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MUNDO

Venezuela: O último capítulo de Guaidó

Elio Colmenarez, da Venezuela
Reprodução

Introdução

Nos últimos dias, a imprensa brasileira, reproduzindo servilmente o que as autoridades estadunidenses propagam, tem divulgado notícias sobre o suposto impedimento do autoproclamado “presidente” da Venezuela, e presidente até o dia 5 de janeiro último da Assembleia Nacional daquele país, de participar da eleição da nova direção da casa legislativa, uma vez que seu mandato terminava nesse mesmo dia.

A partir da gravação do ridículo show de Guaidó escalando a grade que separa o edifício da Assembleia Nacional da rua (enquanto os guardas lhe diziam que ele poderia entrar normalmente pelo portão), feita por seus agentes no foco exato para dar a impressão de que ele o fazia porque estava sendo barrado, e para ser divulgado pela imprensa mundial sob os auspícios do governo Trump, o imperialismo estadunidense e seus aliados na mídia internacional estão realizando uma campanha que tenta manter a ficção de que há divisão no poder da Venezuela e de que Guaidó sofre perseguição do governo de Nicolás Maduro.

Essa campanha se soma às inúmeras outras ao longo dos últimos quase 20 anos, desde, principalmente, o golpe de estado fracassado contra o falecido presidente Hugo Chávez em 2002, contra um país que ousou ser independente do imperialismo e defender sua soberania, em que pese as contradições existentes neste processo.

Também é parte dessa campanha a mentira mil vezes repetidas sobre a existência de uma “ditadura” na Venezuela, de apresentação de verdadeiros bandidos terroristas como sendo lutadores pela democracia, que cala na população que não conta com outra fonte de informação senão a mídia burguesa. E também, infelizmente, em certos grupos de esquerda, que em seu sectarismo cego e preso a dogmas alheios à realidade concreta das lutas e desafios dos povos, prefere seguir o caminho fácil do discurso midiático para apresentar seu projeto, sem tomar como base a experiência real das massas exploradas e oprimidas.

Sabemos que este é um longo artigo, porém é mais que necessário que uma ampla vanguarda tenha acesso à verdade dos fatos; da exata representatividade do muitas vezes derrotado marionete do imperialismo, Juan Guaidó; do que é a oposição de direita venezuelana, sua composição, suas políticas e crise interna; a contextualização dos recentes acontecimentos na dinâmica dos ataques do imperialismo, e da atual situação política da Venezuela, que são aqui contados e comentados por um ator e espectador privilegiado desse país, o veterano militante socialista venezuelano Elio Colmenarez.

O processo revolucionário venezuelano é chave para a luta da classe trabalhadora e dos povos de toda América Latina. Sua vitória ou derrota implicará em efeitos positivos ou negativos na luta de classes, com efeitos mundiais. Portanto, a solidariedade com a luta do povo venezuelano é tarefa prioritária de todos e todas. Ressalto a inestimável colaboração da companheira Celia Ramos na tradução, revisão e edição. Convidamos o leitor a lê-lo na íntegra, para uma informação mais detalhada e análise profunda, em um texto leve e carregado de bom humor, sobre essa que seguramente é uma das realidades mais instigantes da luta de classes de nosso tempo. 

Boa Leitura!

José Carlos Miranda

 


 

No dia 5 de janeiro, como está estabelecido pela Constituição venezuelana, devia-se escolher uma nova direção para o período de sessões da Assembleia Nacional (AN). Ficava para trás o ano de 2019, sob a presidência de Juan Guaidó que, como parte da estratégia estadunidense de ataque à Venezuela, proclamou-se presidente interino, desconhecendo o governo de Maduro.

O partido Primeiro Justiça (PJ), um dos principais partidos  opositores no país, nasceu no ano 2000, como parte de um projeto do IRI (braço internacional do Partido Republicano dos Estados Unidos), em meio à preparação do derrotado golpe contra Chávez, em abril de 2002.

Depois de 2004, quando a CIA recebeu a orientação de conformar grupos de choque de caráter fascista, jovens de ONG’s patrocinadas pelo governo dos Estados Unidos receberam formação e treinamento na Colômbia, México, Hungria e nos próprios Estados Unidos, foi conformado o Vontade Popular (VP), partido ao qual Guaidó pertence, a partir da ala de ultradireita do PJ e de outros grupos de corte fascista.

A oposição venezuelana, até 2004, esteve agrupada na Coordenadora Democrática e, depois de derrotada no referendo revogatório nesse mesmo ano, ficou fragmentada até que, por iniciativa do Departamento de Estado dos EUA, agrupou-se na Mesa da Unidade Democrática (MUD), quase falecida em 2017 por causa da derrota das guarimbas (1) e da instalação  da Assembleia Nacional Constituinte.

Quatro partidos ocupam a cena política opositora: Ação Democrática (AD), PJ, Um Novo Tempo (UNT) e VP, conhecidos durante a última crise como o G4. Os demais são dois arquipélagos de grupos e partidos, um conformado por grupos fascistas, entre os quais se destaca Vénte Venezuela (VV), e outro centrista, formado pelos restos dos velhos partidos e desprendimentos do chavismo, que tentaram em vão construir uma opção de centro em meio à intensa polarização política.

A morte de Chávez, as dissidências no chavismo, os desacertos econômicos e políticos do governo Maduro para enfrentar o bloqueio e a guerra econômica ajudaram a reforçar a ofensiva imperialista contra a Venezuela. O Departamento de Estado, aberta e descaradamente, colocou-se à frente da oposição venezuelana a partir do triunfo da MUD nas eleições parlamentares de 2015.

O sistema eleitoral venezuelano, no qual cada deputado é eleito em um circuito eleitoral, deu à oposição uma maior representação do que sua real porcentagem de votos. Ao ganhar em mais circuitos eleitorais, mesmo que por pequena margem (em 7 circuitos a MUD ganhou com menos de 50 votos de vantagem), deu à coalizão 67% dos deputados (112) com apenas 51% dos votos. O Polo Patriótico, aliança chavista, obteria 55 deputados, tendo perdido 43 em relação à composição anterior na AN.

A vitória da oposição em 2015 foi mais uma baixa do chavismo, por razões internas e descontentamento pela crise que recém começava, do que um crescimento real da direita. Para garantir a unidade do arquipélago partidário conformado na MUD, a direção da Assembleia Nacional (um presidente, dois vice-presidentes e um secretário) foi distribuída entre os partidos. Decidiu-se fazer um rodízio dos  partidos na presidência, pela ordem de tamanho de cada um, o que significaria, por essa ordem: AD, PJ, UNT e VP. No último ano, esse cargo corresponderia a alguém eleito pelos grupos pequenos.

A tentativa de derrubar Maduro começou desde o primeiro dia da Assembleia Nacional dominada pelos opositores e presidida, então, por Ramos Allup, da AD, mas as diferenças internas, o protagonismo pessoal, que fez com que a MUD se tornasse uma federação de pré candidatos presidenciais, e os choques pelo gerenciamento dos recursos enviados pelos EUA dispersaram a ação opositora entre tentar um impeachment, procurar um referendo revogatório ou lançar uma ofensiva de protestos violentos. Embora Ramos Allup tenha vaticinado apenas seis meses para a duração de Maduro no poder, este sobreviveu ao primeiro ano da AN opositora, demonstrando habilidade política.

A ofensiva opositora de tentar desmontar leis populares de moradia e de rádios comunitárias, além de tentar assumir o controle dos outros três poderes (Judiciário, Eleitoral e Moral), mobilizou a população contra a AN. Nesse marco, o Tribunal Supremo de Justiça concedeu a anulação das eleições parlamentares no estado Amazonas, de população majoritariamente indígena, por denúncias de compra de votos por parte do governador, que é de oposição. A anulação dos deputados desse estado tirava a maioria absoluta da MUD na Assembleia Nacional, o que lhe permitiria desmontar e aprovar leis, ou eleger os dirigentes dos outros poderes, sem acordos com o chavismo.

Era a capa vermelha (2) que a MUD empunhou. Era fácil convocar novas eleições no estado Amazonas, mas a MUD preferiu não reconhecer a decisão do tribunal, colocando o poder legislativo em confronto com o judiciário, o qual, imediatamente, o declarou em desacato. O chavismo se retirou da AN, anulando sua ação opositora sobre as instituições do governo e os outros poderes públicos.

O segundo ano da AN foi presidido por Julio Borges, do PJ, marionete dos falcões republicanos que apostaram na derrubada violenta de Maduro. Em fevereiro de 2017, teve início a “operação liberdade”, popularmente conhecida como guarimbas, para a qual a direita mobilizou toda sua força por trás dos grupos fascistas que lideravam violentos protestos e enfrentamentos com a polícia.

Durante 109 dias, com base nas zonas residenciais de classe média, aconteceram fortes enfrentamentos de grupos radicais da ultradireita com a polícia e a Guarda Nacional, enquanto manifestações diárias de chavistas percorriam o centro da cidade de Caracas, criando um escudo protetor ao redor do Palácio Miraflores, sede do governo.

No dia 1 de maio, durante a mobilização dos trabalhadores, Maduro desafiou a MUD com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC) “para decidir os rumos do país”, propondo uma eleição na qual cada setor social (operários, camponeses, estudantes, moradores, empresários etc) elegesse seus deputados, separadamente. A MUD rejeitou a convocatória, mas a dinâmica levou a que a oposição passasse a exigir a saída de Maduro e a tentar impedir a eleição da ANC, que tomou tal impulso que houve mais de dez mil candidatos, sendo que o próprio PSUV teve de fazer manobras para não perder o controle sobre a futura ANC, por causa da avalanche de candidatos das bases. A mobilização popular a favor da ANC acabou aniquilando as guarimbas. Imediatamente, a ANC convocou eleições de governadores, suspensas desde dezembro do ano anterior, e a MUD teve nova derrota, ao o chavismo eleger 20 dos 24 governadores de estado.

A presidência da AN no seu terceiro ano (3) coube a Omar Barboza, da UNT. Esse foi o ano que viu a MUD desaparecer e a própria AN enfraquecer, com muitos deputados (mais de 30) que se somaram à migração provocada pela dura situação econômica por que passava o país. O chavismo, a partir da ANC, adiantou as eleições presidenciais de dezembro para maio, acolhendo um novo pedido da desaparecida MUD. A maioria da oposição, sob instruções do Departamento de Estado, ignorou o processo eleitoral, mas um setor de pequenos grupos opositores lançou a candidatura de Henry Falcón, marcando uma divisão, com um setor oposicionista que procurava se localizar em um centro político, ao qual setores dissidentes do chavismo aderiram.

O centro da atividade opositora, destruída internamente, se transferiu para a arena internacional, tendo como eixo o Grupo de Lima, criado pelos Estados Unidos por ter sido incapaz de conseguir a maioria na OEA, promovendo o “apagão diplomático”, um plano para a retirada massiva de embaixadores no momento da tomada de posse de Maduro para o novo governo. Omar Barboza terminou seu período como presidente da AN e, em 5 de janeiro de 2019, um desconhecido deputado da VP, Juan Guaidó, assumiria a presidência do quarto período da AN opositora.

O Plano Guaidó: Uma variante enfraquecida da estratégia de agressão imperialista

Juan Guaidó juntou-se aos grupos fascistas quando era estudante da Universidade Católica. Ativista fiel sem muita inteligência, participou dos acampamentos da CIA em Budapeste e no México. Recebeu uma bolsa de estudos para uma pós graduação em Washington, fachada para a capacitação de quadros profissionais da CIA. O destino o colocou em um cargo que ninguém queria, quando o projeto do “apagão diplomático” contra a Venezuela ruía estrepitosamente, diante da negativa de vários países em romper relações por considerarem essa tática uma “medida exagerada”.

Entre 5 e 10 de janeiro, quando Maduro deveria assumir seu segundo mandato presidencial, foi orquestrada a estratégia de nomear o presidente da AN como presidente interino da República, versão local de um impeachment inexistente na constituição venezuelana. Segundo a Constituição, a nomeação de um presidente interino supõe a ausência definitiva do presidente, outorgando esse poder ao presidente da AN por trinta dias, para convocar as eleições presidenciais. Mas Maduro não estava ausente e, pelo contrário, ele tinha se consolidado no governo.

A campanha da mídia fez com que se acreditasse na existência de uma força opositora que não era real. Enquanto dentro do país acreditava-se em uma iminente intervenção internacional para tirar Maduro, a nível internacional se falava de uma crescente oposição a ele. Mentia-se nos dois lados da fronteira. Alguns desavisados da esquerda anti-madurista chegaram a se reunir com Guaidó, como se ele fosse realmente presidente, exigindo do agente da CIA  garantias democráticas.

O inesperado giro na estratégia dos Estados Unidos, que colocou um babaca da laia do Guaidó como presidente, também provocou um terremoto entre os partidos opositores, repletos de aspirantes presidenciais. O Departamento de Estado impôs a unidade na base de dólares e prometendo que Guaidó só ficaria na presidência para convocar as eleições. Guaidó teve de ser juramentado na rua, em meio a uma manifestação exígua, porque naquele dia 23 de janeiro não havia garantia de que os deputados da AN o apoiariam unanimemente.

O plano supunha que a queda de Maduro era iminente, em meio aos conflitos internos seguidos de uma intervenção mascarada como ajuda humanitária. A intervenção consolidaria o governo paralelo de Guaidó em um dos estados de fronteira com a Colômbia. Mas os tais conflitos não existiam. Maduro continuou administrando a derrota sobre a guarimba, apesar da difícil situação econômica interna. Nunca houve respaldo massivo para a entrada da suposta ajuda humanitária e, ao contrário, a ameaça de uma agressão externa mobilizou mais de vinte mil voluntários para proteger a fronteira, no que se chamou a batalha das duas pontes (a cidade de Cúcuta, na Colômbia, e a de San Antonio, na Venezuela, estão ligadas por pontes). Para além da parafernália midiática do Grupo de Lima, a tentativa derrotada de agredir a Venezuela fortaleceu o governo de Maduro.

Alguns meses depois, os serviços de contra-inteligência do governo chavista ridicularizaram o poderoso sistema de inteligência dos EUA. Usando gente do alto comando das Forças Armadas Bolivarianas, transmitiram a falsa ideia de um gigantesco complô militar para derrubar Maduro. Os EUA colocaram todo o aparato midiático e político para um falida intentona golpista em 30 de abril (de 2019), na qual havia mais fotógrafos do que soldados, e as caixas de munições estavam cheias de bananas.

Depois disso, Guaidó se tornou uma âncora no pescoço da oposição. Convocatórias estéreis para “tirar Maduro” eram tão escassas de público que nem  o próprio Guaidó compareceu nas últimas delas. O próprio governo alardeia e propagandiza as idiotices de Guaidó, que contribuem para a divisão e o desencanto da oposição.

Esta é a outra chave para entender a realidade venezuelana. O plano Guaidó nunca foi uma ameaça interna ao governo de Maduro. Foi uma estratégia publicitária dos Estados Unidos para tentar reverter a derrota nas guarimbas e gerar conflitos internos por pressão internacional,  o que fracassou.

Mas se a estratégia política e golpista de Guaidó foi um fracasso, foi sim vitoriosa como estratégia econômica e de negócios. O não reconhecimento do governo de Maduro permitiu aos EUA apropriar-se ilegalmente de empresas de propriedade do estado venezuelano, como a CITGO (nos EUA), Monómeros (na Colômbia) e Alcasa (na Costa Rica), colocando à frente delas representantes de Guaidó, designados diretamente pelos quatro partidos opositores. Os novos dirigentes das empresas venezuelanas no exterior se mostraram uns sátrapas, predadores que meteram a mão, roubando milhões de dólares para enriquecer os dirigentes opositores, empalidecendo a burocracia chavista que enriqueceu por conta dos negócios e empresas do Estado, à qual a direita chama de “boliburguesia”.

Uma nova mesa de negociação foi instalada em meados de 2019, sob os auspícios da Noruega. Como sempre, a oposição participa, mas em algum momento o Departamento de Estado dá instruções para que ela se retire. Mas desta vez vários dos representantes dos pequenos grupos  opositores, que estão por fora do G4, não se retiraram, e o governo adiantou acordos com eles. Mais do que uma força real, estes serviam para que o chavismo corroesse a oposição.

O último período da presidência da AN correspondia aos pequenos grupos, alguns dos quais tinham chegado a acordos com o governo, que incluíam a reincorporação dos deputados chavistas à Assembleia Nacional. Mesmo assim, o grupo dos quatro partidos opositores mantinha o domínio da AN e era público que não reconheceriam o acordo de rodízio na presidência, para manter Guaidó à frente da AN, por orientação dos EUA.

Mas não foi o chavismo, e sim a explosão interna dos partidos de oposição, que provocou a crise, e não por diferenças políticas, mas pela gestão e distribuição do fluxo de dólares provenientes dos EUA, da União Europeia e dos países do Grupo de Lima, e do roubo das empresas do estado venezuelano entregues pelos EUA.

Em meados de novembro isso já era um escândalo em algumas mídias, e também a divulgação das propriedades adquiridas por dirigentes opositores com as “ajudas econômicas”. Em dezembro, o “embaixador” de Guaidó na Colômbia denunciou publicamente a apropriação de milhões de dólares enviados por países para a “libertação da Venezuela” e da Indústria Monómeros.

O Departamento de Estado tentou recompor a surrada oposição, condicionando, inclusive, os novos envios de dinheiro à manutenção da unidade. No final de dezembro, apareceu a opção de sacrificar Guaidó, interpretação feita a partir de uma declaração do Departamento de Estado que indicava que seria mantida a estratégia definida “estivesse quem estivesse à frente da Assembleia Nacional venezuelana”.

Um grupo de deputados opositores se declarou publicamente “rebelados contra Guaidó”. O miolo da crise estava em definir quem e como seriam divididos os recursos  provenientes da “ajuda democrática”. Como declarou, descaradamente, um dos deputados rebeldes: “Não pode ser que alguns deputados recebam 500 dólares semanais e outros recebamos apenas 100”. E isso em um país onde a maioria da população tem renda menor que 50 dólares mensais.

Tentando manter o controle, Guaidó mudou arbitrariamente o regulamento dos debates na AN, permitindo a “presença por skype” dos deputados no exterior, destituindo vários  suplentes que vinham exercendo os cargos vagos. Um deles recorreu aos tribunais para anular o novo regulamento e foi expulso da VP, o partido de Guaidó. Quando terminou o ano, os rebelados contra Guaidó eram 30 deputados.

A AN tem 167 deputados (incluindo os três anulados em 2016), mas vários cargos ficaram vagos pela ausência de seus titulares e suplentes. O chavismo somou seus votos (permaneceram na AN 51 deputados dos 55 originais) aos do grupo rebelde, totalizando 81. A incógnita era quantos Guaidó tinha. Vários deputados aproveitaram a disputa para vender seu voto a quem melhor pagasse. Na noite de sábado, 4 de janeiro, dizia-se que Luis Parra, militante do PJ e candidato dos rebeldes a presidente da AN, tinha 5 votos de vantagem sobre Guaidó.

Às 11 da manhã de 5 de janeiro, hora e dia fixados pela Constituição para a primeira sessão do ano da AN, o centro de Caracas era um circo: os tradicionais cordões da Guarda Nacional que protegem o palácio legislativo, centenas de jornalistas e fotógrafos  credenciados e membros do corpo diplomático ingressavam no edifício onde funcionam, separadas por um pequeno corredor, a AN opositora e a Assembleia Nacional Constituinte. Os deputados iam chegando e, exatamente às 11h da manhã, apareceram em bloco os 51 deputados do chavismo.

O lugar-tenente de Guaidó, Stalin González, vice-presidente da AN, caminhava sorridente pelos  corredores, assim como os chefes dos diferentes partidos. O próprio González diria que tinham 127 deputados, mas Guaidó não entrava no edifício para dar início à sessão. O Departamento de Estado fazia um trabalho febril para desmontar a diferença contra Guaidó, que por volta do meio-dia era de 2 votos contra. Mas lá pelas 2h da tarde, depois de três horas de espera, os deputados dentro do palácio recorreram ao sistema estabelecido na Constituição para a primeira sessão da Assembleia Nacional: designa-se o deputado mais velho para presidí-la e levar a cabo as votações. Decidiram aplicá-la analogicamente para este caso, no qual o presidente da Assembleia Nacional não aparece.

O chamado à instalação provocou uma correria, uns para se sentarem e outros para irem à rua e tratarem de quebrar o quórum. Um desorientado Guaidó não se decidia sobre o que fazer, quando um grupo de jornalistas lhe recomendou que pulasse a grade, o que ele fez diante do olhar atônito de um soldado da Guarda Nacional que lhe dizia que a porta estava aberta e ele podia passar por ali, mas o objetivo era fazer uma foto para as cadeias internacionais.

Enquanto os 81 deputados que ficaram dentro do Palácio Legislativo realizavam a sessão para escolher a nova diretoria presidida por Luis Parra, o resto correu para o edifício do El Nacional, principal jornal opositor, para fazer uma reunião que designaria Guaidó, com a consequente declaração dos EUA e do grupo de países reconhecendo-o. Agora Guaidó não é somente o presidente paralelo da República, mas também o presidente da Assembleia paralela.

O espetáculo da oposição dando-se murros nos arredores do parlamento, e o chavismo sentado no palco observando, foi escondido pela imprensa internacional que quer apresentá-lo como um novo enfrentamento entre a direita e o chavismo, como um golpe de estado contra Guaidó, quando de fato é um problema interno aos grupos opositores que brigam pela grana da “ajuda econômica”.

Os novos dirigentes da AN, Luis Parra (PJ), Franklin Duarte (COPEI), José Noriega (VP) e Negal Morales (AD), produto da rebelião interna contra Guaidó, não são anjinhos. Todos estiveram envolvidos nas guarimbas de 2017, no não reconhecimento do governo de Maduro, em janeiro de 2019, e na tentativa de agressão contra a Venezuela a partir da Colômbia, em 23 de fevereiro desse mesmo ano. Mais que uma vitória do chavismo, trata-se da demonstração pública de uma oposição sustentada pelos EUA e financiada pelos governos da América Latina membros do Grupo de Lima, todos em crise interna.

A oposição venezuelana a Maduro não é mais que um bando de vagabundos, que vive às custas da cota de dólares que os Estados Unidos impõem aos governos lacaios, e a briga pelo controle da  AN desnudou-a, apesar das tentativas da imprensa internacional para mostrar outra coisa.


NOTAS

1 Guarimba é o nome dado às ações violentas da oposição, que, normalmente, aconteciam com o bloqueio da entrada dos bairros, de onde se atacava quem passasse ou tentasse entrar neles, principalmente se tivesse aspecto de “chavista”. A origem da palavra na Venezuela equivale a uma trincheira, barricada, local onde se proteger ou se esconder. Daí ser uma referência ao nome de uma brincadeira infantil tipo “polícia e ladrão” ou “gato e rato”, no qual um grupo se escondia atrás de muros para começar uma disputa com outro grupo. Foi o nome dado aos protestos da oposição ao governo Maduro realizados por grupos extremamente violentos, daí a derivação “guarimbeiros” para os indivíduos que participavam deste tipo de ação.

2 – NT: referência à provocação ao touro, na tourada, ao levantar a capa vermelha diante dele.

3 – NT: anos da Assembleia Nacional dominada pela oposição.

 

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