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Colunas

Por que a polícia segue matando jovens negros?

Tomaz Silva/Agência Brasil

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

O Brasil segue em normalidade. O fim do casal global Mc Cabelinho e Bella Campos é o assunto do dia junto ao transplante de coração do querido Fausto Silva. No fim de semana, mais um juiz de má fé operou um assalto contra o Vasco da Gama em sua luta contra o rebaixamento no brasileirão. Climas despencam no Sul e Sudeste do Brasil para daqui a uns dias os termômetros marcarem acima de 30 graus. Trabalhadores se amontoam nos ônibus para retornar para a casa. A polícia segue matando 6 pessoas por dia. A cada 23 minutos uma mãe preta chora a morte de mais um filho morto pela violência urbana. Segue tudo normal.

No último mês foram mais de 50 pessoas assassinadas por policiais Militares em chacinas que foram notícia nacional, pelo menos por algumas horas. Chegamos em Setembro, segue tudo normal.

Buscar entender o motivo dessa normalidade e responder a pergunta que dá título a esse texto não é algo fácil. Um racista diria que isso se dá pelo fato de negros serem mais propensos a criminalidade, algo que foi aceito como ciência a poucas décadas atrás. Outros dirão que a condição social de pobreza que a maioria da população negra faz com que a violência seja mais presente. Algo que não responde a nada e se torna uma justificativa para a manutenção da situação como se encontra. É necessário olhar a história e buscar a resposta.

As periferias como colônias

Seria preciso aprofundar sobre o papel da violência na formação social brasileira e como a dominação de classe por aqui sempre teve na violência dos dominantes um papel fundamental. O nosso Estado se ergueu através da violência sobre corpos dissidentes das classes subalternas e assim se manteve expandindo a cultura da violência para o conjunto da sociedade. Nesse texto, nem tão breve, buscamos olhar pra violência a partir da ótica racial. A construção da violência social para ser cometida é preciso que alguém cometa, alguém sofra, que esse ato aconteça em um determinado local, e que aquele que sofre não seja amparado por terceiros e não possa revidar.

O Estado burguês coloca para si em sua atuação o papel de monopólio da violência na Nação. É o Estado que a exerce de forma centralizada por suas forças repressoras: exército e polícia. A questão é que em locais onde se exerce o colonialismo, as normas jurídicas são suspensas. O colonizador impõe seu domínio sobre o colonizado justamente pela ação direta da violência e pela força pura. O Estado se torna uma força onde a violência é sua principal atuação, com o objetivo de garantir o controle sobre o Outro colonizado. O monopólio da violência que o Estado supostamente impõe passa a ser pluralizado, e o cotidiano se torna uma disputa entre as forças estatais, forças civis, forças militares, cada qual usando a força bruta.

A colônia é o local onde o colonizado habita. É um lugar exterior às normas jurídicas da normalidade, um lugar que fica à margem do social, onde a lei é a ordem. Nesses territórios o espaço geográfico é um local de disputa. O controle desses territórios somente é possível pelo uso da violência. Exercer a violência é buscar exercer a soberania, e isso significa ter a capacidade de decidir quem importa e quem pode ser descartado.

A forma que o capitalismo se estrutura no Brasil faz com que nossas periferias sejam colônias internas, compartimentos onde a parcela mais explorada da classe trabalhadora habita. Uma divisão geográfica e racial atua na formação de nossas cidades.

O racismo como classificador social da humanidade

O racismo opera como um sistema de poder onde a partir da classificação racial se gera classificações humanas. Quanto mais perto da brancura mais aceito, quanto mais perto da negrura mais rejeitado. O branco é o modelo do ser humano ideal, o negro antes de ser visto com sua humanidade, é visto e aprisionado pela sua cor de pele, sendo sempre um negro.

Essa classificação humana através da noção de raça, por mais que não se afirme pela ciência, se afirma pelas relações políticas e sociais. A forma que o modo de produção capitalista foi construído tem o colonialismo (o domínio do norte sobre o sul global) e o racismo como estruturantes. As relações de classe são mediadas e marcadas por relações raciais. Em outras palavras, a dominação de classe pressupõe nos países coloniais uma dominação racial.

Esse sistema de poder, que chamamos de racismo, um Poder branco, é uma relação social construída ao longo da história que molda o conjunto do tecido social, estrutura e molda as instituições do Estado, sistemas de leis, determina as relações econômicas e nas relações sociais garante uma hierarquia para a população branca.

Essa dominação racial, essa classificação entre o mais humano: o branco, e o menos humano: o negro, gera um paradoxo na democracia burguesa. É um paradoxo pelo fato de que essa dominação racial é um elemento fundante da democracia burguesa e do próprio direito burguês como conhecemos, porém, ao mesmo tempo, ela é um fator que impede a plena realização dessa democracia e desse direito, pois seus fundamentos a liberdade, a igualdade e a fraternidade, ficam irrealizáveis com a divisão racial da sociedade.

Quanto vale a carne negra?

A classificação racial da sociedade tem sua imagem mais nefasta quando falamos sobre a mortalidade que abraça a população negra. A violência urbana no Brasil atinge quase em sua totalidade negros, quase todos jovens, quase todos homens. O laissez faire, máxima do liberalismo clássico, que significa “deixe fazer”, tem por conta do racismo, na vida da população negra o sentido de deixar morrer.

Afinal, porque a morte diária de jovens negros não choca o conjunto da sociedade? Por qual motivo a violência urbana segue tirando a vida de nossa população? A morte de jovens negros não gera indignação pois faz parte do cotidiano, são normalizadas, fazem parte do dia a dia do brasileiro.

O racismo constrói a narrativa sobre os sujeitos. Falamos aqui sobre imagens de controle. Construções sociais que foram feitas ao longo dos anos sobre pessoas negras e que alimentam narrativas sobre os sujeitos afrodescendentes. No Brasil corpos negros são vistos pela sociedade como indesejáveis, pois, são, a partir da ótica do racismo, violentos, marginais, pretensos criminosos. Logo, quando se mata um corpo negro na periferia, a sociedade se livra de mais um criminoso, ou de um possível criminosos.

O signo da morte só atinge a população negra, justamente por que para essa parcela social, o direito a vida plena não foi garantido, afinal os negros são menos humanos que os brancos.

O Estado que durante todo o período de escravização levantou suas armas e leis para atingir a população negra, impedir e conter sua revolta, e garantir sua condição social de classe subalternas, no período pós abolição buscou locar os negros no papel da marginalização social. A esses excluídos, era ofertado pelo Estado somente novas leis para controle desses corpos e a violência policial quando necessário.

A violência policial que atinge o negro é a linha final, e portanto inicial, de uma série de exclusões e violências que o Estado impõe ao negro de forma sistemática e estrutural. Só é possível que a vida negra seja considerada sem valor, pelo fato do negro ser considerado um humano de menor valor e ter sua existência marcada por uma não vida e ausência de toda uma seite de direitos sociais.

Povo negro quer viver, pelo fim da guerra não declarada

Seja no Rio de Janeiro, na Bahia, em São Paulo, ou em Porto Alegre. A guerra às drogas é uma política institucional de Segurança Pública. Uma guerra onde o Estado combate a população pobre e periférica, militarizando sua vida e exercendo controle sobre seus corpos.

Os bairros de maioria negra são zonas de exclusão. Compartimentos onde seus habitantes vivem uma realidade completamente distinta do restante das cidades. Lá sofrem com uma densidade populacional extrema, abandono por parte do Estado e das políticas públicas, sendo vítimas da violência urbana, e de uma política de morte, anti-vida.

Sabemos que morremos por sermos consideráveis descartáveis. E por sermos descartáveis nossa morte não tem valor e não choca a opinião pública. Durante décadas o grito da população negra era silenciado e nossa luta invisibilizada pelo mito da democracia racial. Hoje, o novo momento do protesto negro brasileiro pode e deve aumentar o tom contra a violência racial e o genocídio sofrido pela população.

Temos a possibilidade de começar a construir uma outra narrativa histórica sobre a população negra, e construir políticas públicas que combatam a forma histórica que as políticas de segurança foram construídas no nosso país.