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Guerra às drogas, guerra aos pobres e negros

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

A imagem-show amplamente divulgada do governador Wilson Witzel no interior de uma aeronave militar, sobrevoando bairros pobres do município turístico de Angra dos Reis, ordenando o ataque a tiros, lá do alto, aos “criminosos” supostamente identificados por ele como tal (e ao final da operação indo descansar com a família no Hotel Fasano), pode ensejar muitas interpretações (e processos nacionais e internacionais inclusive) mas a mensagem resultante deste episódio é conhecida: Guerra às drogas!

E assim por diante, pode-se também inferir das últimas ocorrências, em que os assassinatos causados por forças de segurança no Rio de Janeiro, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP) somente entre janeiro e março deste ano de 2019, do total de 59 homicídios na cidade do Rio, 52% foram resultado de “autos de resistência”, índice superior a 2016, 2017e 2018. No âmbito nacional, as mortes causadas por forças de segurança em dobraram nos últimos cinco anos, segundo o jornal O Globo, de 28/04/19, com destaque para a recente execução do músico negro Evaldo com mais de 80 tiros; crianças alvejadas por helicópteros no complexo da Maré, enfim, em todos estes casos de execuções, verdadeiras matanças coletivas, praticadas por uma das forças de segurança, juntas ou em separado, ecoa repetidamente a mesma convocação e mensagem: guerra às drogas!

Pois bem, esta política está em vigor no Brasil há no mínimo duas décadas, sendo a lei anti-drogas de 2016, atribui aos entorpecentes, ao lado de seus usuários e traficantes, a culpa e responsabilidade pela violência social que a todos aflige e, a partir desta premissa, exercita cotidianamente uma espécie de “licença para matar” negros e pobres nos morros e favelas cariocas, considerados os “ninhos de traficantes”, para citar o exemplo aqui do Rio de Janeiro. Assim, aqui andam juntos o álibi e serviço militar sujo, agindo em nome do Estado e, de outra banda, cresce o crime organizado.

E qual o resultado disto? Violência! Mais militarização! Ampliação do crime organizado, do tráfico e também das milícias! Crescimento do encarceramento, com maior ênfase em presos (condenados em definitivo ou provisoriamente) pobres e negros.

Este, portanto, em breve resumo, a incontestável conseqüência prática desta política implementada por Witzel, em continuidade ao padrão militarizado imposto pela recente intervenção militar no RJ.

Ao lado de uma inconstante “sensação de segurança” sentida por parte da denominada e sempre iludida classe média, ao passo que nos bairros pobres impera mesmo o justo receio e o terror, seja em relação às forças de segurança, seja em relação aos bandidos, tanto faz a proporção de pavor em relação a um ou outro, pois tudo é medo afinal.

Em verdade, trata-se de uma política que se retroalimenta, justifica o militarismo crescente, e, da parte dos bandidos, impulsiona a organização paramilitar e a aquisição de mais armas e munição, se possível corrompendo postos-chave da hierarquia de fiscalização de armamentos, como recentemente vimos com a prisão do Tenente-Coronel do Exército responsável por esta fiscalização no Rio de Janeiro. Os meios, recursos e conexões com o poder são vastos… inclusive na vertente miliciana destes prósperos negócios.

Destaque-se em meio a tudo isto a questão carcerária, apolítica de encarceramento em massa, que, como também sabemos, não tem origem somente nas drogas, mas nos furtos e roubos, pois neste país uma apenas ínfima quantidade de homicídios chega a ser investigada seriamente e apenada.

Em 1990, havia segundo os dados disponíveis no CNJ, cerca de 90 mil presos, sendo que desde 2016 elevou-se para a casa dos 726 mil, muito impulsionado também pelas prisões relacionadas ao tráfico de entorpecentes. Com efeito,conforme reportagem intitulada “Aumenta o número de mulheres presas por tráfico”, publicado em 24/06/2018, por Helena Martins, Repórter da Agência Brasil Brasília, cerca de 201.600 pessoas “rodaram” por crimes relacionados ao tráfico de pequenas quantidades de drogas, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2016, sendo citado inclusive o caso de uma mulher de 56 anos, condenada a dois anos, seis meses e nove dias de prisão, por ter sido presa em Fortaleza com apenas 75 gramas de maconha, situação semelhante á maioria dos casos de aprisionamentos por tal tipificação de crime, em um percentual de 28% das incidências penais pelas quais pessoas foram condenadas ou aguardavam julgamento naquele ano, com a observação de que 62% destes casos eram de mulheres encarceradas.

Hoje, em 2019, no que diz respeito ao encarceramento geral no pais, independentemente do crime, o índice proporcional de presos por 100 mil habitantes oscila de 347 (Infopen – 2016) para 337 (BNMP/CNJ – fevereiro 2019), ambos números bastante expressivos (ver no sítio virtual do World PrisonBrief); De acordo com informações do BNMP/CNJ, de fevereiro de 2019, o Brasil teria 719.998 pessoas presas acrescidas de uma estimativa de 36.765 pessoas custodiadas em delegacias de polícia, com nível de ocupação (superlotação) de 166,2%, sendo que a capacidade de vagas no sistema prisional brasileiro está estimada em 417.135 postos, sendo aqui desnecessário falar sobre o escancarado e notório descumprimento da Lei de Execução Penal no que diz respeito a quantidade de presos por estabelecimentos, condições dignas de alojamento, alimentação e capacidade máxima de cada um, o que as s frequentes e justas e legítimas rebeliões de presos em todo o pais constantemente revelam e denunciam.

A lei não é cumprida e o fato é que expressiva parcela destes homens e mulheres presos estão nesta condição, inclusive, por causa do tráfico de pequenas quantidades de drogas.

Infelizmente, este quadro somente tende a piorar, pois o Governo Bolsonaro, ao contrário do movimento de descriminalização das drogas que vem crescendo em todo mundo, inclusive nos EUA, é bastante claro no sentido de aprofundar e fortalecer esta política de genocídio e encarceramento, tendo com alvo preferencial referidos negros e pobres. Recente Decreto do Executivo, em 11 de abril, estabeleceu sua “nova política nacional sobre drogas”, tendo como base o fortalecimento das chamadas “comunidades terapêuticas”, administradas em sua maioria por igrejas evangélicas, assim como a diferenciação entre usuários e traficantes, tendo em vista o local em que for preso em ação, seus antecedentes e “características sociais”. Somente faltou dizer: observar a cor da pele! Ao lado desta iniciativa, temos o pacote “anti-crime” do ex-juiz e hoje Ministro Moro, que, em breve resumo, insiste na criminalização das drogas, assegura verba para as tais comunidades terapêuticas e aumenta penas, como se isto simplesmente resolvesse o problema da violência e criminalidade, que sabemos, tem raízes nos problemas sociais, educação, saúde, fome, temas em relação aos quais a elite é incapaz – e também não deseja- de fato resolver no Brasil. Por este motivo insiste no “ mais do mesmo”: violência estatal e prisão.

Caminhando, enfim, para a conclusão, – que reconheço não aprofunda como merece o tema – mas convicto do caráter genocida desta campanha “anti-drogas”, entendo que é cada vez mais urgente debater e buscar convencer a população do quanto faz-se necessário legalizar as drogas no Brasil, descriminalizar o uso da maconha, sua produção e distribuição, a fim de que, uma vez feito isto, a questão do excesso no uso de entorpecentes e as diversas formas de dependência sejam tratados enquanto assunto de saúde pública e não de prisão. Não há saída para violência nos bairros pobres sem partir da descriminalização das drogas, aliado com politicas públicas, especialmente de moradia, saúde e educação. Somente assim, tratando cada substância de maneira adequada, sem criminalizar, vamos combater os efeitos maléficos do vício, que, como o álcool eo cigarro de folhas de tabaco, devem ser igualmente objeto de informação e conscientização das consequências de seu uso, sendo que, – no caso da maconha – , cada vez  mais é atestado o caráter benéfico de seu uso para fins medicinais, conforme de longa data defende o advogado e amigo André Barros, um dos primeiros líderes da Marcha da Maconha no Rio de janeiro, além de ser, convenhamos, absolutamente arbitrário impedir as pessoas de terem o prazer que assim desejarem através de seu uso, da mesma forma que se consente o cigarro de tabaco lucrativamente comercializado, assim como a produção e distribuição da cerveja e do vinho, por exemplo.

Qual o sentido afinal de se proibir algumas drogas, estimular o crime organizado, o tráfico e a violência, em nome desta insana “guerra às drogas”? Que Direito tem o Estado de agir desta forma policial, quando concomitantemente autoriza o álcool, que, sabidamente, é fonte de doença classificada pela OMS na forma de alcoolismo. Certamente não esta politica não se aplica em benefício da maioria da população, mas de uma ínfima minoria, político-econômica, que não somente lucra bilhões com mais esta guerra, mas também a utiliza como pretexto e álibi para politicamente defender e estabelecer as bases de um regime cada vez às drogas e ao extermínio do povo negro, jovem e pobre!