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OPRESSÕES

Memória histórica como reparação simbólica: Eu quero ver quando Zumbi chegar!

20 de novembro, Feriado nacional do Dia da Consciência Negra, é aprovado no Senado

Waltecy Alves dos Santos*, de Barueri, SP
Preto não tenha medo
  Respire novos ares
  Mostre a tua força
  E que Zumbi dos Palmares
  Resistência é muita força!
  E nunca foi aparência!
  Resistência é lutar
  Contra este Estado de demência
  Que pra fascista bate até continência
  E pro seu mimimi
  As bichas pretas estão sem paciência
  *Bixarte, “Zumbi”
  Eu quero ver quando Zumbi chegar!
  *Jorge Benjor, “Zumbi”
 

A conjuntura atual é dificílima, marcada pela pandemia de Covid-19, pelo Haiti, devastado por catástrofes naturais e políticas, pela tomada de poder pelos Talibãs no Afeganistão e, em terras brasilis, pelo fascismo à la Bolsonaro, alicerçado pelo discurso político-ideológico de um governo neoliberal de extrema-direita, pensado e operacionalizado com o propósito comum de combater organizações de esquerda, como partidos, sindicatos, lutas e movimentos vinculados à classe trabalhadora, que confrontam as injustiças sociais.

Os psicopatas sociais que chegaram ao comando central da nação promovem a circulação daquilo que Michel Foucault em sua obra Nascimento da Biopolítica chama de ódio biopolítico (que reduz as pessoas aos seus aspectos biológicos como seu sexo, características étnico-raciais e/ou caráter de gênero, orientação sexual e prega a superioridade de um grupo étnico-racial sobre outro e exclui o que considera diferente), contribuindo desta maneira para o aumento de agentes multiplicadores do discurso de ódio e, consequentemente, também, dos alvos diretos desta prática.

Ódio que também está presente nos ataques racistas em supermercados [Carrefour, Extra, Koch e Ricoy] que resultaram em mortes, como a de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, espancado até morrer. Ou do aumento de 90% no número de casos de assassinatos de pessoas trans no Brasil em 2020, da alta de 22% nos feminicídios e do crescimento vertiginoso da intolerância religiosa contra povos de terreiro (Candomblé, Ifá, Umbanda e demais religiões que cultuam divindades de origem africana), como no Rio de Janeiro, com o narcopentecostalismo. Ou das prisões absurdas, em decorrência do protesto contra a estátua de Borga Gato.

Tais fatos, não devem ser analisados de maneira deslocada do contexto da existência social e individual de pessoas pertencentes à classe trabalhadora – negras (pretas e pardas), indígenas, mulheres cis e trans, gays, lésbicas, que historicamente formam a humanidade descartável, alvo principal da “necropolítica” – termo criado pelo filósofo e historiador Achille Mbembe. Visto que, tais agrupamentos humanos, são quase invisíveis ou ocupam, majoritariamente, lugares e papéis de menor importância na estrutura de poder e decisão dos setores público e privado, no Brasil como em outros países do bloco capitalista.

Nada é fruto do acaso, o poder político, econômico e simbólico das religiões beneficiadas pela concessão de licenças audiovisuais (rádio e TV) – por um Estado que hipocritamente se diz laico –, não é em vão. Em plena pandemia (em um período onde muita gente morreu por falta de oxigênio), o governo Bolsonaro gastou milhões com a compra dos direitos de reprodução da novela bíblica da TV Record “Os Dez Mandamentos” e a transmite na estatal TV Brasil, ligada à EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). Há uma conexão intrínseca entre as múltiplas opressões [amparadas em pertencimentos étnicos, raciais, sexuais e de gênero] e capitalismo. Na medida em que, globalmente, é um sistema articulado de economias nacionais e regionais que especialmente se voltam para a defesa dos interesses da elite branco-europeia e seus descendentes. Assim, as práticas discursivas e as ações do atual presidente da República e seus comparsas [ministros Cia Ltda] têm como objetivo principal disseminar ideias racistas, machistas, misóginas, xenofóbicas, LGBTfobicas, promover a intolerância aos afro-religiosos e corroborar com a subalternização de indivíduos aos propósitos das classes dirigentes.

Felizmente, apesar de toda desgraceira que assola o Brasil, recebemos recentemente a grata notícia da aprovação do Projeto de Lei, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP) e relatoria do senador afro-gaúcho Paulo Paim (PT-RS), que institui o Feriado Nacional pelo Dia de Zumbi e da Consciência Negra.

O Dia da Consciência Negra é comemorado na data da morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro, pois, simboliza a imortalidade de suas ideias antirracistas em prol da igualdade racial de oportunidades em nosso país. Ele foi o último líder do maior dos quilombos do período colonial, o Quilombo dos Palmares. A data foi incluída no calendário escolar nacional em 2003 e em 2011 a Lei 12.519 instituiu oficialmente a data como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Este dia é feriado em mais de mil cidades brasileiras, entre elas, Barueri. Nessa ocasião, ocorrem festas, celebrações, passeatas e outras formas de manifestações, organizadas por entidades e organizações não governamentais do movimento negro, em parceria com outros movimentos sociais. Nos diversos municípios brasileiros onde ocorrem, tais manifestações objetivam lembrar a importância histórica deste líder, além de marcar um tempo de reflexão e de ação, na medida em que traduz as lutas dos movimentos antirracistas e a promoção de ações afirmativas de caráter reparatório e valorização da população afrodescendente brasileira.

Nos Estados Unidos, o dia de Martin Luther King – uma das principais lideranças afrodescendentes e antirracistas da história – é um feriado nacional que foi estabelecido em 1983. Anualmente, estadunidenses, honram a memória dele, ao realizarem homenagens e cerimônias comemorativas, com multidões esperadas em eventos em Atlanta, cidade natal do líder dos direitos civis assassinado. No Brasil, a luta é para que o dia da consciência negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares, se torne feriado nacional.

Quando escutamos a palavra “reparações”, de prontidão associamos ao ressarcimento financeiro (pagamento em dinheiro), como, por exemplo, as indenizações milionárias pagas aos judeus vítimas do Holocausto e seus parentes (herdeiros). Em nosso país, o intelectual, ativista e professor universitário Fernando Conceição, foi o articulador nacional do MPR – Movimento pelas Reparações dos Afrodescendentes que propôs o pagamento da indenização de US$ 102 mil para cada afrodescendente como forma de reparação social.

Para além das reparações financeiras, que consistem no ressarcimento monetário, há outras configurações em que estas podem se concretizar. Temos as reparações administrativas, como o estabelecimento de ações afirmativas/discriminações positivas, tais como as políticas de cotas raciais e sociais destinadas aos negros (pretos, pardos) e indígenas e para estudantes de escolas públicas e a devolução às nações africanas de obras de arte saqueadas durante período colonial. Temos ainda, as reparações simbólicas, que objetivam neutralizar os efeitos negativos à memória das vítimas e registrar “mea culpa” pelos crimes de lesa humanidade praticados em um país (demonstração de vergonha nacional pelos horrores praticados pelo Estado).

 No campo das reparações simbólicas, também denominadas políticas de promoção de memória, são efetivadas ações pelos governos municipais, estaduais e nacional como pedidos de desculpas oficiais pelos erros do passado, revisão de programas educacionais, construção de museus e outros monumentos públicos, instituição de feriados, comemorações e denominações de logradouros em homenagem aos mártires da luta contra o crime praticado pelo e/ou no país, estampar em notas de dinheiro os rostos de figuras históricas importantes na promoção e proteção de direitos humanos e que reflitam a diversidade étnico-racial da população, entre outras ações políticas de resgate de memórias. Por exemplo, em 2001, na França, a Lei Taubira estabeleceu a escravatura e o comércio de escravos como crimes contra a humanidade. Em 2004, o Museu Afro Brasil, idealizado e fundado pelo artista plástico Emanoel Araujo, foi inaugurado no Parque do Ibirapuera em São Paulo. Em 2016, em Washington, foi inaugurado o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana. E, na terra de Malcolm X, Angela Davis, Muhammad Ali, Fred Hampton, Marsha P. Johnson, Essex Hemphill, Rosa Parks, Mumia Abu-Jamal, do Partido dos Panteras Negras e outros ícones libertários, em 2020, o presidente do Partido Democrata – Joe Biden – reativou o plano de Obama, rejeitado por Trump, de estampar a ícone abolicionista negra Harriet Tubman em cédula de 2O dólares.

Ao fazermos reivindicações desta ordem, nós, descendentes de africanos espalhados no mundo inteiro, exigimos fazer que nossas lutas e revoltas contra o preconceito racial e demais injustiças praticadas e por um mundo mais justo e igualitário sejam reconhecidas nos espaços públicos, para que possamos ter a possibilidade de nos reconhecer na própria história. Visto que, como nos ensina Steve Biko, “um povo sem uma história positiva é como um veículo sem motor”.

Neste sentido, as lutas de gerações e gerações de negros e negras em diferentes países, pelo resgate ancestral, visam recuperar as histórias que nos foram roubadas, desde o dia em que nossos antepassados foram forçados a dar voltas em um desses lugares de apagamento da identidade, como a árvore do esquecimento em Uidá na costa do Benin, antes de embarcar nos navios negreiros, para que assim apagassem as memórias de seus povos, Deusas e Deuses e lutas.

Aí começou a intenção dos escravagistas e colonialistas de nos branquear tanto física como mentalmente. Impossibilitaram-nos de ter lugar de pertencimento/tempo: por séculos a organização econômica e social marcada por sequestros de africanos, invasões de suas terras, trocas de seus nomes, rompimento dos vínculos de famílias, agressões, estupros, decapitações e mutilações de órgãos sexuais, trabalhos forçados, imposição das religiões dos invasores, marcação a ferro quente e enforcamentos. Enfim, toda sorte de crueldades sofridas pelos povos pretos-africanos e seus descendentes, praticadas por mãos que empunhavam pólvora, chumbo, grilhões, chicotes, armas de fogo. E também, não nos esqueçamos, crucifixos, jarras de água benta e bíblia, pois as missões cristãs e outras religiões invasoras, favoreceram em diversas ocasiões os interesses escravistas, visto que colonialismo e imperialismo são intercambiáveis.

Por fim, não tenham dúvidas de que as elites brancas e embranquecidas de nosso país sabem que, como diz a música de Wilson das Neves e Paulo Cesar Pinheiro – No dia em que o morro descer e não for carnaval. Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final. Na entrada, rajada de fogos pra quem nunca viu. Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil. Guerra civil.”

Diante disso, é importante entendermos que em um país com os aspectos étnicos, sociais, culturais, históricos, linguísticos, religiosos, geográficos como o nosso, a luta de massas (do poder para a maioria); a luta revolucionária dos trabalhadores pelo socialismo só acontecerá com o despertar da consciência transformadora e com a ampla participação do povo negro.

* Waltecy Alves dos Santos é professor efetivo da área de Literatura e Português Linguagens da FIEB – (Fundação Instituto de Educação de Barueri – São Paulo/ Brasil). Possui graduação em Letras e Mestrado em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi Secretário Estadual de Combate ao Racismo do PT-SP e é a pessoa mais jovem da história (aos 16 anos de idade) a fazer parte das direções do Sindicato dos bancários de São Paulo, da Confederação nacional dos bancários e da CUT (Central única dos trabalhadores). Foi Secretário Geral do PSOL-Barueri. É militante da Resistência do PSOL. Além disso, é desde muito jovem, militante do movimento negro, LGBTQIA+, candomblecista e orgulhosamente filho de Ogum!