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OPRESSÕES

Conoravírus e a vida das mulheres: a necessidade de quarentena e o medo da violência doméstica

Tatianny Araújo* | Edição: Caroline Castro**
EBC

Estamos todas diante de uma pandemia que nos apresenta a sociedade atual diante de vários dilemas, afinal, há também o caráter social da doença, de sua proliferação e formas de combate. Para nós mulheres, além do alerta sobre o contágio, fica o receio de quem vive uma vida de violência, é preciso falar isso, mesmo em tempos de COVID-19.

Em internet e jornais

Revista e televisão,

Eu vejo e sinto revolta

Com tanta judiação

Mulheres perdendo a vida

Que coisa mais descabida

E não vejo solução¹

Para a maioria de nós mulheres, endemias são parte de nossa realidade: 13 de nós morremos a cada dia, no Brasil, por feminicídio. Não é exagero chamar de endemia. Afinal, é algo tão frequente quanto doenças como febre amarela, malária, esquistossomose, dengue, doença de chagas, tuberculose, entre outras. Isto é, ele é parte de nossa realidade cotidiana, pode ser freado a partir de adoção de medidas, mas que se agrava na falta delas. E o que o COVID tem a ver com isso? Bem, a China e os Estados Unidos mostram que, no confinamento, as mulheres apanham ainda mais dos maridos.

A China não nos indica apenas a força da rápida propagação do vírus. Basta olharmos para lá, ou para o resto do mundo, para avaliar as curvas de contágio, expansão de infectados e números de mortos, e refletir sobre os possíveis cenários no Brasil (é possível acompanhar quase em tempo real a evolução do número de infectados e mortos por dia e localidade, veja a matéria da BBC²). Mas também é preciso olhar esses mesmos países para ver a relação entre a quarentena e a violência contra a mulher. Faz-se necessário lembrar que há subnotificações e formas diferentes de detectar o número de infectados, alguns países fazem testes em massa, outros apenas em casos mais graves. E o mesmo atinge os dados de violência contra as mulheres. As comparações devem levar em conta a estrutura que se tem, leis, canais de atendimento, entre outros fatores. Mas nem por isso, deixam de ser importante, afinal, assim como contágio e mortes país a país nos serve de parâmetro, as notícias sobre a violência de gênero, racismo e xenofobia também servirão. A revista Galileu foi uma das primeiras a trazer esse recorte, mostrando a relação entre a pandemia e o aumento da violência doméstica na China, a partir de matérias da BBC:

De acordo com o que a ativista chinesa Guo Jing contou à BBC, desde que as pessoas começaram a passar mais tempo em casa para prevenir a infecção por coronavírus, mais mulheres estão noticiando casos de violência que sofreram ou presenciaram. Além disso, Feng Yuan, da ONG de defesa à mulher Weiping, disse que sua organização forneceu três vezes mais consultas às vítimas do que antes das quarentenas³

A entrevista traz o relato de parentes preocupados com uma mulher a partir de suas publicações nas redes sociais. Felizmente a família conseguiu, após muita pressão, autorização para ir até a província onde ela estava e buscar a mulher e seus filhos, que já não comiam há dias:

Um desses casos foi o de uma parente da ativista Xiao Li, que vive na província de Henan. Segundo ela, a familiar contou ter sido agredida pelo ex-marido em uma rede social chinesa. “Estávamos super preocupados com o quão fácil era para o agressor bater nela durante a quarentena”, disse a chinesa4

O caso não só nos mostra a realidade que está posta para as mulheres com a quarentena, mas nos faz pensar nas mulheres sem familiares próximos, sem acesso às redes ou mesmo, que desconhecem a violência doméstica e o que temos de medidas protetiva. E mais, a violência se estende aos filhos, de formas diferenciadas e por vezes, tão cruéis quanto à violência contra a mulher.

Violência de gênero, COVID-19 e o governo de extrema-direita de Trump

Os EUA, chama a atenção pela sua forma de atuar diante do coronavírus, tal qual o presidente do Brasil, preferem os ataques à China e o bombardeio de “Fake News” às medidas concretas de contenção da pandemia.

Infelizmente, como aqui ou na China, a questão da quarentena e violência doméstica está colocada! A cultura do assédio, estupro e violência física, vem sendo alimentada através de discursos de ódio, da misoginia, da xenofobia, do racismo! Já temos algumas evidências nessa direção, alarmando os movimentos de mulheres para buscar formas de prevenção.

Nos Estados Unidos, onde 5.218 pessoas foram infectadas com o coronavírus, a Linha Direta Nacional de Violência Doméstica relata que um número crescente de pessoas que ligam diz que seus agressores estão usando o COVID-19 como um meio de isolá-los ainda mais de seus amigos e familiares. “Os agressores estão ameaçando jogar suas vítimas na rua para que fiquem doentes”, disse à TIME Katie Ray-Jones, CEO da Linha Direta Nacional de Violência Doméstica. “Ouvimos falar de alguns recursos financeiros retidos ou assistência médica”5

BRASIL: A pandemia no país que que ocupa o 5º lugar no mapa da violência de gênero

Por aqui, podemos nos aproximar do feminicidio como uma epidemia, a partir da análise que estamos em um surto nacional, isso é, o agravamento da “endemia feminicidio” em nosso país, em determinado período – o que observamos a partir da chegada ao governo federal do sr. Jair Bolsonaro, e de avanços de governos de extrema-direita em várias cidades. Os números nos mostram o que o movimento de mulheres alerta há tempos:a chegada de governos neofascistas, de extrema-direita, com discursos machistas, racistas e lgbtfóbicos, traria um aumento considerável de casos de violência ligados a preconceitos tão arraigados em nossa sociedade.

Não há o que se comemorar no Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher no Brasil (10/10), levando-se em conta os dados atuais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu 13º Anuário, publicado em setembro de 2019. A violência sexual no país atingiu os maiores índices registrados em 2018, com crescimento de 4,1%, segundo o levantamento — a cada hora, quatro meninas de até 13 anos de idade são estupradas. O feminicídio cresceu 4%, causando 1.206 mortes, sendo 88,8% das mulheres vitimadas pelo próprio “companheiro” ou ex-“companheiro”. A violência doméstica aumentou 0,8%: um caso foi registrado a cada dois minutos.6

Não que os números da violência de gênero não fossem significativos antes, principalmente em relação à violência doméstica, seja ela física ou sexual. É no ambiente doméstico onde reside o problema do grande número de estupros de meninas e adolescentes e seus algozes são pessoas ligadas a elas, que hoje podem estar dividindo esse espaço 24 horas por dia – e, sabe-se lá por quantos dias e meses consecutivos, diante da perspectiva do longo período de confinamento durante a  pandemia, ainda em fase inicial no Brasil.  Os dados são terríveis, 1 a cada 3 mulheres sofre violência física ou sexual em sua vida, de acordo com os dados da Organização Mundial de Saúde – OMS. No Brasil não é diferente, ele é o 5º país com maior taxa de assassinatos de mulheres no mundo, com uma mulher morta cada 2 horas, com 503 vítimas de agressão por hora e 5 espancamentos a cada 2 minutos.7

O Mapa da Violência 2015 também revela o peso do feminicídio íntimo – praticado em contexto de violência doméstica – no quadro da violência letal praticada contra as mulheres no Brasil.

Dos 4.762 homicídios de mulheres registrados em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares – ou seja das 13 mortes violentas de mulheres registradas por dia, sete foram feminicídios praticados por pessoas que tiveram ou tinham relações íntimas de afeto com a mulher, nos termos estabelecidos na Lei Maria da Penha.8

Sem a pandemia já lutamos por nossas vidas, em nosso cotidiano machista e opressivo. Em um momento como esse, deveríamos nos sentir aliviadas por estar junto aos nossos, mas é justamente onde reside o perigo.  Não desejo aqui provocar qualquer recusa em relação à quarentena. Devemos sair em defesa deste procedimento, que tem se mostrado como o mais eficaz no combate à veloz propagação do vírus, e ir além: exigir que todos tenham o direito a ela, excetuando os serviços essenciais. Se dizem que é uma infecção democrática por não escolher classe/gênero/raça/etnia, sabemos bem que mais sofre com ela: os mais pobres! Principalmente, as mulheres! Por estarem nos empregos mais precarizados, na informalidade, ou mesmo com carteira assinada, mas sem espaço para negociar o isolamento.

Vejam onde estão as mulheres negras, que são maioria das empregadas domésticas e precisam seguir saindo as ruas para garantir o sustento, seguem cuidando da casa e dos filhos de outras mulheres, esperando uma tomada de consciência que por vezes não vem ou vem como “favor”, lhes custa humilhações ou trabalho dobrado no futuro. Sim, é preciso exigir a quarentena para todas! Mas isso não pode fechar os olhos para uma realidade perversa, a da violência em ambiente doméstico!

Se temos uma ministra que fala que rosa é de menina e azul é de menino, sabemos bem a quem vai recair todos os afazeres domésticos no período. E isso leva a exaustão e a conflitos. A Ausência do debate de gênero e sexualidade nas escolas, vai acentuar a dura realidade de ser mulher no Brasil, desde a questão da responsabilidade com os afazeres domésticos e cuidados com os adoecidos, ao problema da violência contra meninas e mulheres! No caso dos estupros, os abusadores são em sua maioria pessoas com relação com a vítima – quantas mulheres estão saindo de casa para trabalhar durante a pandemia, seja por ser da saúde, ou atendentes de mercados, ou pessoas da limpeza? E com quem ficam suas crianças? E os estupros de mulheres casadas na negativa de sexo neste período? E os relatos de homens que impedem suas companheiras de usarem contraceptivos, como farão para não engravidar? A falta de prevenção e de combate à cultura do estupro, a ausência de direitos sexuais e reprodutivos – da justiça reprodutiva –  em nosso cotidiano nos demonstrará agora sua pior faceta!

A violência doméstica, agravada pela quarentena, também se ampliará pela difícil crise pela qual estamos passando. As crises econômicas com expressões sociais, sempre foram terríveis para as mulheres, os homens acostumados a serem “provedores”, entram em choque com sua condição social e a manutenção de sua masculinidade. Os tempos serão difíceis para todos, mas para as famílias mais pobres, será severamente cruel. Como ficam esses lares? Abalados pelo confinamento e miséria, mulheres sem ter para onde ir e como se proteger, estarão ao lado de seus algozes. Se há subnotificações da infecção pelo mundo, e no Brasil, temos indo por esse caminho, se há transportes de corpos para incineração, como pensarmos na violência que mata? Como saber como as mulheres estão passando quando confinadas em lares? Como ter a certeza do “morreu de que?”.

Não podemos permitir que a pandemia jogue para debaixo do tapete uma realidade perversa, epidêmica em alguns casos, endêmicas em outro: a violência contra a mulher! É preciso manter e ampliar os canais de atendimento, ter planos de prevenção, acionamento de instituições e medidas para as urgências, manutenção dos quesitos de gênero/raça/cor nas portas de entrada com a verificação de casos de violência e abusos para além da COVID-19. É preciso que governos elaborem planos de contenção de violência levando em consideração a diferença existente entre as mulheres, aplicando políticas de atendimento às vítimas a partir de normas e diretrizes já existentes, reforçadas pelas políticas de saúde como a Política Nacional de Saúde da População Negra9 afinal, é um grupo populacional com tendência a várias comorbidades (hipertensão arterial, por exemplo). Se a porta de entrada ou canais de atendimento não tiverem essa compreensão, os casos que vão importar serão as das atrizes globais! É preciso consultar as organizações de mulheres e para ouvir sobre as necessidades reais e o melhor combate à toda forma de violência em tempos de pandemia! Todas as vidas importam! É pela vida das mulheres!“A violência domestica,

É bem ruim com certeza.

E dormir com inimigo

É viver sempre indefesa.

A mulher tem que acordar

Com muita garra lutar

Em prol da sua defesa10

 

*Tatianny Araújo – Ativista e direção do PSOL RJ, é Militante da Resistência Feminista, servidora da Saúde Federal e estudante do Serviço Social da UFRJ.

** Carol Castro, jornalista, com passagens como repórter e editora pelas revistas Superinteressante, Galileu e CartaCapital.

 

Referências

¹ Trecho do Cordel “Violência contra a Mulher” de Dalinha Catunda

²https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51987873

³https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/03/violencia-contra-mulher-aumentou-durante-quarentena-da-covid-19-na-china.html

4 Idem ao 2

5 Tradução da matéria: https://time.com/5803887/coronavirus-domestic-violence-victims/

 6https://periodicos.fiocruz.br/pt-br/content/viol%C3%AAncia-contra-mulher-e-o-feminic%C3%ADdio-crescem-no-brasil

7https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/capitulos/qual-a-dimensao-do-problema-no-brasil/

8 Idem ao 6

9http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra.pdf

10 Idem ao 1