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BRASIL

Tenha fé no nosso povo que ele acorda!

Paula Farias*, de Fortaleza (CE)
Cecília Alves | Dicionário Aurélia | Projeto Prisma

Margarida Alves

 

Na última sexta-feira, 25 de outubro, enquanto nos emocionávamos com as imagens vindas do Chile, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, participava na Paraíba de uma solenidade de reparação simbólica à memória de Margarida Alves.

Para quem não sabe, Margarida Alves foi uma importante liderança do campo na Paraíba, primeira mulher a presidir um sindicato de trabalhadores rurais no Brasil. Ela lutava por direitos básicos como a regulamentação da jornada de trabalho em oito horas, carteira assinada, férias, décimo terceiro, direito à aposentadoria. Enfrentou fazendeiros, usineiros e as ameaças de morte era uma constante em sua rotina. Mulher forte e destemida, é dela a frase: “Da luta não fujo. É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. (1) Em 12 de agosto de 1983, Margarida Alves foi assassinada na porta de casa, na frente do filho e do marido. Ela tinha 50 anos. Um crime de pistolagem a mando de fazendeiros da região. 

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande/PB, presidido por Margarida durante 10 anos, foi fundado em 1962 com a retomada das Ligas Camponesas. A história conta que ela não seria a primeira, tampouco a última, a tombar nas lutas do campo. Neste mesmo ano de 1962 outro paraibano, João Pedro Teixeira, importante liderança das Ligas Camponesas, foi assassinado em uma emboscada. A cerimônia de sepultamento de João Pedro tomou as ruas de Sapé e aproximadamente 5 mil camponeses da região estiveram presente. Certamente, Margarida Alves presenciara aquele momento. O fato obteve uma enorme repercussão e, conta-se que, Fidel Castro prestou homenagem à João Pedro em Cuba. (2) Dois anos após o crime, em 1964, uma equipe de jovens cineastas do Centro Popular de Cultura da UNE e Eduardo Coutinho foram presos durante as gravações do filme “Cabra marcado para morrer” que documentava a luta das Ligas e a morte de Teixeira. Uma parte do material de Coutinho e de sua equipe foi apreendido, a viúva de João Pedro, que deu continuidade à luta do marido e narrava a história, teve que fugir deixando para trás os filhos para não morrer nas mãos da ditadura militar instalada no Brasil naquele ano. O filme de Eduardo Coutinho só foi retomado em 1981, e ficou pronto em 1984, um ano após o assassinato de Margarida Alves. “Cabra marcado para morrer” é um documentário que marca a memória, recupera a história do Brasil, a trajetória das Ligas Camponesas e suas lutas. Em março de 1965, todos os culpados pela morte de João Pedro Teixeira foram absolvidos pelo regime militar e até hoje a viúva, Elizabeth Teixeira, luta por justiça e reparação. 

O assassinato de Margarida Alves em 1983 também obteve forte repercussão. Naquele momento vivíamos sob o comando do último presidente do regime militar, João Baptista Figueiredo. A crise econômica e social se arrastava, o regime militar estava em queda livre diante do movimento “Diretas já!” que ganhava corpo, os exilados da ditadura retornavam ao país e as greves se espalhavam na cidade e no campo. Apesar da denúncia feita pelo Ministério Público à época do crime, ninguém foi condenado. Um homem, que confessou envolvimento com o assassinato de Margarida, foi executado três anos depois, em 1986. Os outros, inclusive um dos mandantes, foram todos absolvidos pela justiça. Tentaram apagar da memória e da história do Brasil as lutas camponesas e seus mortos. Aliás, vale destacar que, um dos mandantes do assassinato de Margarida foi o mesmo mandatário da emboscada de João Pedro Teixeira. (3) Nos conflitos do campo a impunidade segue sendo lei.

No ano 2000 foi fundada a Marcha das Margaridas, homenagem a grande liderança que fora assassinada. O objetivo era denunciar a violência e manter viva a memória da luta das mulheres e homens do campo. O caso 12.332, assassinato de Margarida Alves, foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), mas somente agora, quando o crime completou 36 anos e 19 anos tramitando na CIDH, a reparação simbólica e pecuniária à memória de Margarida Alves foi concretizada. A ironia é este caso ser encerrado no ano que Bolsonaro assume à presidência. O acordo foi assinado pelo Brasil, através do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, com o aceite de José de Arimatéia Alves, filho de Margarida. É público que o presidente Bolsonaro é um apoiador dos ruralistas, defensor da impunidade neste tipo de crime que envolve a defesa da propriedade privada e os conflitos no campo. É de conhecimento internacional a defesa do presidente da ditadura militar, dos métodos de torturas e violações aos direitos humanos perpetrados pelos militares no poder. A presença das forças armadas no atual governo não deve ser desprezada. Se fosse viva, Margarida Alves seria considerada terrorista. 

Jair Bolsonaro não defende reparação tampouco o direito à memória (que é um direito humano). Mas, neste 25 de outubro aconteceu em João Pessoa, na Paraíba, a solenidade de reparação simbólica à memória de Margarida Alves com a presença da ministra Damares Alves. O bizarro é saber que a ministra comemorou este momento histórico como um feito do atual governo. “Nós temos a alegria de estar encerrando este caso que corria na CIDH. O Brasil cumpriu todas as recomendações. Este governo está muito feliz por termos encerrado um caso tão enigmático e por passarmos uma mensagem para o país – nós estamos sim interessados nos direitos humanos.”, (4) declarou Damares durante a solenidade. O governo das milícias, que nega justiça ao assassinato da vereadora do PSOL Mariele Franco, diz fazer reparação e defesa dos direitos humanos no caso Margarida Alves. “Este governo veio e deu fim a este processo”, (5) celebrou a ministra. A solenidade não repercutiu no país, não foi pauta dos veículos de comunicação. Fui pega de surpresa quando minha prima me contou, perplexa, o que aconteceu. E, desconfiadas, tentávamos entender as razões deste governo celebrar a reparação de uma sindicalista, símbolo das lutas das mulheres do campo, assassinada no final da ditadura militar. Essa memória não pode ser legado de um governo que viola os direitos humanos, que tem como política de Estado o genocídio do povo negro, que não se pronuncia diante da execução de crianças nas favelas do Rio de Janeiro pela Polícia Militar, que não reconhece os crimes orquestrados pelo regime militar, que ignora a importância da Comissão da Verdade e que não se choca diante dos números do feminicídio. Só consigo afirmar que a defesa da memória de Margarida Alves segue sendo uma tarefa daqueles que carregam “no peito o cheiro e a cor da sua terra, a marca de sangue de seus mortos e a certeza de luta de seus vivos”. (6)

A memória, a defesa da nossa história, anda fora de moda no Brasil. Estamos adormecidos diante do desastre que é este governo. Atolados na lama da Vale, sufocados com o fogo da Amazônia, contaminados por inúmeros agrotóxicos e uma quantidade absurda de óleo espalhado nas praias nordestinas. Sem futuro, com o sentimento de derrota após a aprovação da reforma da previdência e desolados com os ataques à educação e à pesquisa científica. 

Mantenho a fé de que nosso povo um dia acorda. O que passa atualmente no Equador e Chile (para citar só esses países sulamericanos) foi sendo gestado na luta das mulheres contra a violência, na luta dos estudantes em defesa da educação gratuita e redução da tarifa do metrô, na resistência dos indígenas, na luta contra as medidas de austeridade impostas pelo FMI. Passaram-se anos para que chegássemos à essa explosão, para mover a classe trabalhadora e para produzir essas manifestações que nos emocionam e dão ânimo. É isso que mantém a nossa esperança acesa diante desse abismo que vivemos no Brasil. Saramago escreveu que o bom das derrotas é que elas não são permanentes. Os vídeos de músicos chilenos cantando “el derecho de vivir en paz” de Victor Jara, assassinado pela ditadura de Pinochet, são lindos, emocionantes. É bonito ver a classe e sua diversidade em movimento. É bonito ver a memória viva na voz de centenas de milhares de pessoas na maior manifestação do Chile dos últimos anos. E nesse mesmo dia a nossa Margarida era homenageada na Paraíba por este governo que afirmou que é terrorismo o que ocorre nos países vizinhos e alertou as forças armadas brasileiras para monitorar possíveis movimentos de resistência que possam aparecer por aqui. 

Para nós, lutadores ansiosos, o importante é seguir a canção do Milton Nascimento: “acendendo a esperança e apagando a escuridão, semeando a liberdade em cada coração. Tenha fé no nosso povo que ele acorda, tenha fé no nosso povo que ele assusta. Tenha fé no nosso povo que ele resiste, tenha fé no nosso povo que ele insiste”. (7)

Pode demorar, mas ela virá.  

Em memória de Margarida Alves. 

 

* Paula Farias é socióloga e doutoranda em Educação na Universidade Federal do Ceará (UFC).


NOTAS

1 – https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/saiba-quem-foi-margarida-alves-sindicalista-que-da-nome-a-marcha-camponesa.shtml

2 –  MAFEI, Maristela. Fé e Política. Sangue na terra – a luta das mulheres. Ícone editora, São Paulo, 1985.

3 –  Idem

4 – https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2019/outubro/em-joao-pessoa-pb-ministra-damares-promove-solenidade-de-reparacao-simbolica-a-memoria-da-sindicalista-margarida-maria-alves

5 – Idem

6 – Citado por Vital Farias na abertura da música de sua autoria Saga da Amazônia.

7 – Credo. Milton Nascimento.