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OPRESSÕES

Formalismo e antipunitivismo na criminalização da LGBTfobia

Guilherme Cortez

Nesta quarta-feira (13), o Supremo Tribunal Federal começou o julgamento de duas ações que propõe a equiparação da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais ao crime de racismo (Lei 7716/89). Esse tema tem despertado polêmica com os setores conservadores e reacionários, principalmente entre aqueles que acusam a criminalização da violência contra LGBTs de cercear a liberdade religiosa.

No entanto, mesmo entre o movimento LGBT não há consenso em torno dessa matéria. Em 2017, escrevi um texto levantando dúvidas sobre esse tema. Meu objetivo agora é dialogar com as duas principais tendências progressistas que divergem da criminalização da LGBTfobia, sem ter qualquer pretensão de apresentar um trabalho científico e rigorosamente embasado, mas opinar apressadamente no calor desse debate. Como embasamento, recomendo apenas a leitura da obra A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, do jurista soviético Evgeni Pachukanis, em especial seu capítulo final, que trata do direito penal.

Uma dessas correntes – ao qual eu chamo de formalista – não é contrária à criminalização da LGBTfobia em si, mas a sua decisão pelo Poder Judiciário. Sua argumentação é a de que caberia ao Legislativo encampar essa mudança. A saída através do Judiciário carregaria mais limitações do que uma efetiva mudança legislativa, além de abrir espaço para os juízes decidirem diretamente sobre a política. Embora a criminalização da LGBTfobia seja uma medida progressiva – reconhecem –, pode abrir margem para futuramente o Judiciário fazer mudanças reacionárias nas leis.

Todos esses apontamentos são corretos num certo grau de abstração. Uma decisão jurisprudencial tem menos peso e é mais facilmente reversível do que uma mudança legislativa. A tarefa de criação e modificação das leis, segundo a teoria da repartição dos poderes de Montesquieu, caberia ao Legislativo, enquanto o Judiciário somente seria responsável por sua aplicação. O Judiciário é o poder menos democrático da República, o único no qual a população não pode eleger seus representantes em nenhuma instância. Consequentemente, também é o mais descolado e independente do controle do povo. Por isso também é extremamente suscetível a mudanças reacionárias. Os ministros do Supremo que ora se inclinam pela criminalização da LGBTfobia e no passado já chancelaram a lei de cotas são os mesmos que aprovaram o desconto de ponto dos servidores públicos em greve e a aplicação de pena após a condenação em segunda instância. O Judiciário passa longe de ser um poder “neutro” e iluminista. A chamada “judicialização da política”, quando o Judiciário decide diretamente sobre questões políticas, é em geral reacionária, e abre espaço para os juízes se sobreporem a direitos democráticos e garantias legais, como vemos constantemente hoje.

Ocorre que há questões objetivas das quais não podemos desviar. Atualmente, o Legislativo e o Executivo são dominados pelos setores mais reacionários da política e da sociedade brasileira, os quais têm a população LGBT como inimigos frontais. Qualquer melhora de vida para as LGBTs por iniciativa desses setores é impensável no atual momento. Em paralelo a isso, a existência das LGBTs continua sendo ameaçada como sempre.

A conquista de reformas jurídicas que melhorem as condições de vida dos explorados e oprimidos é sempre uma vitória, embora não sejam capazes de superar o sistema no qual estão inseridas. Nenhum dos poderes da República está a serviço de uma transformação social profunda. Dito isso, precisamos defender as medidas progressistas não importa de qual terreno venham, sem deixar de apontar suas limitações em caso algum. A criminalização da homofobia e da transfobia é uma conquista civilizatória, que vai no sentido oposto da naturalização institucional da violência LGBTfóbica. Hoje no Brasil, um ato de violência contra uma pessoa trans, por exemplo, é considerado um crime corriqueiro, desconsiderando sua motivação arraigada no ódio e na intolerância. Seja através do Legislativo ou do Judiciário, a criminalização da LGBTfobia representaria um instrumento contra a banalização e impunidade da violência contra a comunidade sexo-diversa. Em ambos os casos, estaria sujeita às limitações estruturais do sistema, as quais devemos denunciar. Mas não podemos deixar essa demanda de lado por causa das limitações das estruturas nas quais está inserida. Somente em um sistema de sociedade alternativo seria possível lidar por completo com a situação da violência e da opressão.

A outra tendência tem origem nas correntes antipunitivista e abolicionista penal. Se baseia nas limitações objetivas do sistema penal, em especial na realidade brasileira. Sustenta, com razão, que o sistema penal é incapaz de produzir uma transformação social que ponha fim ao preconceito e à violência contra a população LGBT. No caso brasileiro em específico, relembra que a Justiça penal tem alvos preferenciais e que a criação de um novo tipo penal, longe de solucionar o problema da homofobia e da transfobia, corroboraria com uma política de encarceramento e punição em massa.

Aqui também repousam verdades incontestáveis. Não se pode idealizar o sistema penal brasileiro: o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do planeta, boa parte dessas pessoas presa por pequenos crimes patrimoniais e sem sequer ter tido direito à ampla defesa. A população carcerária brasileira é majoritariamente composta por jovens negros, de baixa renda e nível de instrução escolar. A criminalização da LGBTfobia certamente não inverteria essa tendência. Ao mesmo tempo, não podemos deixar um setor da população vulnerável, sem proteção ou garantias legais, por conta das contradições de aplicação do sistema. Mais uma vez não podemos “despejar a água com a criança dentro”.

Precisamos travar uma luta incansável contra o atual modelo do sistema punitivo brasileiro, que não resolve nenhum problema, mas só os aprofunda. Isso passa pela reivindicação de uma ampla reforma dos sistemas judiciário, penal, carcerário e legislativo, mas também por compreender que essas contradições são funcionais à ordem social, política e econômica atual e que só podem ser completamente superadas num modelo societário superior. Paralelamente, não podemos negar a luta pela conquista de condições de vida dignas dentro desse sistema e isso passa por mecanismos de proteção social. A própria conquista dessas possibilidades dentro de um sistema essencial injusto e repressivo é resultado do esforço de mobilização dos setores oprimidos e deve ser reconhecida como uma vitória.

Tomemos como exemplo a Lei Maria da Penha (11340/06), que criminaliza a prática de violência contra a mulher. É evidente que a violência de gênero em geral não foi erradicada pela lei e que sua aplicação é perpassada pelos vícios do sistema judiciário-penal. Ao mesmo tempo, não se pode negar que representa um marco importante no enfrentamento da violência contra as mulheres, além de garantir o mínimo de proteção no campo jurídico para as vítimas, e foi fruto de uma mobilização vitoriosa do movimento feminista.

As reformas jurídicas que garantem direitos não estão livres de limitações, mas tampouco devem ser recusadas. Temos que apontar suas contradições e propor sua superação nos marcos de uma transformação social estrutural. Que a homofobia e a transfobia sejam crimes para que a violência contra LGBTs deixe de ser banalizada. Mas continuemos a luta pela erradicação do preconceito e da violência, pela transformação profunda dos nossos sistemas jurídico e punitivo e por uma sociedade na qual ninguém mais seja vítima de qualquer forma de opressão ou de exploração.

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