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OPRESSÕES

Ofensiva internacional contra os direitos reprodutivos: esquerda brasileira deve se colocar do lado certo da história

Juliana Bimbi, de Porto Alegre

Na última semana os direitos das mulheres foram o centro da pauta política na sociedade Brasileira, e não só: com a reversão da decisão histórica Roe vs Wade, que garantia o direito ao aborto como direito constitucional nos Estados Unidos, a discussão ganha dimensão internacional. Há quase 50 anos atrás, a decisão favorável ao aborto por parte da justiça americana teve impacto mundial, inspirando diversos países a adotarem leis menos restritivas sobre o procedimento. O impacto reverso com certeza acontece com a revogação da decisão em 2022.

No Brasil, dois casos foram emblemáticos e geraram intensa repercussão: o caso de uma menina de 11 anos, vítima de estupro de vulnerável, que foi coagida e submetida a tortura psicológica por diversas autoridades que a negaram o direito à interrupção da gravidez e a separaram da família, e o abuso sofrido por Klara Castanho, também vítima de um ciclo de violência. A atriz além de ter sido vítima de estupro, teve sua história vazada sem autorização e foi julgada moralmente pelo país inteiro por ter entregado sua filha à adoção legal por não ter condições de criá-la.

A extrema-direita se articula internacionalmente em uma cruzada contra os direitos reprodutivos

Não é uma casualidade que o aborto seja uma pauta central para a extrema-direita, principalmente grupos fundamentalistas religiosos, simulataneamente em vaŕias regiões do globo. Existe uma verdadeira guerra global sendo patrocinada e incentivada no mundo inteiro a partir de uma articulação internacional contra os direitos reprodutivos. A revisão do precedente legal consolidado em Roe vs Wade foi uma vitória política da extrema-direita internacional, vitória essa que vem sendo preparada há décadas com uma escalada crescente contra o direito ao aborto. Já existiam, antes da decisão, estados onde o aborto para as mulheres da classe trabalhadora era praticamente inviabilizado, mesmo sendo considerado um direito constitucional. Um grande número de mulheres do Texas, um dos estados mais conservadores do país, já buscavam alternativa viajando para o México para conseguir o direito ao aborto, algo que há algumas décadas seria impensável, considerando que o fluxo mais comum acontecia ao contrário.

Evidências foram reunidas pela matéria do jornal OpenDemocracy em 2019 da transferência de pelo menos 28 milhões de dólares de “Dark Money” feita por bilionários conservadores norte-americanos ligados à antiga administração Trump, para a Europa nos últimos 10 anos. Esses nomes são os mesmos responsáveis pelas agendas “pró-vida” dentro do território americano, financiando os legisladores nos estados como Mississipi, que também já haviam aprovado uma das leis mais conservadoras em relação à prática mesmo antes da reversão de Roe. Para o Mississipi, foram 100 milhões de dólares, e internacionalmente o destino era o financiamento de grupos neofascistas que comandam lobbys contrários ao aborto e à educação sexual.

Um grande número desses grupos é conectado ao “Congresso Mundial da Família”, que tem relação com políticos de direita da Itália, Polônia, Espanha e Sérvia. Uma dessas organizações trumpistas, que se chama Alliance Defending Freedom (ADF), se articula principalmente nos Estados Unidos com um “exército legal” que busca ganhar na justiça causas pautadas em base a ideologia de extrema-direita. Seu carro-chefe são os processos relacionados aos direitos reprodutivos, defendendo profissionais da saúde que se recusam a realizar procedimentos de aborto legal. O orçamento desse movimento passa de 50 milhões, contando com mais de 3.000 advogados, batalhando na justiça contra diversos países da europa à américa latina, sendo que nos Estados Unidos é um dos grupos de pressão considerados mais influentes no território. Tem como aliados inclusive a organização polonesa Ordo Iuris, responsável pelo lobby antiaborto bem-sucedido no país, que se afirma inspirada na TFP (Tradição, Família e Propriedade, organização internacional fundada no Brasil). Curiosamente, no mesmo mês em que Trump co-patrocionou uma declaração mundial contra o aborto assinada por diversos países, incluindo a Polônia, o aborto no país foi praticamente proibido por inteiro.

A relação do governo Brasileiro com a ADF já foi evidenciada e inclusive admitida pela ministra Damares Alves, que identifica a militância antiaborto como um dos pontos de convergência que sustenta essa aliança. Em meados de 2019 a ministra esteve reunindo diretamente com a entidade em Washington. Essa articulação internacional pode explicar, em parte, porque no mesmo momento em que os conservadores da Suprema Corte se preparavam para derrubar a decisão Roe vs Wade antes que ela completasse meio século, no Brasil se intensificava a guerra contra o mínimo acesso ao aborto legal.

A agenda comandada por Damares Alves, afinal, sempre foi a de liderar aqui a sua própria cruzada contra os mínimos direitos reprodutivos garantidos pela legislação brasileira e pelo SUS. Enquanto nos Estados Unidos e demais países onde o aborto é legal, a luta dos grupos auto-denominados “pró-vida” é para criminalizar o procedimento, aqui o aborto nunca esteve próximo de ser legalizado e regulamentado plenamente. Na última semana, repercutiu entre as autoridades políticas e sanitárias o manual de assistência produzido pelo Ministério da Saúde, onde consta uma interpretação distorcida e moral sobre a interrupção da gravidez, categorizando todo o aborto como ilegal. A elaboração contraria o código penal, que prevê o aborto legal e fornecido obrigatoriamente pelo SUS em três casos.

O ministro Queiroga se posicionou reafirmando a posição de que “todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido”, como está escrito no manual. A audiência pública que foi chamada nesta terça feira, a toque de caixa, dia 28/06, foi uma verdadeira tragédia no que diz respeito aos direitos das mulheres. Entre os convites feitos pelo ministério da saúde esteve a juíza Joana Zimmer, responsável por impedir o aborto de uma criança de 11 anos (que acabou não comparecendo), uma ex-assessora do governo Trump e a deputada Janaína Paschoal. Os convidados levaram bonecos de plástico e projetaram imagens de fetos, realizando uma discussão moral sem amparo científico. As organizações contrárias à decisão foram impedidas de entrar na audiência.

Programaticamente, os grupos internacionais de extrema direita querem para o Brasil restringir o aborto em qualquer circunstância, obrigando inclusive crianças vítimas de violência sexual a levarem adiante gestações em que não existe condições físicas nem psicológicas para sustentar. Querem fazer no Brasil o que fizeram ou tentaram fazer na Polônia, no que diz respeito a direitos reprodutivos – o país já tem uma das leis mais restritivas em relação ao aborto e, desde 2020, vem banindo-o cada vez mais. O aborto por anormalidades fetais, que anteriormente era legalizado, hoje foi impedido, restando apenas em caso de estupro, ou quando há risco de vida para a mãe.

Mesmo sem alteração da lei, os grupos neofascistas brasileiros já atuam para negar ou dificultar o direito das mulheres, principalmente o aborto em caso de estupro de vulneráveis. Casos emblemáticos de protestos em frente a hospitais ou mesmo a coerção feita pela juíza de Santa Catarina demonstram como os grupos bolsonaristas se encontram mobilizados para impedir o acesso aos direitos reprodutivos, inclusive de crianças, e podem ter vitórias caso não exista resposta política. O próprio presidente da república se posicionou contrário ao direito da menina anônima de 11 anos à interromper a gestação.

Você só pode banir abortos seguros”: uma questão de privacidade ou justiça social?

Especialistas críticos à decisão da Suprema Corte alertam para as suas consequências no crescimento da mortalidade materna nos EUA: a expectativa é o aumento de 75 mil gravidezes indesejadas por ano, o que aumentaria proporcionalmente a mortalidade materna, que nos Estados Unidos, assim como outros países, é um problema social relevante, visto que lidera o ranking de países desenvolvidos em número de mortes maternas, e nos últimos anos tem crescido. Em 2020, foram 861 mulheres grávidas que faleceram. O Estado do Mississipi, que já havia restringido o direito ao aborto, é um dos estados com a maior taxa de mortalidade materna e também de mortalidade infantil.

As mais afetadas são as mesmas no Brasil e nos EUA. Para a população racializada (negra, indígena e latina), estima-se um aumento de 33% nas mortes. A população negra hoje já é, no país, 2.9 vezes mais suscetível a morrer de causas relacionadas à gravidez e o parto. A desigualdade racial, que tem forte raiz na violência obstétrica no país, certamente aumentará com essa medida. A professora de saúde reprodutiva Rachel Hardeman afirmou para o jornal The Guardian que a revogação da decisão que garante o aborto como direito deve ser considerada uma “política racista”. As mulheres negras também eram as mais beneficiadas pelos serviços de aborto seguro.

A palavra de ordem “você não pode banir o aborto, você só pode banir abortos seguros” foi um dos símbolos do movimento de protestos que aconteceu em todo o território estadunidense. Essa frase toma como pressuposto o aborto como uma realidade e sua regulamentação como um tema de saúde pública. Essa premissa altera o sentido inicial da legalização do aborto norte-americana, que não partiu da defesa da vida ou da saúde pública, como na maioria dos países da América Latina, e sim do direito à privacidade: a Suprema Corte, em 1973, interpretou que o aborto era um tema da vida privada e portanto não deveria ser regulado pelo Estado; uma política que toma como base a defesa do liberalismo em sua forma teórica. O retrocesso que vemos agora também vem da fragilidade da premissa da liberdade, que não é palpável para a maior parte da população mundial.

Você só pode banir os abortos seguros” é uma palavra de ordem que atenta para o sujeito afetado com essa política: as mulheres seguirão buscando abortos, e com a falta do acesso à procedimentos seguros, gerará uma lacuna: as brancas e ricas irão viajar para outros países ou para os estados que manterão o direito garantido para ter acesso ao aborto seguro; as mulheres pobres e negras seguirão morrendo em procedimentos inseguros. Para unificar a luta em defesa do aborto no mundo, principalmente nos países da periferia como na América Latina, é importante a abordagem a partir da premissa de que não existe uma militância “pró-escolha” nos territórios onde o aborto não é uma escolha, e sim um recurso de sobrevivência, pois não existe condições físicas, financeiras e psicológicas para gerar uma vida. Não existe uma militância “pró-escolha” efetiva que também não leve em consideração que o controle dos corpos das mulheres diante do capitalismo também acontece a partir da seleção de quem deve ou não gerar novas vidas, uma seleção feita de forma racista, higienista e genocida.

Não existe justiça social sem justiça reprodutiva e essa precisa ser uma pauta da esquerda

Com tamanha vitória política neofascista à nível internacional, a reversão de uma decisão cinquentenária nos Estados Unidos, a tendência é o empoderamento ainda maior desses grupos. Lá, onde os grupos neofascistas já vem se articulando a anos a partir dessa pauta, o partido democrata também foi criticado pelos ativistas por não ter regulamentado o direito ao aborto por lei. Alexandra Ocasio-Cortez, um dos nomes mais influentes do DSA, ala democrata de Bernie Sanders, tem afirmado constantemente que a resposta política de Biden e dos democratas precisa ser mais do que lamentar e pedir votos na eleição: é preciso um plano de organização da sociedade.

A América Latina, que foi palco de um verdadeiro levante em defesa da legalização do aborto, deve se manter vigilante e organizada. Apesar da gravidade do quadro, é preciso dizer: a resposta é possível. É possível porque foi o levante das a mulheres latinoamericanas que garantiu a legalização do procedimento em inúmeros países, e porque em todos os locais onde a extrema-direita teve vitórias, houve reação principalmente do movimento negro, LGBT e feminista. A comoção pelo caso da menina de 11 anos e da violência sofrida por Klara Castanho no Brasil foi grande e mobilizadora, gerando uma rede de solidariedade importante. Porém, essa solidariedade precisa ser organizada de forma concreta, construindo uma resposta que garanta a manutenção dos direitos reprodutivos das mulheres e que construa seu avanço.

Nesse sentido, a maioria da esquerda brasileira precisa rever seu posicionamento. Lula, apesar de ter afirmado em abril que o aborto deveria ser uma questão de saúde pública e um direito garantido, logo recuou por pressão externa, afirmando ser contra o aborto e a pauta não consta na nova versão do seu plano de governo. No caso da menina de 11 anos, Bolsonaro foi quem deu declarações mais enfáticas entre os presidenciáveis; obviamente contrárias ao acesso ao direito, afirmando que quem defendesse o aborto para uma criança de 11 anos “defendia a ditadura”. É preciso uma resposta enfática e sem malabarismos: Lula, se eleito, deve garantir, apoiado nos movimentos sociais, que o aborto seja legalizado e regulamentado no Brasil e que haja educação sexual acessível à todos. Se o programa de Lula gira em torno da redução das desigualdades e das injustiças sociais, é preciso afirmar: não é cortina de fumaça! Não existe justiça social sem justiça reprodutiva, sem garantias para aquelas que sustentam a reprodução das novas vidas no país.

Fontes:

https://www.opendemocracy.net/5050/claire-provost-ella-milburn/christian-legal-army-court-battles-worldwide

https://www.theguardian.com/world/2019/mar/29/city-of-love-christian-right-congress-in-verona-divides-italy-league-extremism

https://www.opendemocracy.net/en/5050/ultra-conservative-institute-has-infiltrated-polish-state-to-ban-abortion/

https://www.opendemocracy.net/en/5050/revealed-trump-linked-us-christian-fundamentalists-pour-millions-of-dark-money-into-europe-boosting-the-far-right/

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/com-novas-restricoes-polonia-proibe-quase-totalmente-o-aborto/

https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/jun/26/second-civil-war-us-abortion

https://www.theguardian.com/us-news/2022/jun/27/louisiana-judge-abortion-ban-roe-v-wade-supreme-court

https://www.theguardian.com/us-news/2022/jun/27/alexandria-ocasio-cortez-supreme-court-justices-impeach-kavanaugh-gorsuch-thomas

https://www.theguardian.com/us-news/2022/jun/27/california-abortion-rights-state-constitution

https://www.theguardian.com/us-news/2022/jun/27/roe-v-wade-overturned-maternal-mortality-rate-will-rise

https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/jun/27/roe-wade-forced-birth-america-abortion-ban-misogyny

https://www.opendemocracy.net/en/5050/roe-v-wade-democrats-abortion-rights-us/

https://www.opendemocracy.net/en/5050/uk-anti-abortion-christian-right-roe-v-wade/

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61931286

https://www.dw.com/pt-br/pol%C3%B4nia-praticamente-bane-o-aborto/a-55364206

https://www.theguardian.com/us-news/2022/jun/27/roe-v-wade-overturned-maternal-mortality-rate-will-rise

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/sou-contra-o-aborto-diz-lula-apos-defender-que-todo-mundo-deveria-ter-esse-direito/