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BRASIL

30 anos do ECA: infâncias diferentes e desiguais

Esse texto é dedicado à memória de Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes (5 anos), Anna Carolina de Souza Neves (8 anos), Agatha Vitória Sales Félix (8 anos), Jennifer Cilene Gomes (11 anos), Kauã Vítor Rozário (11 anos), Kauê Ribeiro dos Santos (11 anos), João Vitor Moreira dos Santos (11 anos), Kauã Noslinde Pimenta Peixoto (12 anos), João Pedro Mattos (14 anos) Luiz Antônio de Souza Ferreira da Silva (14 anos), crianças e adolescentes baleadas no estado do Rio de Janeiro, entre 2019 e 2020, vítimas do racismo, das desigualdades e desproteção social.

Rodrigo Silva Lima*, de Niterói, RJ

A crise do capitalismo e o cenário de ascensão conservadora e ultraliberal exigirá de todas e todos um esforço coletivo de organização e resistência para enfrentar as formas perversas de exploração da força de trabalho, a precarização aguda das condições de vida e a expropriação permanente de direitos. Como afirmam Juliana Cislaghi e Felipe Demier, em “neofascismo no poder (ANO I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro”, sob a égide do neofascismo e das determinações de uma democracia blindada, numa obstinada sucessão de atropelos políticos, deselegância pessoal e violências de múltiplas ordens, busca-se “reconfigurar a economia, o espaço e as relações sociais do país de modo a adequá-lo às novas necessidades de acumulação de um capital estrangeiro e nacional cada vez mais vampiresco e parasitário”.  

Portanto, para além dos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a luta pela sua implementação se faz ainda mais urgente e necessária! Em primeiro lugar pela necessidade de romper com dogmas e idealizações acerca da proteção infanto-juvenil e o papel das famílias. Em segundo lugar, por denunciar a captura do fundo público, o enfraquecimento da esfera pública e as profundas desigualdade que ainda persistem no contexto brasileiro e se acirraram com a pandemia do Covid19. E, em terceiro lugar, pela necessidade de fortalecer os segmentos progressistas nas instâncias representativas e os sujeitos políticos nos espaços dos Conselhos Tutelares.

Em aniversários tem-se por hábito desejar felicidades múltiplas e parabéns. E hoje em dia, mais do que nunca, qualquer forma de celebração, principalmente no contexto de pandemia, é uma forma de resistência! E o ECA (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990), que completa 30 anos de existência, ao mesmo tempo em que, por um lado, tem sido atacado por programas sensacionalistas de veículos de comunicação que defendem interesses das classes dominantes e por segmentos conservadores como os Parlamentares de direita, por outro lado, desperta a mobilização dos campos humanistas e progressistas em sua defesa. Nesse período, as análises pessimistas de uma realidade profundamente desigual contrastam com ações otimistas que visam construir uma sociedade onde todas as crianças tenham uma infância feliz. Porém, o desejo de felicidade esbarra em condições efetivas de materializá-la.

Parafraseando Trotsky, numa passagem de sua autobiografia, é possível afirmar que poucas infâncias são felizes: “Diz-se que a infância é o tempo mais feliz da existência. Creio que não é sempre o caso. Poucos são aqueles cuja infância é feliz. A idealização da infância tem seus foros na velha literatura dos privilegiados. Uma infância provida de tudo, e abundantemente, a infância sem nuvens, nas famílias hereditariamente ricas e instruídas, todo carinho e brinquedos, fica na memória como uma clareira inundada de sol, à beira do caminho da vida. Os grandes senhores da literatura ou os plebeus que os cantaram, exageraram esta ideia da infância toda penetrada de espírito aristocrático. A imensa maioria, se olhar para trás, se aperceberá, ao contrário, somente uma infância sombria, mal alimentada, escravizada. A vida dá seus golpes nos fracos, e quem será mais fraco do que as crianças?”

Essa construção, da “infância feliz”, tem sido romantizada em torno de uma idealização da classe média e, muito presente, nas propagandas de margarina e de plano de saúde. A realidade da maioria de crianças e adolescentes no Brasil, principalmente aquelas de origem negra da classe trabalhadora, é atravessada por múltiplas expressões da questão social. As condições objetivas e subjetivas de suas famílias são cada vez mais tensionadas e constrangidas por acesso à serviços públicos cada vez mais sucateados pelos governos, sem que tenham, muitas vezes, outros direitos garantidos.

Embora existam alguns motivos para comemorar, pelo fato de esse ordenamento jurídico romper, pelo menos na letra da lei, com um paradigma do atendimento (e entendimento) ao público infanto juvenil no Brasil, o ECA tenta superar o estigma do termo “menor” e garantir direitos ao reafirmar a condição humana de um segmento geracional entre zero e doze anos incompletos (crianças) e doze e dezoito anos de idade incompletos (adolescentes). Porém, a brutal realidade tem insistido em contrariar a felicidade dessa celebração e é impossível falar do ECA sem mencionar a questão racial.

Para além da faixa etária prescrita nessa legislação temos infâncias diferentes e desiguais e esse fenômeno, que José de Souza Martins chamou de “crianças sem infâncias”, no livro “o massacre dos inocentes”, teve uma interpretação atualizada e complementada pela ideia de “cidadania de papel”, retratada pelo jornalista Gilberto Dimenstein. Logicamente, o realismo pessimista dessas constatações interage dialeticamente com a tentativa de subverter a ordem e defender com todas as forças progressistas a concepção de “sujeitos de direitos” e não mais “objetos de medidas judiciais” que norteou por muito tempo a visão do sistema judiciário.  

Grande parte das construções teóricas, a partir do surgimento do ECA, ao mesmo tempo que sinalizam a conquista social ao materializar os pressupostos da proteção integral e a intenção de superação da ideologia “menorista” expressam, por outro lado, o racismo, o machismo, o pauperismo, a ação de múltiplas violências que resultam em sofrimentos de várias ordens e na precocidade de experiências traumáticas.

Para enumerar aspectos que resumem bem o espírito do que se entende por proteção integral, o artigo 4º do ECA indica: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. 

Do momento em que a família foi “privatizada”, com a incorporação da noção de família nuclear burguesa, todas as ações de cuidado e proteção foram destinadas quase que, exclusivamente, à responsabilidade dessa instituição histórica, com sobrecarga das mulheres. O afeto individualista burguês contrasta com os cuidados previstos na ancestralidade da família africana e indígena que, diante de formas de solidariedade e compartilhamento de responsabilidades, extrapolam a lógica consanguínea dando materialidade ao sentido coletivo de proteção numa rede de convivência afetiva.

Quando se fala em “dever da família” é revelado algo paradoxal, pois essa construção não é formulada numa perspectiva coletiva, mas cada vez mais individualizada. O “dever da sociedade”, também, pois o seu ambiente é permeado pela concorrência entre pessoas e disputas de projetos societários. A ação do Poder Público, que deveria garantir os direitos, expressa contradições entre a aparência do Estado na garantia de direitos universais e sua essência que atende aos interesses da classe dominante. 

O Estado, instância que cobra, vigia, controla e pune, com o rigor da lei, principalmente, as famílias negras e empobrecidas, não garante, minimamente, as condições de sobrevivência destas. Por isso identificar “negligência”, “desintegração” ou “incapacidade” de grupos ou indivíduos, assim como acusar os jovens de estarem em “conflito com a lei”, retrata, muitas vezes, uma concepção ideológica distante do horizonte analítico crítico e marxista.

E o Brasil, não custa lembrar, como último país autônomo a abolir a escravatura, não garantiu recursos de subsistência e assistência aos descendentes de africanos e teve nas múltiplas dimensões da violência um modus operandi que a marcou a cultura como a “lógica do C.A.B.I.D.E”: Culpabilização individual pela pobreza e situação de rua; Abandono do Estado e aviltamento das condições de vida; Banalização da barbárie e de castigos físicos desmesurados; Indiferença quando às formas de socialização de amplos segmentos sociais no processo peculiar de desenvolvimento físico, social e psicológico; Desrespeito histórico aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes; Estigma de serem perigosos e ameaçadores. Numa sociedade que, como um grande armário, deveria amparar e proteger, para garantir minimamente a organização social, a “lógica do CABIDE” revela uma desumanidade inconteste.

As formas de mortificação e de silenciamento, explicitas e sutis, que dizem respeito à linguagem, à sociabilidade e ao trabalho foram identificadas na história, por meio de vários estudos como os de Francisco Pilotti e Irene Rizzini, em “a arte de governar crianças”, Mary Del Priore, em “a história das crianças no Brasil” e de Weber Góes, em “racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro”. Segundo a cantora e professora de história, Preta Rara, além desse cenário, o silenciamento também se expressa na escola, pois pouco se falou das formas de resistência e do relevante papel da negritude no desenvolvimento do país: “houve um apagamento da nossa história, como se os africanos não tivessem contribuído com a construção desse país, levando os alunos a acreditarem que não havia resistência na época escravocrata”. 

No ECA o sentido de prioridade que compreende: “a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”.

Dos quatro aspectos que revelam a garantia de prioridade na lei, “a destinação privilegiada de recursos públicos” foi a que menos avançou nesses trinta anos. São inexpressivas as experiências do Orçamento Criança e Adolescente (OCA) efetivadas pelo Poder Público nos municípios brasileiros, para potencializar os investimentos em educação, saúde e assistência social, áreas prioritárias na proteção à infância e à juventude. Sendo assim, a luta pela revogação da Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos federais em saúde e educação, além de uma medida contrária ao ECA desconsidera a lógica da prioridade absoluta de crianças e adolescentes.

O relatório do Unicef, “30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil”, mostra que os governos tucanos  petistas, com as políticas de alívio da pobreza e transferência de renda, que tiveram impactos distintos e inúmeras diferenças entre si, por um lado, propiciaram a redução das privações na infância e da mortalidade por desnutrição, mas, por outro lado, nesses governos, as pessoas negras e pobres, principalmente crianças e adolescentes, foram alvos da eliminação física por armas de fogo.

As relações entre governos e as forças militarizadas, sob novas determinações históricas, continuam a atender os interesses das classes dominantes. Práticas sociais de violência, tortura e assassinato, ainda em curso na abordagem junto à população infantil em situação de rua, por parte de comerciantes, milicianos, policiais e governos, culminaram, no passado, na Chacina da Candelária (1993), momento de maior repercussão internacional e onde a estratégia higienista foi questionada pelos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos e, no presente, no aumento da aplicação de medidas socioeducativas, como a privação da liberdade, e numa letalidade típica de guerras. 

Dados distintos, de três períodos, mostram a necessidade de privilegiar a formulação e a execução das políticas sociais públicas de prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. O primeiro, mesmo antes da existência do Estatuto, identificou ações de grupos de justiceiros armados, conhecidos como “polícia mineira” ou milicianos. Em levantamento realizado pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), entre janeiro de 1987 e junho de 1988, somente nos municípios da Baixada Fluminense e Volta Redonda, foram comprovadas 306 mortes de crianças e adolescentes.

O segundo evidencia que há um recrudescimento da violência. No relatório do Unicef, os indicadores de homicídio apontam para mais de 80% dos assassinatos no Brasil direcionados às pessoas negras (pretas e pardas) entre 10-19 anos de idade. Os dados mostram que “entre 1990 e 2017, o número de homicídios na faixa etária de 10 a 19 anos mais que dobrou, passando de 5 mil para 11,8 mil casos ao ano, segundo dados do DataSUS. Em 2015, o número de meninos vítimas de homicídio no Brasil já era maior do que o número do total de meninos mortos na Síria (7,6 mil), a maioria em decorrência da guerra naquele ano”

E, em terceiro lugar, em reportagem de Paula Laboissière, para Agência Brasil, a cada 60 minutos, uma criança ou um adolescente morre no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo, seja por homicídio ou suicídio. A partir dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, em 2016, foram registrados 9.517 óbitos entre crianças e adolescentes no país. O número é praticamente o dobro do identificado há 20 anos – 4.846 casos em 1997 – e representa, em valores absolutos, o pico da série histórica. 

Um último elemento a ser destacado, a partir dessas reflexões, tem uma dimensão programática e diz respeito ao fortalecimento dos sujeitos políticos no Sistema de Garantia de Direitos e nos movimentos sociais. Se, por um lado, é preciso denunciar a ação genocida ao longo da história, por outro lado, é necessário criar espaços de formação política para o trabalho de base. Atualmente a condução política dos governos conservadores, nas três esferas, retoma práticas assistencialistas e clientelistas, presentes na história da proteção social combinadas à repressão. Porém, existem disputas (in)visíveis entre segmentos da sociedade civil, como os Conselhos Tutelares, órgãos inovadores que zelam pelo cumprimento dos direitos de crianças e adolescentes, que merecem atenção especial das universidades e dos segmentos progressistas. 

O Conselho Tutelar, espaço de disputa por hegemonia e construção de contra-hegemonia, embora seja constituído de forma heterogênea, é um órgão que defende o ECA e as bandeiras dos direitos humanos, porém, contraditoriamente, também são identificadas violações que atentam contra os princípios da legislação e visam: (a) adotar práticas assistencialistas e clientelistas para alavancar candidaturas ao Parlamento; (b) assegurar o predomínio de grupos armados em regiões pauperizadas e marcadas pela violência sob a falsa alegação de “manutenção da ordem”; (c) organizar segmentos religiosos para combater a concepção de Estado Laico e a suposta “ideologia de gênero”, (d) implantar formatos implícitos de evangelização e criar obstáculos para garantia de direitos humanos de crianças e adolescentes; (e) dificultar o entendimento do papel dos conselheiros efetuando confusão e o progressivo enfraquecimento da função protetiva do Conselho Tutelar; (f) culpabilizar individualmente as famílias, sem atentar para as violações do Estado e realização de ameaças policialescas e retirada das crianças do seio familiar; (g) reduzir a maioridade penal.

Por fim, o poeta insurgente, Carlos Drummond de Andrade, em “Nosso Tempo”, disse que “as leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”. Sua poesia expressa uma crítica subjacente ao nosso tempo e, analogamente, aos espaços coletivos e instituições onde os Poderes estão assentados. Nas disputas por hegemonia dificilmente se imagina uma relação social sem a mediação do Estado e das leis, contudo, percebe-se que, diferente da linguagem poética, as leis criadas na institucionalidade do Estado capitalista são insuficientes para garantir, plenamente, relações humanizadas e os direitos de crianças e adolescentes, propagados em sociedades supostamente democráticas. 

Na música Mágico de Oz, dos Racionais Mc, tem um relato que expressa o drama da criança sem infância no Brasil: “o meu sonho? Estudar, ter uma casa e uma família. Se eu fosse mágico? Não existia droga, nem fome e nem polícia”, sendo assim, que o nosso desejo de felicidade se converta em práticas cotidianas de respeito, dignidade e construção de uma sociedade onde os direitos de brincar, vestir, estudar, habitar, convivência familiar num ambiente feliz extrapole a letra da lei e se materializem, não apenas como mágica ou sonho.

Que essas mortes não sejam em vão. E que nos próximos anos os segmentos progressistas, ou seja, entidades sem fins lucrativos, universidades, conselhos profissionais, sindicatos, partidos de esquerda e movimentos sociais apoiem, com maior efetividade, os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, como os Conselhos Tutelares, que atuam em defesa do ECA e na construção de uma sociedade onde todas as crianças sonhem e tenham infância. Que esse movimento permita contrapor o conservadorismo e a intensificar um processo de organização política com vistas a respeitar as diferenças e a superar a realidade de infâncias profundamente desiguais. Uma sociedade melhor para crianças e adolescentes é melhor para todas e todos. Nunca foi tão importante resistir e lutar por direitos!

 

*Educador social, assistente social e professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFF. Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Direitos Humanos, Infância e Juventude (NUDISS/UFF). Membro associado do CEDECA-Rio e Coordenador do Grupo Temático de Pesquisa “Serviço Social, Geração e Classes Sociais” da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS 2019-2020).