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OPRESSÕES

Da produção à reprodução: o que a história de Cleonice tem a nos dizer? 

Camila Borges e Mariana de Almeida*, de Juiiz de Fora, MG

O texto que, aqui, segue parte de breves reflexões sobre o atual cenário de pandemia que estamos enfrentando, buscando situá-lo a partir de fenômenos que acompanham e estruturam a realidade brasileira, como a desigualdade social e a pobreza, entendendo, ainda, seu particular e severo desdobramento para a vida das mulheres.

Nesse cenário, apresentamos a história de Cleonice Gonçalves, mulher, negra e doméstica, uma das primeiras vidas levadas com a pandemia no Brasil. A memória de Cleonice se entrelaça na vida de tantas outras, revelando(-se), ainda, uma importante força motriz da sociabilidade capitalista. São essas as histórias que tanto nos abalam como, também, nos fazem ter a certeza de que outro horizonte é possível e necessário. Façamos-o em memória de seus nomes.

Covid-19 e o cenário da desigualdade social brasileira

Debater sobre desigualdade social e suas distintas expressões, neste atual cenário, numa espécie de olho do furacão no qual estamos mergulhados, é uma tarefa árdua. A conjuntura político-econômica presente está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural capitalista, atravessada pelos impactos dramáticos da pandemia da Covid-19, somado a uma ascensão global de governos de extrema-direita e (ultra)neoliberais, cujo projeto implementado vai na contramão das medidas sociais efetivas que necessitamos para o combate da crise social, econômica e sanitária em curso.

Se a desigualdade social brasileira se constitui como marca histórica de um país forjado nos processos de colonização, escravidão e dominação imperialista, a tendência traçada a partir do recente – mas nem tanto – quadro social não é nada promissora para a sua superação. O relatório da Oxfam (2020), em previsão divulgada, projeta que a crise econômica aprofundada pela Covid-19 vai impactar entre 6% e 8% da população mundial, o que pode fazer com que cerca de 500 milhões de pessoas entrem na condição de pobreza nos próximos anos. A situação é ainda mais alarmante e preocupante nas regiões e países periféricos do capitalismo.

Os dados do documento, América Latina y el Caribe ante la pandemia del COVID-19: efectos económicos y sociales, de 2020, apresentado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), ressaltam que o número de latino-americanos sobrevivendo em situação de extrema pobreza, atualmente, é de 67,5 milhões. Com o cenário da pandemia, a previsão é que esse número dispare para 90 milhões de pessoas, cerca de 30% a mais em relação ao número atual. No caso brasileiro, em específico, ainda segundo a Oxfam (2020), estima-se que o quadro de desemprego irá ultrapassar a já preocupante marca de 12 milhões, podendo alcançar mais 2,5 milhões de pessoas (sobretudo, os trabalhadores informais), o que empurrará ainda mais para frente o cenário da extrema pobreza no Brasil, que, em 2019, atingiu a crescente taxa de 13,5 milhões, segundo dados do IBGE.

Na contramão das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), presenciamos ações e posicionamentos de um governo genocida que aposta na tentativa de salvar o lucro consumindo vidas, especialmente, aquelas dos setores mais precarizados da classe trabalhadora. As medidas apresentadas pelo Governo Bolsonaro, que subestima a gravidade do coronavírus e se coloca contra a política de isolamento social, se voltam prioritariamente para a defesa dos grandes capitalistas, que já têm à disposição um pacote de R$1,2 trilhão para o enfrentamento da crise, enquanto aos trabalhadores informais, precários e desempregados foi ofertado, inicialmente, uma renda mínima emergencial de R$ 200. Uma verdadeira migalha que, a partir do papel da oposição no Congresso e da pressão popular, como nos chamados “barulhaços”, foi possível ampliar para o valor de R$ 600 para cada trabalhador e R$ 1.200 para mulheres chefes de família. E até mesmo para obter esse mínimo direito, problemas diversos são enfrentados por milhões de brasileiras e brasileiros que seguem sem saber se – e quando – irão receber o auxílio. Nesse cenário, se somam as dificuldades de acesso à internet, as filas nas instituições financeiras, as falhas no sistema operacional e de análise dos dados, sem contar o fato de que o auxílio não é proporcional a quantidade de filhos e filhas, e ainda permanece com a previsão de apenas três parcelas, mesmo com os efeitos imprevisíveis da pandemia ainda em marcha.

Sabemos, assim, que o auxílio é insuficiente e, por isso, é preciso arrancar ainda mais direitos e conquistas para garantir a vida da população nesse terrível cenário que se desenha com os impactos da pandemia. O Governo Federal, no entanto, não só se exime de seus deveres, como também demonstra seu desprezo pelas milhares de vidas já arrancadas nessa triste combinação entre crise, coronavírus e sistema de saúde precário e insuficiente. “Não sou coveiro”, “E daí? Não faço milagres”, para relembrar apenas algumas das recentes e criminosas declarações de Bolsonaro com relação ao número de mortos no Brasil.

Com uma subnotificação incontestável pela ausência de testes, atualmente, início de maio de 2020, segundo a Secretária de Saúde, o Brasil chegou a 162.699 casos confirmados do coronavírus, 55.350 pessoas recuperadas e 11.123 mortes, apresentando uma taxa de mortalidade de 6,84%. Todos os estados brasileiros já apresentam óbitos confirmados, mas a região sudeste é a mais atingida pela pandemia, com 39.928 infectados e 3.206 óbitos no estado de São Paulo e 14.156 infectados e 1.394 vítimas fatais no Rio de Janeiro. Nesse cenário, as mazelas estruturais do capitalismo adquirem contornos ainda mais perversos, o bairro Brasilândia, zona norte de São Paulo, por exemplo, tem 10 vezes mais mortes do que no Morumbi, bairro nobre da capital. O coronavírus escancara, ainda mais, a realidade de desigualdade social e pobreza que se expressa no cotidiano da maioria popular, cujo endereço torna-se um fator de risco e, quiçá, um dos mais letais.

Mulher, negra e doméstica: o que a morte de Cleonice tem a nos dizer?

E quando falamos em deterioração crescente das condições de vida da classe trabalhadora, não podemos ignorar os impactos específicos ao setor que, historicamente, enfrenta as consequências da exploração capitalista de maneira ainda mais severa: as mulheres, sobretudo, as mulheres negras e pobres. São as mulheres que, hoje, mais se destacam diante da crise do coronavírus, seja por estarem na linha de frente como maioria entre as(os) trabalhadoras(as) da saúde, da limpeza e demais serviços essenciais (e, com isso, mais expostas a contaminação do vírus) seja pelo aumento da sobrecarga das tarefas relacionadas ao lar e ao cuidado, seja pelo aumento dos casos de violência doméstica durante o isolamento, conforme constatado pelo relatório da ONU Mulheres.

Nesse cenário, temos a história de Cleonice que representa, tragicamente, a estrutura dominante que articula as opressões por gênero, raça e classe. Cleonice Gonçalves, mulher, negra, 63 anos, trabalhadora doméstica desde os 13 anos de idade, foi uma das primeiras mortes por Covid-19 no Brasil. Hipertensa e diabética, ela trabalhava há 20 anos na casa onde foi contaminada, zona nobre do Rio de Janeiro, no Leblon, bairro que tem o metro quadrado mais caro do país. A patroa havia retornado infectada pelo coronavírus do feriado de carnaval na Itália, mas não dispensou a funcionária e tampouco notificou sobre a sua contaminação. Cleonice, durante os dias de semana, de segunda a sexta-feira, dormia no local de trabalho, e nos finais de semana retornava para a sua casa em Miguel Pereira, a 125 km de distância, onde morava com o filho e parentes vizinhos.

No dia 16 de março, segunda-feira, a trabalhadora doméstica apresentou os primeiros sintomas, chamou um táxi e foi direto para o hospital público de Miguel Pereira. O primeiro diagnóstico apontou suspeita de infecção urinária e, com isso, ficou internada para maiores investigações. Em um país tão desigual, a tragédia foi anunciada na manhã seguinte, quando Cleonice evoluiu para um quadro de intensa parada respiratória. Por ironia ou não, a sua vida lhe foi retirada no dia 17, número da besta que representa a fatalidade do destino de milhares de brasileiras e brasileiros.

Segundo os familiares de Cleonice, a patroa comunicou à família da trabalhadora que estava com Covid-19 somente no dia de sua morte. Sebastião Barbosa, diretor do hospital que atendeu Cleonice, afirmou: “Se as informações tivessem chegado mais cedo, talvez a gente tivesse como mudar a história clínica”. Mas a história, mais uma vez, se repete.

Não é mero acaso ou azar que uma das primeiras vidas arrancadas pelo coronavírus no Brasil tenha sido a da Cleonice e o que ela representa. A pandemia do coronavírus tem escancarado a realidade de opressão e desigualdade social brasileira, onde a conta segue sendo paga pela vida e suor, sobretudo, das mulheres trabalhadoras. O trabalho doméstico (assalariado ou não), em razão do seu papel histórico, além de marcar o conjunto de mulheres, em maior ou menor grau, forja uma série de desigualdades sociais que se (re)produzem cotidianamente na vida das mulheres da classe trabalhadora, impactando, inclusive, na chamada feminização da pobreza. Dessa forma, o novo coronavírus vem arrastando consigo toda essa herança que combina mecanismos de produção e reprodução das velhas mazelas sociais, que impõem condições precárias e, muitas vezes, subumanas de vida a milhares de brasileiras e brasileiros. A história se repete e, com ela, todas as suas contradições. Nos cabe, então, aprofundá-las para que possamos tomar a direção do nebuloso percurso que se coloca à nossa frente.

É preciso “desmascarar” a realidade e aspirar novas primaveras

Se a nova conjuntura aberta com o cenário de pandemia nos coloca ainda mais dúvidas, incertezas e medos, impactando, inclusive, nossa saúde mental, também é verdade que em todo concreto é possível brotar flor, furando “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, como diria Drummond. O uso das máscaras de proteção, neste momento, é tão imprescindível quanto a necessidade de arrancar as estruturas que tentam mascarar nossa realidade desigual e forçar desesperança, pessimismo e imobilismo.

Na contramão da lógica individualista forjada na sociabilidade atual, as ações e campanhas de solidariedade de classe que se espalham por todo o país são exemplares, nos fazendo lembrar das possibilidades de plantio e cultivo das sementes capazes de romper com a aparente inalterabilidade da realidade concreta. Aqui, finalmente, a história se coloca a nosso favor. É preciso que nos apeguemos aos frutos deixados pela luta e resistência histórica de nossa classe, que tornam, assim, eternas todas as vidas tombadas cotidianamente no perverso fronte de batalha. Se, nesse sentido, as mulheres trabalhadoras são as mais expostas e vulneráveis, são elas também as protagonistas de importantes processos insurgentes presentes em nossa longa e recente história. Façamos, assim, dessa nossa própria realidade, com suas contradições e dinamismos, um propulsor da luta constante por sua superação, de modo que possamos respirar sem máscaras, viver sem amarras e florescer em novas primaveras.

*Integrantes do Setorial de Mulheres do PSOL de Juiz de Fora/MG.

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