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200 anos de Marx: Reflexões sobre a luta antirracista

Matheus Gomes

Deputado estadual pelo PSOL no Rio Grande do Sul, Matheus Gomes é historiador, servidor do IBGE e ativista do movimento social há mais de 10 anos. Sua coluna mostra a visão de um jovem negro e marxista sobre temas da política nacional e internacional, especialmente dos povos da diáspora africana.

Por Matheus Gomes, Colunista do Esquerda Online

Hoje é o dia dos 200 anos do nascimento de Karl Marx. É uma data que merece uma reflexão apurada de nós, negras e negros. Então senta que lá vem textão!

Em nosso movimento negro banalizou-se uma noção de Marx como um teórico racista e eurocêntrico. Não concordo com isso, mas, ao mesmo tempo, outra definição banalizada no último período – a de esquerda branca – me parece útil para construir algumas reflexões. Vou explicar por que.

A localização desse debate na História é importante. Marx nunca foi unanimidade nos movimentos negros. Pluralizando ao pé da letra o nosso movimento, verificaremos que um leque infinito de vertentes teóricas cruzou nosso caminho nos séculos XIX e XX. O marxismo foi a mais influente? Talvez seja possível afirmar que sim. Pelo peso na luta de libertação colonial no continente africano, a influência nos movimentos dos EUA, a importância na reorganização do movimento negro brasileiro em fins da década de 70, os desdobramentos da revolução no Caribe e outras questões que certamente ignorei. Sempre que a ação revolucionária negra se pôs em marcha, houve relação com o marxismo. Logo, uma primeira questão para refletirmos é que há relação entre a decadência das experiências de transição, as revoluções democráticas estacionadas pelo capital – principalmente em África – e a ascendência do discurso do Marx racista, no bojo das teorias que buscavam novos paradigmas para resolver os problemas da humanidade, especialmente a partir das décadas de 80/90. O que deu errado no século XX? Essa pergunta precisa ser respondida sob uma ótica antirracista.

Mas eu li e reli “Marxismo e a questão racial” de Carlos Moore e não fui convencido que Marx é racista por natureza. As revoluções do século XX, como a experiência castrista, representam a aplicação total, logo, o fracasso do marxismo? Creio que não, em geral, essas experiências ficaram longe disso, há muita crítica sobre isso, muitos embates registrados. As bases científicas que Marx desenvolveu eram impregnadas de racismo? Se formos sérios, afirmar isso nos obriga a refutar uma série de teóricos negros. Franz Fannon desenvolve Peles Negras e Máscaras Brancas ampliando o conceito de alienação de Marx. Na minha opinião, sua grande contribuição é nos fazer entender que a consciência racial não poderia ser entendida como o simples estágio da consciência classe, antes da nova síntese a primeira ainda teria que se perder numa longa noite. A alienação do homem pelo homem incluía uma especificidade não analisada por Marx, que só poderia ser desenvolvida por um intelectual como Fanon, oriundo da Martinica, que descobre o racismo cruel ao pisar na França pela primeira vez. A discussão teórica aqui servia para as lutas políticas travadas a época, entre guerras e revoluções, era parte de um embate interno-externo, como revela a polêmica frontal, porém amistosa, com Jean-Paul Sartre. Exatamente por isso o livro termina com a célebre frase do 18 Brumário de Luís Bonaparte, defendendo que nas revoluções do século XX o conteúdo deveria ultrapassar a expressão, ou seja, Fanon utilizava conceitos de Marx para erguer uma nova perspectiva, superando as próprias noções da esquerda marxista da época. Alienação também foi importante para Neusa de Souza em “Torna-se negro”, onde o vir a ser negro é localizado como um processo, que envolve experiência, sofrimento, ação, coletividade e embate com a ideologia dominante.

Angela Davis, Clóvis Moura, C.L.R. James nos oferecem três exemplos de interpretação da transição do regime escravocrata para o capitalismo em base aos conceitos de Marx, um em cada canto da América. E nesse tema eu tenho tido cada vez mais simpatia pela defesa de Fanon em distender o racismo sob a estrutura e a superestrutura das sociedades de origem colonial, pois isso limpa falsa polêmica “classe X opressão”, reconhece as insuficiências da primeira e a centralidade da segunda na organização da exploração em países como o nosso, o que eu vejo também nas obras de Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, por exemplo.

Em suma, Marx fez ciência e uma ciência aberta, anti-dogmática. Seus conceitos oferecem bases para elaboração de um sem números de questões. Refutar sua obra por completo não é só combater a esquerda branca, mas também uma parte significativa da experiência de negras e negros nos últimos dois séculos. Óbvio que isso pode ser criticado, sou contra a censura da crítica, mas então, façamos isso criticando as nossas próprias experiências, pode ser que seja útil!

Mas e a esquerda branca? Hamilton Cardoso, um dos fundadores do MNU e do Núcleo Negro da antiga Convergência Socialista, me fez entender que ser negro e marxista é viver uma eterna dubiedade. Isso por um fato simples, porém difícil de ser assimilado pela maioria dos marxistas, que são brancos: o privilégio branco é uma realidade no interior da classe trabalhadora, se nenhuma classe abre mão de seus privilégios por livre e espontânea vontade, como dizia Marx, isso também não ocorrerá de maneira simples quando o assunto for racismo e classe trabalhadora. O peso das ideias é implacável. A lógica da democracia racial penetrou profundamente em nossa sociedade, da década de 30 até hoje, creio que nenhuma ideia foi tão poderosa em nosso país. A esquerda “oficial” nunca desenvolveu uma teoria sobre o Brasil que localizasse o negro como ator central da História e entendesse qual seu papel no movimento histórico da revolução. Os programas das organizações, em geral, se resumem a aulas de História sobre escravidão e alguns dados perdidos que tratam negras e negros como números, sem dinâmica na luta de classes. Um exemplo que acho simbólico é o esforço de Florestan Fernandes como deputado constituinte do PT, enviando cartas e escrevendo propostas que racializassem a carta magna, obviamente elas foram amplamente ignoradas. Por outro lado, também as organizações negras que refutam as ideias marxistas jamais conseguiram penetrar profundamente no interior da classe, fora a Frente Negra Brasileira, um caso que merece ser profundamente estudado, pois, entre outras coisas, relacionava a questão racial com um nacionalismo reacionário.

A conciliação de classes das últimas duas décadas foi cruel, ainda precisaremos debater muito isso, pois creio que reforçou a lógica do progresso nos limites da ordem, um novo integracionismo que contribuiu para a desorganização do protesto negro, refutando a afirmação profética de Carolina Maria de Jesus, de que o “Brasil só mudaria quando fosse governado por alguém que também passou fome”. É óbvio que existem contradições, mas olhem o tamanho da crueldade que estamos inseridos: mais jovens nas universidades X ampliação do genocídio e encarceramento dos nossos. Que fazer? A esquerda tem em seu “currículo”, ao mesmo tempo, infindáveis manchas de sangue e milhares de diplomas, a que ponto chegamos?!

Novamente, reconhecer onde está o racismo nesse processo é duro, mas, ou tocamos na ferida ou herdaremos para as próximas décadas novos recalques e complexos, novas questões não resolvidas que se acumularão sobre nós.

No Brasil, como dizia o filósofo Daniel Bensaid, precisamos pensar mais em Marx sem “ismos”, ou seja, libertar sua ciência das jaulas que foram criadas por uma esquerda que fracassou por diversas vezes em compreender o lugar do negro no passado, presente e no futuro. Isso exige conectar o marxismo com os debates feitos pela nova geração de intelectuais, especialmente as mulheres negras; vincular nossa ação política aos movimentos da massa negra, romper a divisão entre negritude intelectualizada e massa negra pauperizada; ser intransigente com o racismo no interior da esquerda, quem não ajuda atrapalha, chega de paciência; organizar-nos de forma específica para lutarmos por uma verdadeira democracia social e econômica, que só pode ser plurirracial, ou seja, exigirá o combate implacável de todas as formas de racismo. A caminhada é longa, mas boas reflexões são a melhor forma de honrar o legado de Marx.

Confira outros textos do Especial Marx 200:

1) Marx, o incendiário. Por Valério Arcary

2) A atualidade de Marx em seu aniversário de 200 anos: A classe trabalhadora. Por Marcelo Badaró

3) Educação e formação humana em Marx e Engels. Por Artemis Martins

4) Como me tornei um marxista. Por Carlos Zacarias

5) A exceção contida na regra: Marx e a dialética da democracia liberal. Por Felipe Demier

6) Karl Marx: seu nome viverá através de séculos. Por Henrique Canary 

7) Parabéns, Karl. Por Ivan Dias Martins

8) Estudar Marx fora e dentro das universidades. Por Demian Melo

9) Marx: 200 anos de crítica ao capitalismo. Por Guilherme Leite

10) O encontro de Marx com a economia política. Por Macello Musto

11) Karl Marx e o capital: O detetive que queria desvendar a suprema intriga. Por Francisco Louçã

12) Marx e o caso Vogt: Apontamentos para uma biografia intelectual (1860-1861). Por Marcello Musto