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BRASIL

O vírus e a vida invisível da reprodução social

Carolina Freitas*, de São Paulo (SP)
Jorge Araujo / Fotos Publicas

(*Demorei muito mais do que gostaria para escrever esse pequeno texto porque trabalho, estudo e tenho um filho pequeno que está sem creche em função da pandemia)

 

Um vírus invisível que não podemos enxergar, pegar, prender, exterminar, assola neste momento a economia mundial… Mas, afinal, o que são os problemas da economia mundial? Eles se resumem às bolsas de valores? Às medidas anunciadas por ministros? Ao endividamento das grandes corporações?

Certamente todas essas questões envolvem os dilemas em que estamos metidos. E, vejam, se nós estamos metidos, significa dizer que essa economia mundial interessa a nós, pessoas. Contudo, nos fazem crer que o principal alvo de uma pandemia como a do coronavírus é o “mercado” quando, na verdade, essa economia é um todo das relações entre as próprias pessoas, como um velho barbudo ensinou.

Nas últimas semanas, ao redor do mundo, é como se esse vírus invisível tivesse a mágica de nos fazer ver tudo o que não se enxergava antes. Como se uma cortina tivesse caído e desnudado tudo o que se escondia atrás do palco da vida social: o imenso trabalho coletivo de reproduzir nossas vidas.

A orientação oficial de isolamento doméstico e de viver semanas e semanas nessas condições, enfim, refletiu um conjunto de desigualdades brutais entre as classes sociais que existiam antes do temor generalizado.

Para começar, o coronavírus chega ao Brasil por meio de pessoas infectadas que estavam viajando para outros continentes. Por isso a suposição inicial popular de que “o vírus era doença de rico”. Mas logo vimos que suas primeiras vítimas fatais foram uma empregada doméstica do Rio de Janeiro e um porteiro em São Paulo. 

Nada é mais fundamental da violência com que os ricos reproduzem suas vidas no Brasil do que pensar na raça, no gênero e no salário de quem limpa suas privadas, piscinas e mármores; quem abre as portas de seus carros, prédios e elevadores; quem cuida de sua comida, seu tempo livre e suas crianças.

Um imenso conjunto do proletariado brasileiro está imerso na tarefa de garantir toda a rotina diferenciada das famílias proprietárias, em suas casas, escritórios, garagens, condomínios, clubes, salões, supermercados, academias. 

São justamente empregadas domésticas, faxineiras, cozinheiras, babás, cuidadoras, enfermeiras, porteiros, vigias, motoristas, caixas, garçons, auxiliares, que figuram, ao mesmo tempo, entre as categorias de trabalho que mais empregam no Brasil e que são mais mal remuneradas. 

O vírus nos empresta lentes para olhar a vida invisível, essa  experiência comum e diária, essa “coluna vertebral” do cotidiano, que faz garantir a vida de todos nós.

Como trabalhadores, são superexplorados para garantir a discrepância berrante entre os modos de vida de alta renda e como sobrevivem a grande maioria das famílias trabalhadoras. Mas não deixam de ser trabalhadores quando não estão operando na manutenção dos centros de concentração de riqueza nas cidades. Também são trabalhadores expropriados quando passam horas dentro do transporte público e pagam um lugar para morar, comprometendo grande parte da sua renda com aluguel em bairros periféricos.   

A “responsabilidade social” de ficar em casa para atrizes de novelas globais termina onde começa a louça a ser lavada. A do âncora do jornal começa quando afirma que “não pode haver quarentena para todo mundo pois os pobres precisam ir atrás de seu ganho”. Já a “irresponsabilidade” começa com um empresário herdeiro infectado viajando com seus funcionários para uma praia na Bahia onde realizou uma festa, cheia de outros trabalhadores servindo a ele e seus amigos.

Nunca houve disposição dos proprietários em cuidarem de suas próprias vidas. Nunca houve disposição do Estado em manter serviços de qualidade à massa trabalhadora. Olhando o trabalho de reprodução social podemos observar como a crise se trata de uma contradição vida X vida. Quais vidas serão capazes de seguir sendo servidas e quais vidas morrerão por servir. 

Por isso, algumas provocações precisam ser respondidas:

Como vivem agora estes trabalhadores quando não há creches, escolas ou lazeres públicos para seus filhos? 

Quando não podem mais deixar as crianças com suas avós aposentadas que estão no grupo de risco, mas são as principais cuidadoras nas famílias em que a maioria é trabalhadora precária?

Como vão prover uma alimentação familiar adequada, quando muitos dependem da merenda escolar para evitar a fome das crianças e jovens?

Terão direito à quarentena ou receberão melhores remunerações essas trabalhadoras da “saúde cotidiana” dos patrões? Seguirão submetidas à loteria da sobrevivência, trabalhando e se aglomerando nos transportes? 

Serão reconhecidos aumentos salariais às auxiliares, às enfermeiras, que são o motor de funcionamento do sistema único de saúde, que tem que lidar agora com uma sobrecarga inédita em meio ao seu sucateamento? 

Que tipo de proteção terão os garis nas metrópoles?

O trabalho da reprodução social – expresso nos lares, nos serviços do Estado, nas cidades –, seja ele assalariado ou não, é o único freio de emergência numa crise pandêmica como esta que estamos vivendo. O vírus nos empresta lentes para olhar a vida invisível, essa  experiência comum e diária, essa “coluna vertebral” do cotidiano, que faz garantir a vida de todos nós. No Brasil, essa vida invisível é o trabalho de muitas mulheres e homens negros e pobres. Se neste e em todos os outros momentos na história tudo e todos eles (re)produziram, precisa se tornar mais visível para nós nesses tempos de crise que tudo deveria lhes pertencer.