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Colunas

Relato 18: “O que é o sistema penal”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Luan Gomide de Souza Cândido
Relato extraído do livro Luta Antimanicomial na Prática

Sou Luan Cândido, minha idade é a de George Floyd e João Alberto se sobrevivessem ao sistema penal, então, sou mais um sobrevivente. Recém-saído das prisões; das ruas aos manicômios, dos becos aos presídios; trago na pele as marcas de uma ditadura racista e, no olhar, os primeiros reflexos da superação. Articulador da frente estadual Desencarcera MG e colaborador da Assessoria Popular Maria Felipa.

As informações qualitativas das plataformas baculejo.org e desencarcera.com de denúncias de abuso de autoridade, tortura e letalidade do Estado, e as análises quantitativas de relatos e dos monitoramentos de painéis estatísticos oficiais, de notícias, publicações e de processos judiciais, alertaram que a Segurança Pública e a Justiça, o sistema penal como um todo, estão genocidas, operando em uma lógica punitivista legada do sistema racista-colonial e escravocrata, hoje, sofisticada em um racismo-neoliberal e estrutural. O Supremo Tribunal Federal (STF) é a mais alta decisão da justiça brasileira e reconheceu a inconstitucionalidade do Sistema Penal, pela arguição de descumprimento de preceito fundamental (APDF) 347/15, desde 2022. Este documento evidencia que não só as prisões, mas o Estado em geral omite, restringe e viola direitos essenciais, marginalizando, criminalizando e violentando a população. Um alerta a violência e a tortura policial, que estão como requintes cruéis de ameaça e subordinação contra a população em exceção de direitos, explorada por gerações, com genocídio e prisões para a garantia da manutenção da vulnerabilidade pelo livre acúmulo de capital.

É importante contextualizar uma situação de guerra, com mutilações e extermínio de corpos, que se estende por séculos, seletivamente, contra populações não brancas e pobres, no Brasil, grupos étnico-sociais que sofrem o conflito com a lei, ou por territórios, desde o primeiro código penal do Império, até o Pacote Anticrime e Emendas à Constituição Brasileira para regular as atividades policiais e o encarceramento em massa. No Brasil, o milênio iniciou com mais de seis mil mortes por ano e cerca de um milhão de reféns em cárceres públicos ou privados, vítimas de violências de um estado de coisas inconstitucionais, com omissões, negligências, violações e execuções, sem julgamento, em operações policiais. São prisões, centros de internação ‘socioeducativos’, clínicas psiquiátricas, comunidades terapêuticas e casas de isolamento, bilhões em investimentos no cárcere, na tortura, na omissão, para letalidade, com publicidade punitivista. Configurando uma violência etnocêntrica, machista, misógina, lgbtfóbica e xenofóbica nos equipamentos de Segurança Pública, Justiça, Saúde, dentre outros do Estado.

Na década de 90, Eugênio Zaffaroni estimou o genocídio da população vulnerabilizada da América Latina, no final do milênio, por meio do cruzamento de informações dos cortes públicos, em Educação e Saúde, e do aumento de prisões sem condenação. Só não previu o feminicídio no Brasil.

“Estas massas urbanas empobrecidas num quadro de redução da classe operária, de pobreza absoluta, sem um projeto educacional, sem condições sanitárias, sem moradia, não encontra no modelo neoliberal respostas alternativas a um controle pelo terror do Estado; um sistema penal que reprime através do aumento de presos sem condenação, dos fuzilamentos sem processo, da atuação dos grupos de extermínio. ‘A projeção genocida de um tecno-colonialismo correspondente à última revolução (tecno-científica) faria empalidecer a cruel história dos colonialismos anteriores”. (MALAGUTE, 2013, p. 53, apud ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro, Revan, 1991, p. 15)

Ao mesmo tempo em que as situações de pobreza aumentam, crescem os investimentos no encarceramento em massa, nos equipamentos de tortura e nas execuções de pessoas em conflito com a lei, obedecendo políticas necroliberais, para que a população não ocupe o que é dela por direito fundamental. Estes equipamentos e dispositivos ostensivos e repressivos violentam as populações mais vulnerabilizadas, com argumentos e diretrizes antidrogas, antiterroristas e protecionistas, exportadas dos países ricos, desde meados de 1960, para influenciar os regimes antidemocráticos na América Latina e no mundo. A fim de evitar o avanço de sistemas inspirados no socialismo e comunismo, houve investimentos político-estratégico e militares por legislações severas que resultaram no golpe da ditadura militar, em 1968, a exemplo a Condor e, sem cessar, posteriormente, em tipificações de crimes hediondos, movimentando a indústria bélica e a conservação de privilégios socioeconômicos de uma minoria em territórios desenvolvidos, em detrimento da vida e paz da maioria pobre. Este documento recomenda que as polícias, principalmente a Polícia Militar da ditadura de 68, sejam extintas, gradativamente, pelo crescente e atual contexto democrático, e com a promoção de investimentos biopsicossociais substitutivos às prisões, com equipamentos de formação, geração de renda e reocupação de territórios urbanos e rurais de forma mais justa e equitativa. Nesta conjuntura, as políticas de Estado incidem em omissões, restrições de direitos e violações sistematizadas contra a população vulnerabilizada, submissa, alienada e refém, cotidianamente, por meio de dispositivos biotecno-políticos inconstitucionais de precarização, marginalização, repressão, encarceramento e letalidade, de forma estruturada e sistematizada, com a conivência do Legislativo, aparato do Executivo, inoperância e falta de vontade política do Judiciário. Necropolíticas legitimadas por parlamentares, chefes e ministros de Estado, autoridades, em atividades etnocêntricas.

Racismo é tortura… É impossível falar de tortura no sistema prisional sem mencionar o olhar e as políticas racistas que encarceram e exterminam parte da população negra e vulnerável. Sou preto, meu DNA vem lá de Benim, da África… desde criança o racismo esteve presente na minha vida, principalmente nas escolas… Décadas de 80 e 90… Já viu todo mundo odeia o Chris? Eu tinha bom comportamento em sala, era aplicado e inteligente, mas todos os dias tinha que brigar com alguns dos garotos brancos e lembro que algumas das garotas brancas realmente expressavam repulsão pela minha cor e pelas minhas origens, menos quando precisavam de mim. Quando adolescente, praticamente todos os dias, algum policial militar me abordava e me revistava. Sempre que eu via um policial eu sabia que ele iria me parar, ainda hoje percebo que os seguranças ficam alertas aos meus movimentos em ambientes institucionais. O racismo é uma tortura constante, eu vivo uma prisão racial, pouco posso andar livremente sem ser visto como uma ameaça. Eu cresci a vida toda apanhando e sendo marginalizado nas instituições, meu corpo é coberto de cicatrizes, até na fase adulta. A escravidão acabou, mas as instituições reproduzem os padrões racistas e misóginos da época colonial. “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, toda prisão é um legado da senzala.

Privação de liberdade é tortura. Ficar confinado num espaço limitado por si só é tortura física e psicológica, corpo e mente adoecem proporcionais ao tempo em que ficamos ociosos e improdutivos; seja na cela individual ou coletiva. Nessa pandemia, até você sentiu um pouco o que é a tortura do confinamento. Passei 5 anos encarcerado, sem qualquer atividade física ou intelectual, engordei, meu joelho enfraqueceu, meu psicológico e intelecto estão abalados pela falta de afeto e de comunicação com o mundo externo. Minha família adoeceu, minha filha desenvolveu depressão por causa da minha ausência e minha mãe teve vários sintomas psicossomáticos de ansiedade. Ameaças, agressões e extermínios são torturas cotidianas. Um pouco antes de eu chegar na Dutra Ladeira, um camarada foi torturado pelo GIR no setor de segurança do anexo do presídio, muitos ouviram o cara apanhando… no outro dia ele estava morto dependurado como um suicida. Eu mesmo muitas vezes tomei esculacho de agentes, é uma tortura que tem que acabar, é humilhante, revoltante, me provocou uma dor na alma, por abusos de autoridade, por motivos torpes e fúteis fui agredido sem poder reagir, porque estávamos oprimidos numa situação marginalizada e vulnerável. Para os agentes o esculacho é o jeito certo de negociar com quem está em privação de liberdade, se você fizer o que eles querem você não apanha, mas se fizer algo diferente do procedimento, algo ‘errado’ ou até mesmo por motivos simples, como algum comportamento, comentário, palavra ou olhar que os agentes desaprovam, a tortura é justificada e aceita. Então todos os dias alguém é agredido ou espancado pela instituição prisional e não há registros dessas torturas, da gravidade e da profundidade delas, porque elas passam impunes, são aceitas, são “bandidos, homicidas e vagabundos”. Em quase todas as cadeias os agentes agridem durante o procedimento de saída da cela para o pátio de banho de sol. As transferências são sempre uma tortura, se você não apanha na saída pode ter certeza que vai apanhar na chegada, quando deslocado de um presídio para o outro, a único pertence que pude levar é a cueca que eu vestia, então passei por necessidades e humilhações por onde cheguei.

Precariedade é tortura. Na cadeia, tudo falta: água, espaço físico, paz, silêncio, comida de qualidade, produtos de higiene, afeto, liberdade, trabalho, atendimento, remédio… Nos sentimos indigentes e humilhados, é desumano e contraditório ficar anos em situação de vulnerabilidade dentro de uma instituição do estado. Se eu estou encarcerado, meu almoço chegou azedo, só tenho roupas rasgadas, não tenho água, nem atendimento, nem remédio, nem produto de higiene, nem trabalho, nem escola; está mais do que claro que eu estou vulnerável e incapaz de ser regenerado ou de fazer algo por mim ou pela minha família. É uma tortura passar por tantas privações e precariedades junto com centenas, aglomerados no mesmo prédio, passando pelos mesmos problemas sem ter como mobilizar soluções. Nessa última caminhada, tive problemas de saúde dental, mas pela falta de dentista e pela demora pela falta de vagas e nenhuma boa vontade dos agentes em pedir o atendimento, por mais de um ano eu sofri com intensas dores de dente; gradativamente eu perdi dois dentes nessa última caminhada… Enfim, por mais de 2 anos tive a mesma camiseta, faltam roupas, passei frio por falta de manta ou blusas de frio. Em 2018, passamos 6 dias sem água para beber ou dar descarga, numa cela de 5×6, com 28 camaradas, dormia gente até dependurada. Tem gente que acorda pela manhã e não tem uma escova, nem sabonete, nem creme dental para fazer higienização. Os presídios não distribuem quantidade necessária de quites de higiene para suprir a demanda. Te desafio a passar 3 meses com um pedaço de sabão em barra e um creme dental pra lavar sua roupa, tomar seu banho e lavar sua boca 6 vezes ao dia; água só de manhã e à noite. É no stress, na vulnerabilidade e na precariedade que surgem os principais conflitos nas celas. O controle excessivo das cadeias para o cadastro dificulta e tornam escassas as visitas e os pertences, atualmente não podem visitar namoradas, amigos, apenas os cônjuges casados ou com filhos e parentes de primeiro grau. Com a pandemia, as visitas foram cortadas… meses sem notícias, sem nenhum afeto ou contato com mundo externo… na Dutra não tinha nem serviço de cartas, foram os meses mais isolados da minha vida.

A revista vexatória é abuso sexual e truculência com o familiar é tortura. Ser familiar não é crime. As visitas sofrem maus-tratos e humilhações pelos procedimentos desumanos que a maioria das cadeias têm sofrimentos de âmbito sexual. A cadeia humilha e maltrata o corpo da mulher nesses procedimentos compulsórios, sejam durante a visita ou na revista dos pertences, são constantes as denúncias dos familiares.

Privação de direitos é tortura. Tanto na privação de liberdade ou condenações em regime aberto, não posso votar e ao mesmo tempo sofro com todas as políticas públicas que me marginalizam, me encarceram e me exterminam na primeira oportunidade. Não tenho voz nas instâncias do executivo, do legislativo ou do judiciário para defender a mim e a minha família, contra as estruturas e dispositivos biopolíticos que precisam ser combatidos porque são coniventes com a opressão, o racismo, a tortura, a marginalização, o encarceramento e o genocídio de uma população predominantemente preta e vulnerável.

Desconstrução da identidade é tortura (uniformização de vestuário, corte de cabelo). Nas cadeias que passei não é permitido deixar barba grande, deixar de cortar o cabelo, ou fazer cortes tribais. Sempre usei dreadlocks e todas as vezes que fui preso desobedeci ao máximo o quanto pude para não cortar minhas madeixas. Sempre no convívio, porque sou certo, mas cortaram meu banho de sol ou atendimento porque não cortava o cabelo, passei meses sem tomar sol. Dessa última vez os agentes ameaçaram cortar o banho de sol da cela toda, mesmo assim o pessoal fechou comigo pra eu não cortar, mas os 8 agentes endureceram e iam entrar na cela pra me tirar, então pra eu não sofrer covardia os camaradas da cela falaram pros agentes que iam cortar meus dreads.

Toda prisão é política. Os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário, a comunicação social, a sociedade civil, têm responsabilidade na promoção e garantia de direitos, mas, secularmente, sustentam e legitimam políticas e informações que defendem os sistemas punitivos de privação de liberdade, com violações de direitos sem controle social, como nas prisões e nos extermínios.