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Colunas

Relato 19: “Parar a PEC 45 é urgente”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Laura Fusaro Camey

As maiores mazelas que o Brasil enfrenta são decorrentes da política do grotesco que é a guerra às drogas. É necessário contextualizar o porquê uma PEC que coloca na constituição o usuário de drogas como criminoso inimigo número 1 do estado é uma péssima ideia e como essa tem sido já a realidade desde 2006, quando foi aprovada a Lei de Drogas no país.

Ao contrário do que muita gente pensa, ser usuário de drogas no Brasil é crime. Não é, tecnicamente, passível de pena de prisão, porém é importante destacar como isso na prática não é verdade, principalmente para aqueles pobres, favelados e pretos. Sim, é verdade que, na lei anterior, não havia distinção entre usuários e traficantes, mas o que poucas pessoas dizem é que, anteriormente, o tráfico de drogas não era crime hediondo. Isso significa que, apenas portar, usar ou comercializar não dava muito tempo de cadeia, além de ser mais infrequente a manutenção da pena preventiva: aquela que é feita mesmo sem condenação, enquanto a pessoa espera a sentença do juiz. Isso significa que, mesmo na ditadura, o perfil das pessoas presas não era o usuário de drogas, apesar de que estes eram sim mantidos institucionalizados em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.  

Apesar do suposto abrandamento ao usuário, a lei de 2006 trouxe uma facada mortal à população: a separação entre usuário e traficante se dá pela análise da autoridade judicial e policial a partir de critérios econômicos, sociais e circunstanciais do abordado. O resultado todos sabemos: uma explosão sem precedentes da população carcerária que coloca o país entre os 3 países que mais encarceram no mundo. As mazelas do perfilamento racial, da autorização do estado em invadir locais considerados “cenas do tráfico” e o status de crime hediondo fez a criminalidade e letalidade policial no país também crescer impactando toda a população. A lei de 2006 criminalizou imensamente os usuários de drogas em alta vulnerabilidade social. Com incontáveis internações, detenções e prisões, trabalhar para o tráfico se tornou única condição de sobrevivência para uma parcela da população atravessada pela violência e privada de quaisquer possibilidades de inclusão social. Essas pessoas, longe de serem o traficante que ostenta armamentos pesados, são pessoas que ficam circulando pela cidade com carga para comercialização, olhando pontos de venda e outras atividades em um regime análogo ao escravo. É que o grande traficante não deve direitos trabalhistas a seus funcionários e definitivamente não vai se expor nas ruas para ser alvo de ações policiais. 

A proposta da PEC 45 de intensificar a chacina a pessoas que usam drogas ou estão sendo exploradas nas linhas de frente, sem nunca terem cometido nenhum ato de violência contra alguém, não resolverá o problema da criminalidade. Quanto mais acumulamos uma massa de pessoas empobrecidas e escravizadas nas cidades, quanto mais prendemos e violamos seus direitos, mais reféns dessa teia social ficam. O que o Senado finge não entender é que as pessoas, usuárias ou não de drogas, não escolheram viver do lado de uma biqueira. Não escolheram viver cercadas e sitiadas por pessoas armadas. Não escolheram fazer parte da “cena de tráfico”. 

Os bairros ricos provam que nem o uso nem a venda causam tantos danos sociais assim, relegado a problemas familiares nos casos de pessoas que de fato fazem intenso e prejudicial de alguma substância. Com menos violência e mais recurso, o prognóstico dessas pessoas é melhor: conseguem com mais êxito e menos sofrimento voltar ao cotidiano, reestabelecer vínculos e construir projetos de vida. O tráfico nessas localidades também não dispende de tanta violência: não tem por que investir em armamentos pesados, já que não entram em confrontos armados com policiais. Muitas pessoas plantam escondido dentro de casa, não recorrendo ao grande mercado. 

A tranquilidade dos enternados (aqueles vestidos de terno) é que, com ou sem PEC 45, continuarão a usar suas drogas lícitas e ilícitas sem constrangimento. Poderão também continuar quaisquer operações criminosas que possuam. Na verdade, a PEC 45 vem a serviço do tráfico de drogas que depende de pessoas pobres e marginalizadas para subjugar ao trabalho ilícito. Usuário de droga com emprego formal ou alguma fonte lícita de renda, bem cuidado, bem-amado, não vai jogar-se a fazer crimes em troca de resto velho e mofado de droga. Pessoas famintas, órfãs, desempregadas, mutiladas e adoecidas pela violência, mesmo não usuárias, também se veem reféns do trabalho ilícito. Entender o pequeno traficante, aquele que faz pequenas vendas, o olheiro e outras atividades não violentas, como vítima do trabalho análogo ao escravo é necessário para pensarmos em políticas de reparação para pessoas e comunidades vítimas do crime organizado. É necessário para oferecermos saúde, dignidade e cidadania a pessoas que nunca escolheram estar a margem do sistema: simplesmente deram azar de nascerem inimigas do estado brasileiro. Deram azar de adoecerem psiquicamente e encontrarem nas drogas uma possibilidade de sobrevivência perante a um intenso sofrimento psicossocial. Deram azar de nascer num país genocida, racista, estuprador e torturador que esconde na suposta guerra às drogas, sua cruzada de limpeza étnica, racial e social. 

Ajude a pressionar os senadores a se absterem ou votar contra a PEC 45!