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Bolsonaro, neoliberalismo e ojeriza à política

Fernando Frazão / Ag. Brasil

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

Quem passou pelas bancas de jornal na penúltima semana certamente reparou na capa da revista Veja. Com o título “Ele pode ser o presidente do Brasil” e a foto de Paulo Guedes – economista escalado por Jair Bolsonaro para comandar sua equipe econômica – estampando a capa, este conhecido periódico de direita deixava claro para o bom leitor o tipo de aliança que representa essa candidatura.

Por um lado, um legítimo Chicago Boy, aluno de Milton Friedman, que passou pelos grandes centros de pensamento neoliberal do país e chegou a lecionar na Universidade do Chile no auge da ditadura de Augusto Pinochet; além de, obviamente, ter enriquecido no mercado financeiro, primeiro com a corretora/banco Pactual e depois com o Grupo Abril e a Bozano Investimentos. Em suas aventuras na política, Guedes assessorou a campanha de Guilherme Afif Domingues nas cruciais eleições de 1989 e seria o assessor de Luciano Huck caso este não tivesse desistido de candidatar-se. Um curriculum irretocável para uma direita sem constrangimentos, que afirma que a polícia deveria ter carta branca para matar ou que não há limites para as privatizações. (1)

De outro lado, Bolsonaro tem como aliado o general Augusto Heleno que, em evento reunindo parte dos 71 candidatos militares que tentarão o pleito este ano, afirmou que Bolsonaro “não é o candidato dos seus sonhos”, mas que “é o único com possibilidade de mudar o que está aí porque todos querem que se faça uma faxina no País”. (2) Segundo Guedes, a candidatura de Bolsonaro seria perfeita porque une a “Ordem e o Progresso”. A Carta ao Leitor da revista Veja é um capítulo à parte: critica Bolsonaro por ser “estatista”, e que por esse motivo não seria o candidato certo para os corretos planos de Guedes. Uma lição de como não combater Bolsonaro.

Uma candidatura empresarial-militar?
Podemos afirmar sem dúvidas que até muito pouco tempo atrás o nome que alguns ainda insistem em não dizer o nome (como se isso realmente fosse qualquer coisa de eficaz em combatê-lo) não era o preferido do grande empresariado brasileiro. Mas isso vem mudando. O empresariado é pragmático e quer saber com quem vai lidar a partir de 2019.

Com Lula impedido de ser candidato, o único que, de acordo com todas as últimas pesquisas, seria capaz de vencer Bolsonaro, estaria fora do páreo. A direita neoliberal tradicional, com uma enorme dificuldade de construir uma candidatura única e um pouco frustrada com a total falta de carisma de nomes como Geraldo Alckmin, Álvaro Dias ou Henrique Meirelles, a falta de confiança em Ciro Gomes e as idas e vindas de Marina Silva, ainda se debate sobre o que fazer, depositando esperanças na máquina eleitoral, no tempo de televisão e nas coalizões.

Assim, já enquanto segundo nome nacionalmente mais mencionado nas pesquisas, Bolsonaro passou a ser convocado para uma série de reuniões com empresários no Brasil e no exterior para explicar sua plataforma de política econômica. Em alguns eventos foi bastante aplaudido, e o nome de Paulo Guedes foi certamente um dos principais motivos para a súbita euforia que tomou conta desta parcela empresarial. (3) Embora ainda haja setores bastante reticentes, é claro um movimento de aproximação.

De uma forma ou de outra, Bolsonaro, sem recuar de suas posições fascistas, teve sua candidatura aceita, jurídica e midiaticamente, como legítima dentro da democracia brasileira, o que por si só já é um acontecimento digno de nota. Embora a tragicômica candidatura de cabo Daciolo possa lhe roubar uma parcela de votos entre os fundamentalistas religiosos, outro efeito que ela produziu nos debates televisivos recentes foi uma amenização da figura de Bolsonaro; e ambos fazem figuras grotescas como Dias ou Alckmin parecerem verdadeiros gentlemans.

Todo o debate eleitoral se deslocou para a direita, fazendo com que a esquerda (invariavelmente identificada com o PT, apesar do crescimento do PSOL) seja colocada, no discurso predominante na mídia, como o outro polo da extrema-direita de traços fascistas. Em tal visão, Lula seria o “populista de esquerda” e Bolsonaro o “populista de direita”: como se houvesse uma eqüidistância entre as posições bastante moderadas de Lula (para dizer o mínimo) e as posições fascistas de Bolsonaro. Ambos seriam, nessa leitura, perigos para a democracia basicamente pelo fato de serem “populistas”, isto é, de se utilizarem de ideários que interpelam as classes populares – trata-se do velho horror à participação política das massas.

Neoliberalismo e desdemocratização mundial
A candidatura de Bolsonaro, vitoriosa ou não, coloca o Brasil numa conjuntura internacional que já levou ou ameaça seriamente levar aos mais altos postos de Estado figuras que não deixam nada a dever em termos de xenofobia, homofobia, misoginia, racismo, e um longo etc. Não podemos compreender esse fenômeno mundial sem levar em consideração duas questões relacionadas. A primeira delas diz respeito à relação dessa nova direita com o neoliberalismo e o formato de democracia que se construiu nas últimas décadas; e segunda se relaciona com aquilo que a maioria dos analistas que brotam no período eleitoral trata como mera apatia eleitoral, mas que constitui fenômeno muito mais profundo: uma verdadeira ojeriza à política.

A democracia de bases schumpeterianas que se firmou na maior parte dos países ocidentais nas últimas décadas, conjuntamente com a ascensão e consolidação do neoliberalismo, levou à identidade, no imaginário popular, entre política e políticos, considerados corruptos por natureza. Política como sinônimo de corrupção: esse é o pensamento largamente majoritário hoje na população brasileira e em grande parte do mundo. (4) “Mais Brasil, menos Brasília”, é um dos slogans preferidos de Paulo Guedes.

A criação, mais ou menos artificial, de um clima social de terror e insegurança – que nos países europeus ou nos Estados Unidos está essencialmente ligada a atentados terroristas, e que no Brasil está ligada à questão da violência urbana – é outro fator que joga água nos moinhos do conservadorismo. Diante do desespero social, as “soluções” autoritárias ganham cada vez mais terreno, pois se a luta política por uma transformação social que mine o problema da violência pela raiz não está sequer cogitada por nenhuma das grandes forças políticas, resta crer naquilo que parece que vem pra “resolver com pulso firme”, “dar um ponto final nisso tudo” (corrupção/violência urbana). E nada parece melhor que um ex-militar destemido para isso.

Não por acaso a questão da segurança pública é o principal mote da campanha de Bolsonaro, e a plataforma que este apresenta é um aprofundamento significativo da mesma política que vem dando errado para as populações periféricas, mas que vem dando muito certo para os largos – embora obscuros – setores que lucram com a “guerra às drogas”, que, como sabemos, trata-se de uma guerra aos pobres. Esse modelo, seja por conta do controle populacional, seja por conta do encarceramento em massa, está intimamente ligado à forma de gestão do trabalho no neoliberalismo. (5)

Aqui é fundamental pontuar que neoliberalismo não constitui apenas um conjunto de políticas econômicas (o chamado tripé macroeconômico). Mais do que isso, o neoliberalismo é uma estratégia de desenvolvimento que surge na nova fase do capitalismo cujo marco cronológico é a crise econômica, social e política mundial do início dos anos 1970 – que ocorreu historicamente através de muitos tipos de modelos, incluindo aí o “social-liberalismo” dos anos Lula, Bachelet e Kirchners. (6)

É importante notar que o protecionismo, as disputas interimperialistas, as guerras comerciais, nada disso foge do escopo da estratégia de desenvolvimento neoliberal, e em nenhum país que sofreu a última grande crise econômica houve qualquer medida que fugisse ao receituário de enxugamento de gastos, extinção de direitos sociais, competição por investimentos e constitucionalização dos princípios neoliberais. A tragédia grega de 2015-16 é exemplar.

Tampouco está em questão a organização empresarial transnacional que se dá fundamentalmente dentro de organismos privados como o Fórum de Davos, a Cúpula Empresarial das Américas, entre muitos outros – ao contrário, esses aparelhos vêm organizando cada vez mais frentes móveis de ação que tratam de um amplo conjunto de modalidades de cooptação e coerção. Ao invés de uma oposição entre tendências globalistas neoliberais e um populismo protecionista, podemos estar vendo o nascimento de uma nova fase do imperialismo.(7)

Foi aliás um desses aparelhos, o “Instituto Resgata Brasil” que fez a ponte entre Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Organizada por dois outros aparelhos privados, o “Centro de Estudos em Seguridade” e a “Fundação Indigo”, programado inicialmente para julho mas adiado para dezembro por causa da legislação eleitoral, a “Cúpula Conservadora das Américas” pretende reunir conhecidos representantes intelectuais, empresariais e militares do Brasil, Venezuela, Colômbia, Paraguai, Estados Unidos, como o candidato análogo a Bolsonaro no Chile, Antônio Kast, que nas últimas eleições chilenas tirou terceiro lugar no páreo. Esse evento é representativo da construção de uma aliança de extrema-direita explícita na América Latina.

Nossa hipótese é que tal estratégia de desenvolvimento é compatível com diferentes tipos de regimes políticos. Desde seu princípio, aliás, com o laboratório chileno a partir do golpe de 1973, a implantação de tal modelo esteve associada a choques e a endurecimento dos regimes democráticos, mesmo nos países imperialistas, como Estados Unidos e Inglaterra.  O longo processo de desdemocratização que vivemos desde os anos 1970 não apenas operou a despolitização da política, como propiciou o aprofundamento de uma subjetividade individual competitiva e “empreendedora”, (8) a quebra da identidade classista, a crise da esquerda revolucionária e uma derrota histórica da classe trabalhadora.

Decifra-me ou te devoro
No atual cenário, o paradoxo que enfrentamos é que para grandes massas na maior parte do mundo a esquerda se vê associada à defesa desses carcomidos regimes, enquanto a direita consegue emplacar uma imagem anti-stablishment. Assim foi com Trump e assim já vemos na campanha de Bolsonaro: a extrema direita conseguindo apropriar-se do signo da rebeldia e das idéias radicais, ganhando largos setores que, justificadamente, não se sentem representados politicamente, e sofrem as penúrias dos ataques aos direitos sociais, aos sistemas de saúde e educação públicos, do desemprego, do subemprego e da precarização.

Retórica à parte, essa nova direita representa o casamento entre um programa neoliberal e uma plataforma conservadora do ponto de vista dos costumes (racismo, machismo, homofobia), além, como já nos referimos, do aprofundamento da coerção social. Entretanto, como a ideologia da direita vem ganhando o senso comum, essa coerção pode perfeitamente vir acompanhada de um amplo consenso – vide, por exemplo, a majoritária aprovação da população carioca à intervenção militar no estado do Rio, que apenas diminuiu quando do resultado das operações militares nos seus primeiros quatro meses. A intervenção militar no Rio vem de par com uma gradual e passiva reforma do regime político, operada desde seu interior e encabeçada pelo Judiciário.(9) Bolsonaro não é um raio em céu azul.

Se observarmos outros períodos históricos, veremos como a burguesia, diante de uma crise política, econômica e social como a que vivemos, e ainda mais em países como o Brasil, com uma história marcada pelo signo da contra-revolução preventiva, não hesita em aceitar um candidato como Bolsonaro desde que ele aponte para uma garantia do alcance dos objetivos fundamentais do grande capital. A burguesia brasileira já demonstrou que não aceita mais uma alternativa Lulinha paz e amor; e não teria liderado um golpe e apoiado majoritariamente um governo como o de Temer para aceitar o retorno do lulismo, ainda que a única alternativa a isso seja embarcar em uma aventura, seja ela via uma candidatura de extrema-direita legitimada pelas eleições, seja mesmo uma alternativa diretamente militar. Tudo é uma questão de circunstâncias.

FOTO: Fernando Frazão/Agência Brasil

NOTAS

1 – COSTA, Ana Clara & BUSTAMANTE, Luisa. “A cabeça de Bolsonaro”. Veja, 22 de agosto de 2018, p.32-38. https://veja.abril.com.br/edicoes-veja/2596/.

2 – ESTADÃO CONTEÚDO. “Inspirados em Bolsonaro, militares vão lançar 71 candidatos”. Estado de Minas, 09 de maio de 2018. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/05/09/interna_politica,957367/inspirados-em-bolsonaro-militares-vao-lancar-71-candidatos.shtml.

3 – BALTHAZAR, Ricardo. “Bolsonaro ganhou aplauso de empresários até quando errou”. Folha de S. Paulo, 18 de julho de 2018. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardobalthazar/2018/07/bolsonaro-ganhou-aplauso-de-empresarios-ate-quando-errou.shtml; LIMA, Mario Sergio; ADHIRNI, Samy & IGLESISAS, Simone. “Bolsonaro não assusta empresariado, afirma presidente da CNI”. UOL/Bloomberg, 17 de julho de 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/bloomberg/2018/07/17/bolsonaro-nao-assusta-empresariado-afirma-presidente-da-cni.htm; LIMA, Mauricio. “Bolsonaro recebe apoio surpreendente de empresários”. Veja, 09 de dezembro de 2017. https://veja.abril.com.br/blog/radar/bolsonaro-recebe-apoio-surpreendente-de-empresarios.

4 – Ver DEMIER, Felipe. “Jacobinismo às avessas: anticorrupção e neoliberalismo na política brasileira atual”. Esquerda Online, 25 de junho de 2018. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2018/06/25/o-jacobinismo-as-avessas-anticorrupcao-e-neoliberalismo-na-politica-brasileira-atual/.

5 – BATISTA, Vera Malaguti (org.) Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

6 – CARCANHOLO, M.D. & BARUCO, G.C.C. A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições. Praia Vermelha.  Vol. 21, nº 1. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011; HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008; COUTINHO, C.N. “A época neoliberal: revolução passiva ou contra-reforma?” In. Novos Rumos. V.49, n.1, p.117-126, Jan-Jun 2012.

7 – LEITE, Leonardo. “Trump e a nova fase do imperialismo”. Blog da Boitempo, 24 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/24/trump-e-a-nova-fase-do-imperialismo/.

8 – DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

9 – Sobre o papel do Judiciário nos últimos anos no Brasil, ver MIGUEL, Luis Felipe. “Poder Judiciário: a ponta de lança da luta de classes”. Le Monde Diplomatique Brasil, 02 de março de 2018. Disponível em: https://diplomatique.org.br/poder-judiciario-ponta-de-lanca-da-luta-de-classes/.

 

* Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestre e doutoranda em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ativista feminista no Rio de Janeiro. Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016).

 

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