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Especiais
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Estudar Marx dentro e fora das universidades

Demian Melo (historiador e membro da #Resistência)

O “enterro do marxismo” era uma expressão bastante usual durante meu bacharelado em História na UFRJ, no início do milênio. Para quem se formou na área de humanas após o colapso da URSS talvez seja uma espécie de truísmo lembrar que o meio acadêmico havia se tornado um ambiente hostil ao pensamento de Marx e ao marxismo.

Em fins da década de 1990, o grande historiador liberal brasileiro José Murilo de Carvalho escreveu um irônico artigo no jornal O Globo intitulado “Como fazer uma tese e vencer?”, onde o cerne da mensagem era o de que se você pretende ter algum sucesso na vida acadêmica a coisa mais importante a ser feita é ficar longe do marxismo.1 Marxismo seria intrinsicamente démodé, quando não simplesmente a “filosofia do Gulag”, como quiseram os Nouveaux Philosophes Bernard-Henri Lévy e André Glucksmann, que de certo modo deram o tom do preguiçoso discurso antimarxista no mundo acadêmico desde a década de 1980.

Essa “crítica” caricata da década de 1980, reproduzida até hoje nos discursos sobre a “irrelevância do marxismo”, naturalmente foi tocada pelo processo de crise dos regimes justificados ideologicamente em nome do marxismo. Na década de 1990 as ideias de Marx eram comumente associadas ao Livro negro do comunismo, obra sensacionalista, irrelevante do ponto de vista do conhecimento histórico, mas muito eficiente na disputa pela memória que buscou colar no marxismo ao suposto “maior crime do século XX”. Naquela onda revisionista (que deixou os seus colossos enterrados na areia até hoje) os genocídios armênio, no Congo, na Namíbia e principalmente o Holocausto foram colocados de lado com a transformação do anticomunismo em paradigma historiográfico.2

Junto ao revisionismo liberal da Revolução Francesa protagonizado por François Furet, o Livro negro do comunismo é um monumento reconfortante aos que alegam combater a leitura ideológica da história reproduzindo nada mais que ideologia. Em tempos em que é mais fácil acreditar na destruição da humanidade em razão de uma guerra atômica ou um desastre ambiental, mas não na possibilidade de construção de uma outra sociabilidade para além do capitalismo, reduzir o pensamento de Marx a uma “filosofia do Gulag” ajuda a vender livro, confortar espíritos já acomodados e talvez algum sucesso na carreira acadêmica.

Marxismo nas universidades brasileiras
No entanto, ao contrário daquela agitação ideológica tão presente nas salas de aula em minha experiência no bacharelado, e para desespero da direita hidrófoba, os marxistas não desapareceram na pesquisa acadêmica. Hoje são inúmeros os núcleos de pesquisa dedicados ao pensamento de Marx e ao Marxismo nas universidades brasileiras. Como o pensamento de Marx não é redutível a nenhum campo disciplinar tais grupos de pesquisa costumam reunir pesquisadores de várias áreas. A produção marxista brasileira hoje tem repercussão internacional, mas isso também não se constituiu num fenômeno recente, nem mesmo no que se refere aos estudos específicos sobre a obra marxiana. No plano dos estudos filosóficos, por exemplo, a obra de Ruy Fausto Marx, lógica e política, produzida na década de 1970 em Paris é consultada como parte da literatura obrigatória há algumas décadas por marxólogos de várias latitudes do mundo universitário. E embora só mesmo na mente paranoica da direita hidrófoba as nossas universidades brasileiras possam ser consideradas um “antro de comunistas”, existem importantes grupos de pesquisa dedicados ao marxismo, dos quais é possível destacar o Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp e o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e no Marxismo (NIEP) da UFF.

Mas será que só é possível estudar Marx e o marxismo no mundo universitário?

O que é curioso dessa questão é o fato de que tanto Marx como o marxismo não surgiram no interior do ambiente acadêmico, pois embora nosso autor tenha tido sua formação acadêmica nas universidades alemãs, todos os jovens hegelianos foram excluídos daquele ambiente antes mesmo que Marx pudesse alimentar o sonho de ingressar ali como docente. Foi nas buliçosas ruas de Paris que Marx aderiu ao comunismo e ao movimento dos trabalhadores. Mas Marx nunca cindiu a tarefa de entender a lógica do modo de produção capitalista daquela de organizar o movimento dos trabalhadores como uma classe autônoma. Nunca deixou de considerar como princípio as belas palavras de Flora Tristan segundo a qual a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.

Mas também nunca cedeu a pressão “populista” de considerar que o sujeito da transformação histórica estava sempre certo em suas opiniões cotidianas, e, assim, nunca abriu mão do dever de criticar todos os limites dos movimentos da classe trabalhadora de seu tempo. Os levantes do proletariado de Paris em Junho de 1848 e na Comuna de Paris, movimentos cuja simpatia e apoio Marx nunca escondeu, foram objeto de comentários críticos. E como revelam os mais avançados estudos sobre o desenvolvimento de sua reflexão, Marx amadureceu questões fundamentais de sua crítica da economia política em concorridas sessões na Associação Internacional dos Trabalhadores no fim da década de 1860, onde pode dialogar com outros camaradas.

Mas seria enganoso e mistificador negar o valor que tiveram as horas de estudo metódico na Biblioteca Britânica ao longo da década de 1850 e ainda na seguinte. Não foi da experiência empírica que Marx elaborou sua crítica, pois ao contrário do senso comum bastante impregnado na esquerda, os trabalhadores não podem elaborar de forma radical o entendimento da exploração capitalista com base em seu próprio sofrimento.

As diversas organizações socialistas inspiradas nas ideias de Marx sempre dedicaram esforços ao estudo e difusão de sua obra, através de cursos, leituras coletivas, da imprensa operária etc. Mas nos últimos tempos isso mudou, com o predomínio na esquerda do baixo nível de reflexão teórica, do praticismo e possibilismo parlamentar. Infelizmente o domínio de um repertório de chavões tende a desresponsabilizar uma parte da esquerda da tarefa de estudar, mesmo aquela que pretende alguma fidelidade às ideias de Marx.

Daí que hoje praticamente não exista estudo e pesquisa da obra de Marx fora do âmbito universitário, e infelizmente a imensa maioria das organizações socialistas tem vacilado nesse tópico fundamental. O que é uma péssima notícia.

1 O Globo, 16 de dezembro de 1999.

Marcado como:
Marx 200