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BRASIL

A tutela militar ao governo Bolsonaro

Demian Melo, do Rio de Janeiro, RJ

Walter Braga Netto, chefe do Estado-Maior do Exército

Ao divulgar nas redes sociais um vídeo de uma pessoa defendendo um golpe de Estado em frente ao Palácio da Alvorada, como fez nessa quinta, dia 2 de abril, Bolsonaro, mais uma vez, pregou um golpe. Respondendo a cidadã (que se identificou como professora), que pediu para o presidente “colocar os militares nas ruas” para restabelecer as atividades normais, no que Bolsonaro afirmou “Pode ter certeza que senhora fala por milhões de pessoas”. No Twitter  com o vídeo, escreveu: “Professora em comovente depoimento para o presidente da República. Peço Compartilhar.” 

Sabemos que não é a primeira vez que Bolsonaro prega o golpe (um autogolpe, no caso), mas é preciso registrar que a mensagem foi dirigida, além de sua base social, também às Forças Armadas. Fica a questão: os militares podem apoiar um golpe de Estado de Bolsonaro, que feche o Congresso, o Supremo, imponha censura a imprensa e imponha um regime de exceção no Brasil?

Os militares e Bolsonaro 

Como é conhecido, Bolsonaro é extremamente popular entre a base das Forças Armadas e na média oficialidade. Quanto a alta oficialidade, embora o apoio ainda seja significativo, os constantes embates entre os filhos do presidente e algumas figuras importantes como o general Santos Cruz provocaram problemas importantes. 

Logo no início do governo, a quantidade de militares ocupando o primeiro e segundo escalão do governo (1), e a regularidade com que militares são nomeados para as mais variadas áreas do governo demonstra a enorme importância que o meio castrense possui nesse governo. Se recuarmos mais no tempo poderemos observar como a política dos quarteis foi importante para a eleição de 2018, já que a prisão de Lula e o impedimento de sua candidatura – que pavimentou o caminho para a eleição de Bolsonaro – foi decidido por um Supremo pressionado pelas manifestações de generais, particularmente importante no caso do Twitter do general Villas Boas em abril de 2018.  (2)

Num primeiro momento, no meio da imprensa surgiu a tese de que os militares seriam capazes de moderar o radicalismo de Bolsonaro, mas como de forma arguta aponta o historiador João Roberto Martins Filho “alguns componentes do núcleo militar da nova administração tinham uma folha corrida de indisciplina e desrespeito à hierarquia”. (3) A expectativa era uma quimera.

Assim, embora o meio militar seja um dos principais pontos de apoio do governo Bolsonaro, não é uma relação desprovida de contradições. Dependendo da evolução da crise, descartar o atual presidente da República pode estar no horizonte do núcleo militar. Especialmente se o principal capital político de Bolsonaro, a sua popularidade, seja solapado.

Os militares e o governo: a crise segundo a imprensa

Na semana passada alguns órgãos de imprensa como a Folha de S. Paulo, Estadão e Globo noticiaram o desconforto e as reuniões da cúpula militar para discutir a crise do governo. (4) Um dos resultados desse movimento foi visto no início dessa semana, quando o general Braga Neto, atual chefe da Casa Civil, passou a coordenar as coletivas de imprensa diárias que até o fim de semana eram feitas pelo ministro da Saúde para informar a população sobre a evolução da disseminação da COVID 19 no Brasil, o número de contaminados e de mortes pela doença. 

Já na segunda feira, Braga Neto entregou bilhetes ao ministro Mandetta e encerrou de forma sumária a coletiva quando um jornalista perguntou ao ministro da Saúde se ele poderia comentar o fato do presidente da República ter feito um rolezinho na periferia de Brasília, ou seja, descumprindo a determinação oficial de manutenção do isolamento social. 

Naquele mesmo dia os bolsonaristas e o próprio Bolsonaro divulgavam mais uma fake news, a de que o chefe da Organização Mundial da Saúde teria criticado o isolamento social, editando uma parte da fala de Tedros Adhanom Ghebreyesus para endossar essa irresponsabilidade. (5) O engraçado é que na semana passada o guru do planalto, o charlatão Olavo de Carvalho estava chamando o diretor geral da OMS de “comunista”. É mais que evidente que as teorias conspiratórias espalhadas pelos filhos do presidente, por este e pela militância bolsonarista tem servido para entreter a sua base social. Mas agora, num ato de desespero, as teorias conspiratórias e suas manipulações e fake news são usadas para negar a gravidade da crise sanitária global, pois sabem que seus efeitos políticos podem demolir a popularidade de Bolsonaro e colocar seu governo em apuros. 

O Estado Maior do Planalto

Na terça, dia 31, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e os comandantes das três armas, respectivamente o almirante Ilques Barbosa Junior (Comandante da Marinha), o brigadeiro Antônio Bermudez (Comandante da Aeronáutica) e o alegadamente “profissional e legalista” general Edson Leal Pujol divulgaram uma nota a imprensa onde celebravam o golpe de Estado de 1964, denominando-o eufemisticamente de “Movimento de 1964”, e caracterizando-o como “marco para a democracia brasileira”. (6) O texto é a reafirmação da velha visão das Forças Armadas como “salvadores da pátria ameaçada pelo comunismo”, num teor similar ao que sempre circulou nos quarteis desde o fim da última ditadura militar, só que no contexto atual assumiu uma conotação política mais importante. Assim, a celebrada onda de manifestações bolsonaristas em frente aos quarteis “pela intervenção militar” foi trocada pelo posicionamento oficial do alto comando que é uma peça de revisionismo histórico. Na parte da noite, o esperado pronunciamento do presidente da República em rede de rádio e televisão foi percebido imediatamente como um “recuo” por parte da imprensa, entretanto, pode ser melhor compreendido como uma manobra diversionista.

No dia seguinte, primeiro de abril, quando o país amanhecia com mais uma Fake News no Twitter do presidente (7), o site Defesa.net, onde são divulgadas as opiniões políticas das Forças Armadas, publicou um texto sugestivamente chamado Gen. Braga Neto assume o Estado-Maior do Planalto. (8) Neste, os dados mais relevantes dão conta de que as reuniões do alto comando da semana passada resultaram na maior militarização do governo, com o general Braga Neto, ex-Comandante do Estado Maior do Exército, assumindo a posição protagonista no governo, o que se coaduna com já mencionado papel que o general assumiu nas coletivas de imprensa do governo no contexto da pandemia.

Conforme apontaram recentemente Rejane Hoeveler e Danilo George, as movimentações em prol de um golpe militar, que estão no DNA do presidente e vice-presidente da República se tornaram mais explícitas desde o início da pandemia, quando parece estar se formando uma tempestade perfeita para uma solução desse tipo. Afinal, é só abrir qualquer órgão de notícias em qualquer horário do dia para assistir uma persistente campanha do bolsonarismo contra as instituições da República, instituições que segundo a teoria liberal são os contrapesos do poder Executivo: o Legislativo e o Judiciário, alvo de campanhas permanentes pelo seu fechamento, como no último dia 15 de março. Vale acrescentar que a permanente campanha contra a imprensa tradicional, chamada de extrema imprensa (um dos muitos termos importados da Alt Right estadunidense que formam a novilíngua do bolsonarismo) é também uma campanha contra uma das instituições tradicionais da ordem liberal. O sentido de tal movimento não é outro senão a pregação pelo fechamento do regime político.

Voltando à manobra militar desta semana, o texto anteriormente publicado no portal Defesa.net assinala que o protagonismo do general Braga Neto teria sido acordando pelo comando militar e o próprio Bolsonaro, e sugere que teria sido de Paulo Guedes a ideia do general Braga Neto teria a missão de “reduzir a exposição do presidente”, deixando-o “se comportar como se não pertencesse ao seu próprio governo”. Em tal acordo, o general passaria a enfeixar ações do poder Executivo, podendo, inclusive, “contrariar declarações de Bolsonaro”. É claro que numa leitura crítica é possível perceber que o teor da nota publicada no site militar tem o propósito de negar qualquer tipo de desconforto entre o comando das Forças Armadas e Bolsonaro, atribuindo isso a especulações da “extrema imprensa”. Atribui a crise à própria “extrema imprensa” ao lado das oligarquias estaduais e do Congresso, e alega que o meio empresarial e o sistema financeiro apoiam o governo Bolsonaro (o que não é de todo errado, como demonstraram Hoeveler e George no artigo supracitado e nas declarações recentes de empresários bolsonaristas contra o isolamento social desde a semana passada).

Por lado, é interessante como a nota do portal militar trata a mensagem de vídeo do general Pujol divulgada no dia 24 de março, que parte da imprensa e mesmo da esquerda enxergou como sinal de ruptura da cúpula militar com Bolsonaro (já que divulgada horas antes de Bolsonaro realizar um pornográfico pronunciamento à nação em que minimizava a pandemia global da COVID-19, despejando suas conhecidas imbecilidades). Pois bem, parece que realmente o portal militar está certo em ironizar essa leitura, como pode ser demonstrado na nota golpista divulgada à imprensa no dia 31 de março (que já nos referimos acima, assinada por Pujol). De qualquer modo, acreditar que não exista nenhum desconforto entre o comando das Forças Armadas e Bolsonaro é um equívoco, pois na mesma nota divulgada no portal militar existe a menção a um Twitter de Carlos Bolsonaro, o filho mais espalhafatoso do presidente, onde este ataca os generais e é, pela enésima vez, caracterizado como “trotskista de direita”.  (9)

Em síntese, a operação militar em curso se direcionou a manter o atual esquema do poder, mantendo a política para a administração da crise do Ministério da Saúde que, embora sabotada pelo próprio presidente da República, é a única possível frente ao grave quadro social que se desenvolve. A preocupação com o esperado caos social é o que teria justificado à cúpula militar articular esse novo arranjo do poder, adiando a solução Mourão para um momento em que as manobras midiáticas e irresponsáveis de Bolsonaro percam eficiência. Talvez o espetáculo tétrico com os carros do Exército carregando corpos pelas ruas do país, como se referiu o ministro Mandetta em acalorada reunião no Palácio do Planalto no último dia 29 de março, seja o fim do bolsonarismo. 

O conflito entre Mandetta e Bolsonaro tem se intensificado, e deve assumir um tom mais crítico com a entrevista que Bolsonaro deu a rádio bolsonarista Jovem Pan na noite de quinta feira, onde teceu críticas ao ministro da Saúde e falou em baixar uma MP acabando com a quarentena na semana que vem, (10) enquanto Mourão reafirmou na parte da tarde a necessidade de manutenção da política de isolamento social defendida por Mandetta e pela maioria dos governos estaduais. (11)

O problema é que o que se prepara como hipotética ordem pós-bolsonarista seja pintada de verde-oliva. 

 

NOTAS

1 – “No quadro publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo no começo de março, nos cargos abaixo do status de ministro, havia 52 oficiais do Exército, 16 da Marinha e 3 da FAB.” MARTINS FILHO, João Roberto. A ordem desunida: militares e política no governo Bolsonaro. Perseu, São Paulo, n.18, p.167-193, 2019, p.168.

2 – Cúpula do Exército se junta à pressão sobre STF no dia D de Lula. El País, 04/04/2018 apud MARTINS FILHO, A ordem desunida, op. Cit., p.172.

3 – Idem, p.168-169.

4 –  Cf. MELO, Demian. Os militares na política bolsonarista. EOL, 29/03/2020.

5 –  Vídeo do diretor da OMS foi tirado de contexto para validar discurso de Bolsonaro. O Estado de S. Paulo, 31/03/2020.

6 –  Seria preciso lembrar que no ano passado, no primeiro ano do governo Bolsonaro os festejos do 31 de março foram os maiores desde o fim oficial da ditadura militar, em 1985. Apud MARTINS FILHO, A  ordem desunida, op. Cit., p.176.

7  – Na manhã de 1º de abril Bolsonaro divulgou no Twitter um vídeo onde um homem mostrava um galpão do Ceasa de Belo Horizonte vazio, alegando que estava havendo desabastecimento em razão da quarentena. Pouco depois, quando a imprensa visitou o local e publicou reportagens demonstrando que aquele vídeo havia sido gravado num dia onde não movimento no local, e um repórter da CBN gravou um vídeo com a situação do Ceasa naquele mesmo dia, com movimento regular e estoque, Bolsonaro pediu desculpas e apagou o vídeo. Cf. MAIA, Gustavo. Bolsonaro pede desculpas por ter divulgado vídeo com informações falsas sobre desabastecimento. O Globo, 01/04/2020.

8 –  Exclusivo – Gen Braga Neto Assume o Estado-Maior do Planalto. Defesa.net. 01/04/2020. http://www.defesanet.com.br/ncd/noticia/36301/Exclusivo—Gen-Braga-Neto-Assume-o-Estado-Maior-do-Planalto/?fbclid=IwAR3tGTJQ5nm5KOXeLwMUnRrh8EQeOhPAEroqMS8WqSlcBO-p1VA2E7NqR6o A opinião política das Forças Armadas também podem ser acompanhadas pelos pronunciamentos públicos de instituições como o Clube Militar, e esse publicou no dia 1º de abril notas: uma de apoio ao presidente e outra nota de repúdio ao ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, por ter dado prosseguimento a uma denúncia feita por um deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) a Bolsonaro. Cf. BARBOSA, Eduardo José. Nota de apoio. Clube Militar, 01/04/2020. https://clubemilitar.com.br/artigo/nota-de-apoio/ e BARBOSA, Eduardo José. Nota de repúdio. Clube Militar, 01/04/2020. https://clubemilitar.com.br/artigo/nota-de-repudio/ 

9 –  O termo faz referência a uma declaração do general Villas Boas contra Olavo de Carvalho, a quem o general acusou de ser “um Trotski da direita”. Na metáfora, atribui-se ao revolucionário russo a pecha de “sabotador”, epiteto bem ao gosto da leitura stalinista que na lavra do general produz esse termo igualmente calunioso.

10 –  CAETANO, Guilherme. Bolsonaro diz que ‘falta humildade’ a Mandetta e que ‘nenhum ministro é indemissível’. O Globo, 02/04/2020. CANCIAN, Natália. ‘Quem tem mandato fala, e quem não tem, como eu, trabalha’, diz Mandetta após críticas de Bolsonaro. Folha de S. Paulo, 02/04/2020. SHALDERS, André. Bolsonaro diz que pode determinar abertura do comércio com ‘uma canetada’ semana que vem. BBC Brasil, 02/04/2020.

11 –  SABINO, Marila. Mourão: ‘Temos que continuar com a política de isolamento’. O Estado de S. Paulo, 02/04/2020.