Acordo as cinco da manhã
De segunda a sexta eu trabalho
O vizinho que é conspirador
Fala que eu me envolvo em bagulho errado
Comprei a minha barca, mas não sou ladrão
Meti meu cordão de ouro, mas não sou ladrão
Levantei o meu barraco
Mas não sou ladrão (3x)
No carnaval de 2020, o cantor baiano Igor Kannário emplacou mais um hit para a folia momesca: Maloqueiro ousado. No balanço da swingueira do pagode baiano – marca registrada do cantor – o “Príncipe do Gueto” faz uma denúncia da forma racista pela qual a sociedade e o Estado enxergam o favelado: mesmo trabalhando de segunda a sexta, sendo você negro e/ou favelado, vai precisar gritar diversas vezes, como na música, que “não sou ladrão”.
No entanto, não foi somente a aposta musical de Kannário que deu o que falar neste carnaval: novamente, o cantor se envolveu numa polêmica a partir das suas declarações sobre a postura violenta da Polícia Militar com a sua pipoca. Essas declarações geraram respostas do secretário de segurança pública da Bahia, do próprio governador do Estado, e do prefeito de Salvador – e é sobre isto que queremos tratar neste texto.
Quem é o Kannário?
Anderson Machado de Jesus, artisticamente chamado de Igor Kannário, nasceu no bairro da Liberdade, periferia de Salvador, onde viveu grande parte da sua vida. Nos últimos anos, o “Príncipe do gueto” sempre teve a sua carreira rodeada de polêmicas, que vão desde o seu posicionamento acerca da legalização da maconha até a postura da polícia no carnaval de salvador. É interessante refletir que ainda de forma mais contraditória, Kannário filia-se a um partido de direita (PHS) e vence as eleições para vereador em 2015; hoje é deputado federal por outro partido de direita, o DEM.
Como poderia um porta voz dos favelados, do povo do gueto, que em tese defende pautas que são pautas da esquerda – como a legalização das drogas e contrário à violência policial nas periferias – ser parlamentar por partidos de direita? A título de exemplo destas contradições, Kannário votou pela reforma da previdência, o que ocasionou uma enxurrada de críticas de diversos dos seus seguidores/eleitores. Mas voltemos ao carnaval.
Nos últimos carnavais, um fenômeno está plenamente estabelecido no circuito do Campo Grande: a pipoca do Kannário. Num trio sem cordas, o artista leva uma multidão para as ruas, que o segue fielmente ao longo da avenida. Esta multidão é composta basicamente por negros/negras, periféricos (as), e que se sentem representados (as) pelas canções do pagodeiro.
Por outro lado, lidar com multidões pulando atrás do trio é uma tarefa difícil, que exige um trato particular por parte da segurança pública. Vale lembrar as sucessivas queixas feitas nos últimos anos sobre a violência policial no carnaval de Salvador pela banda Baiana System (que também desfila sem cordas), pelo próprio Kannário, e por foliões das mais diversas estirpes carnavalescas. Verdade seja dita que antes a polícia não pedia licença, o que gerou uma cultura do “abre”: sempre que uma guarnição de PMs passa, os foliões num gesto solidário empurram e abrem espaços para que ela passe sem que ninguém se machuque. Verdade seja dita também, que pela quantidade de críticas a este tipo de violência gratuita, as orientações dadas as guarnições de policiais nos últimos carnavais tem mudado, o que tem gerado outra postura por parte da PM com os foliões.
Entretanto, ainda há excessos por parte da polícia militar. E Kannário talvez seja o principal artista no carnaval soteropolitano que encampa a denúncia a esses excessos: sempre que avista uma agressão da PM que ele considere desmedida, ou qualquer indicio de briga dentro do seu bloco, o artista para o som e critica o acontecido. Parte dessas críticas mais duras com a polícia nos anos anteriores fizeram com que o artista reclamasse no ano de 2019 da ausência de guarnições da polícia seguindo seu trio – que segundo ele, seria uma represália à suas posições para com a polícia.
No carnaval deste ano, na segunda-feira (24/02), poucos instantes após sair o seu trio no Campo Grande, houve uma agressão generalizada por parte da Polícia Militar [ver vídeo] à pipoca do cantor, que interrompeu a música para conter os ânimos. Mais à frente, antes de entrar na passarela das emissoras de televisão, Kannário disse que “se acontecer alguma coisa comigo, quem mandou me matar foi alguém da Polícia Militar”. Só esta declaração do artista já daria muito pano para a manga, mas logo adiante o cantor que chegou a elogiar a postura de algumas guarnições da PM para com seu público, voltou a parar o som e criticou duramente a postura violenta da PM – chegando a pedir uma vaia para a Polícia Militar do Estado da Bahia.
Esse posicionamento de Kannário no carnaval gerou uma série de respostas institucionais: a PM publicou uma nota de repúdio criticando as “provocações” feitas pelo artista; o governador do Estado, Rui Costa, sem hesitar também saiu em defesa da polícia militar, informando que era “inaceitável ato de desrespeito” e que acionaria a Procuradoria Geral do Estado para que tomasse as medidas cabíveis contra o pagodeiro/deputado; o prefeito de Salvador, ACM Neto, disse que as declarações de Kannário foram infelizes, ressaltou a importância da polícia para o carnaval de Salvador, e saiu pela tangente da polêmica.
É preciso defender Kannário?
O fato é que não devemos aceitar uma postura autoritária ou impositiva para com os artistas. Saímos em defesa do Baiana System em 2017, quando foram criticados por puxar o “Fora Temer” na avenida e também deveremos sair em defesa de Igor Kannário que está sendo atacado – provavelmente juridicamente – por criticar possíveis excessos da PM para com a sua pipoca. Defendê-lo não se refere a uma questão de gosto musical: trata-se da defesa da autonomia do artista em produzir artisticamente, assim como expor suas ideias. Principalmente quando a posição do artista é a de criticar excessos da força policial dentro da sua pipoca – excessos estes que são via de regra nas periferias brasileiras. Defender o contrário disto, é um desacerto nos ponteiros da esquerda.
Cabe refletir também que este tipo de agressão e abordagens mais violentas por parte da segurança pública vem sendo “naturalizado” cotidianamente, seja pelos programas policialescos da televisão, seja em vídeos que circulam pelas redes sociais, ou mesmo – tratando-se de carnaval – por artistas que participam historicamente da folia momesca e sempre fizeram vistas grossas para este tipo de atitude por parte da polícia militar no carnaval.
O artista é o questionamento do que está posto. Particularmente o músico o faz a partir das suas canções e o desenvolvimento/criação de comportamentos. Defender o Kannário e com ele fazer coro pela redução da violência policial no carnaval, em tempos de autoritarismo em ascensão feat manifestações exigindo o fechamento do congresso e do STF, parece ser a conclusão do que mais temos feito na era movediça de Bolsonaro: defendido o (que sempre foi) óbvio.
*Filipe Baqueiro é Doutorando em Sociologia.
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