Pular para o conteúdo
OPRESSÕES

Pelo fim do trabalho doméstico?

Karla Costa*, de Fortaleza (CE)
Arquivo / Agência Brasil

Trabalhadora doméstica em Brasília (DF).

Primeiro foi a Marília Gabriela, apresentadora, que revelou ter dispensado suas três trabalhadoras domésticas durante a quarentena, depois, a atriz Taís Araújo que, no seu perfil do Instagram, publicou um vídeo sobre a oportunidade que está tendo de descobrir os privilégios de que desfruta ao precisar cuidar da casa e da família sem os empregados que trabalham diariamente em sua residência e de como isso tem sido um desafio e um aprendizado.

O tema deste texto até poderia ser sobre o cuidado e de como essa tarefa tem sido realizada pelas mulheres, liberando o capitalismo de manter a reprodução da força de trabalho e servindo para consolidar condições ideológicas da apropriação do patriarcado aos seus interesses. O tema seria caro para o feminismo marxista, mas não vou discutir isso.

Primeiro, gostaria de dizer que acessei a informação a partir de uma crônica de Nina Lemos no blog Universa. Nesse texto, a autora reflete sobre a anomalia que é, no Brasil, a existência de trabalho doméstico, sendo, inclusive, motivo de espanto para o olhar estrangeiro. Em outros países, cita a autora, as pessoas cuidam de suas próprias casas, contratando, no máximo, uma faxineira. Angela Merkel, Chanceler Federal da Alemanha, já foi vista algumas vezes, olha só, fazendo suas próprias compras.

Também não quero entrar no debate fundamental, mas extenso para os objetivos deste texto, da divisão do trabalho doméstico em função do gênero nos diversos contextos nacionais. Meu foco aqui é a relação entre patroas e empregadas no Brasil. Nina Lemos faz uma avaliação que aponta, e ela está correta, o absurdo que é o trabalho doméstico no Brasil que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2018, teria aumentado. O número de domésticas atingiu a marca de mais de seis milhões.

Segundo o desejo da autora, as mulheres devem ter outras formas de trabalho que queiram desempenhar e quando forem domésticas que sejam diaristas pagas com um preço justo e por hora. Segundo a autora, Marília e Taís compõem o “lado bom da força”, pois muitas outras patroas sequer dispensaram seus empregados durante essa fase mais crítica da pandemia. Uma das primeiras vítimas da COVID-19 é justamente uma empregada doméstica, Dona Cleonice, que foi mantida trabalhando na casa dos patrões cientes de que estavam infectados pelo coronavírus.

Nina Lemos está correta em suas afirmações e indignação. Quero propor, no entanto, um aprofundamento que se fundamenta numa visão classista e de necessidade de transformação dessa realidade. Os dados apresentados de crescimento das mulheres em serviços domésticos no Brasil são verdadeiros, mas é preciso dizer que, ao passo que esse número aumenta, diminui o percentual dessas trabalhadoras que possuem carteira assinada (11,2% a menos) mesmo depois de 2015 com a Emenda Constitucional 72 que igualou os direitos trabalhistas das domésticas aos direitos dos demais trabalhadores.

Dessa forma, é preciso pensar a questão sob duas perspectivas. Analisando a situação concreta em que vivemos, em que a pandemia é uma realidade e precisa ser combatida no interior das nossas condições sociais, liberar as empregadas domésticas com remuneração para que elas possam cuidar de si e dos seus é uma atitude progressista, mas só o é porque a nossa realidade é de exploração do cuidado como trabalho doméstico.

O trabalho doméstico tem sido desde sempre uma forma de garantir a sobrevivência das famílias trabalhadoras brasileiras e está enraizado na nossa constituição como nação. É um trabalho que é feito por mulheres majoritariamente pretas, pois o que as restou após a escravização a que foram submetidas e só em 2015 uma regulamentação reconhece direitos para o trabalho que exercem? Ora, o trabalho doméstico é mal remunerado, socialmente desprezado porque, numa sociedade cujo racismo é uma estrutura, é trabalho de preta.

Falar no fim do trabalho doméstico para construir novos hábitos para as mulheres das classes médias e altas, levando mais de seis milhões de mulheres para a informalidade como diaristas, quando o reconhecimento de seu trabalho é tão recente e ainda é um desafio de consolidação, é uma análise apressada e limitada ao ponto de vista das classes médias e altas a quem as domésticas servem.

 

TEXTOS RELACIONADOS
O vírus e a vida invisível da reprodução social
Conoravírus e a vida das mulheres: a necessidade de quarentena e o medo da violência doméstica


Se compararmos com o Brasil, a situação de trabalhadoras domésticas em países europeus vai aparentar valorização e boa remuneração, mas é preciso considerar questões como o custo de vida mais alto o quê desvaloriza o salário; não há estabilidade nem garantias de direitos, os sistemas de aposentadoria, muitas vezes, são privados; são trabalhos socialmente desvalorizados, na maioria das vezes, realizado por imigrantes etc.

Tomar um contexto completamente diferente para analisar a situação brasileira, limitando-se a uma análise moral, cultural, de costumes, hábitos pode enviesar o ponto de vista. É preciso modificar a estrutura da sociedade para que outras relações sociais sejam possíveis. Enquanto houver uma sociedade que considera a exploração do trabalho da maioria para apropriação privada pela minoria algo justo, não há como falar em mudança de hábitos, pois, no fundo, é só retórica vazia.

A solução para o trabalho doméstico no Brasil é uma transformação social tão profunda que todas as mulheres possam cuidar de seus lares, trabalhar e ter tempo de lazer, que não existam mansões nem favelas, que diferença de cor de pele não gere exclusão. Comecemos colocando as coisas em seus devidos lugares: a riqueza dessas mulheres empoderadas, consideradas bem sucedidas pela lógica capitalista é fruto do trabalho dos pobres desse país. Não há riqueza sem pobreza.

Tenhamos atenção para que esse discurso da sensibilidade, do cuidado, da mudança de hábitos da burguesia, do período de crise como possibilitador de reflexões sobre os privilégios das classes altas não seja utilizado como uma nova ideologia de dominação de massas para que a gente pense que elas (e eles) querem mesmo mudar as coisas. É só uma nova forma da burguesia proteger a própria consciência das profundas consequências que a exploração de classe causa na vida das trabalhadoras e trabalhadores.

 

*Karla Costa integra o movimento Resistência Feminista.