dos feminismos estão cada vez mais fortes e promovendo grandes mudanças em diversos países latino-americanos na reivindicação da legalização do aborto, são esses ventos que devem chegar ao EUA. Pensando o corpo como individual e coletivo, articulando questões de gênero, raça e classe, esperamos que essa decisão se torne um combustível para que a potência feminista das mobilizações das mulheres estadunidenses se transforme em um “desejo de transformar tudo”, como expressa Verónica Gago.

* Mestranda em História – PPGH/UERJ, Especialista em Gênero e Sexualidade – IMS/UERJ, Pesquisadora do LEDDES/UERJ, ativista da Resistência Feminista – RJ, Colaboradora da Rede Feminista de Saúde