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Marx, o incendiário

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online

Para compreender uma época histórica limitada é necessário ir além de seus limites e compará-la com outras épocas históricas. Para julgar Governos e seus atos, devemos medi-los por seus próprios tempos e pela consciência de seus contemporâneos. Ninguém condenará um estadista britânico do século XVII por agir com base na crença em bruxaria, quando o próprio Bacon relacionava a demonologia no catálogo das ciências.[1]

                                                                                                                        Karl Marx

Mas a máxima contribuição para a vitória final será feita pelos próprios operários alemães, tomando consciência dos seus interesses de classe, ocupando o quanto antes uma posição independente de partido e impedindo que as frases hi­pócritas dos democratas pequeno-burgueses os afastem por um instante sequer da tarefa de organizar com toda independência o partido do proletariado. Seu grito de guerra há de ser: a revolução permanente. [2]

                                                                                                                           Karl Marx

Muitos testemunhos confirmam que Marx foi um homem curioso, aberto para a vida e suas alegrias simples, obstinado e intenso. Lia jornais, revistas, e livros; escreveu poesia; flanava pelas ruas; acompanhava a ciência e a arte do seu tempo; apreciava comer e beber; adorava brincar com crianças; amava Jenny, apaixonadamente; gostava de conviver com os amigos e, pelos jantares que organizava em sua casa, em Londres, passaram os mais destacados militantes da causa igualitarista, das mais diferentes nacionalidades, como Bakunin, por exemplo; e fumava, furiosamente.

Mas Marx conheceu a tragédia da condição humana desde jovem. Teve oito irmãos: o mais velho já tinha falecido quando ele nasceu, e quatro outros irmãos e irmãs pereceram, prematuramente, de tuberculose. Dos seis filhos de Karl e de Jenny, apenas três filhas sobreviveram – Jenny, Laura, Eleanor –, mas as duas últimas acabarão por se suicidar, e Jenny morreu jovem pouco depois do próprio pai.

A citação nesta epígrafe esclarece que o próprio Marx sabia que a régua para avaliar a estatura dos indivíduos deve ter medidas históricas. Nada seria, portanto, mais antimarxista que alimentar um culto à personalidade do próprio Marx. Ser, honestamente, marxista nos obriga a verificar com serenidade e seriedade quais são as hipóteses marxistas que passaram a prova da história. E quais não passaram. Ninguém é infalível. Nenhuma obra está acima da crítica histórica. Celebramos este aniversário de duzentos anos, porque ainda hoje nos elevamos sobre os ombros de Marx, e nos inspiramos em sua obra, para podermos ver mais além.

Acima de tudo, Marx foi, ao longo dos últimos duzentos anos, o principal inspirador do maior sonho e aventura da história humana: a luta pelo socialismo. Marx incendiou a imaginação de gerações com uma aposta no projeto anticapitalista de uma transição consciente para uma sociedade em que seremos, socialmente, iguais, humanamente, diferentes e, totalmente, livres. Esse Marx, o incendiário, é imortal.

Essa aposta se fundamentava na esperança no papel dos trabalhadores nessa luta: a presença do sujeito social como um elemento objetivo do processo da luta de classes. O movimento operário era anterior à existência do marxismo como corrente política organizada. O fator histórico necessário para derrotar o capitalismo era a potencialidade da disposição revolucionária do proletariado: uma classe despojada de propriedade e, mesmo que hetereogénea, muito mais homogênea que todas as outras classes da sociedade.

Agrupada em grandes massas, com força social de choque muito superior às multidões camponesas dispersas; dotada de maior autoconfiança em si mesma do que outras frações populares; apta para atrair o apoio da maioria dos oprimidos; inclinada à ação política coletiva; concentrada em imensos centros urbanos; com nível cultural mais alto; impulso político de classe mais definido; maior capacidade de auto-organização e solidariedade; e mais elevado “instinto de poder”.

Marx identificou no proletariado a classe que, pelo seu lugar no processo de produção, teria a força social para, na defesa estreita dos seus interesses “egoístas” de classe, atrair para a luta contra o capital a maioria das outras classes populares, e defender um programa de socialização da propriedade e de planejamento da produção.

Atribuiu assim legitimidade histórica à revolução socialista. Reconheceu a universalidade do combate de uma classe que lutando pelos seus interesses “egoístas” até ao fim, poderia, se fosse capaz de conquistar o poder, apoiada na abundância relativa que o capitalismo já tinha gerado, e garantindo crescente igualdade e liberdade, conduzir à emancipação humana. Ao lutar por si mesma, a classe trabalhadora abriria um caminho para a erradicação de todas as classes, e a reunificação da humanidade consigo própria. Tão importante quanto, defendendo a revolução, também, como a abertura de uma nova etapa histórica em que a humanidade, não obstante os inúmeros outros conflitos que estão além das desigualdades classistas, começaria a dominar, mais conscientemente, os fundamentos das exasperadas lutas contra as opressões que a dilaceram, erradicando todas as perseguições e discriminações nacionais, religiosas, raciais, sexuais, e outras.  Nunca existiu um sonho mais lindo do que esse.

Mas para que essa classe brutalizada pela exploração, e que alienada sofre um despojamento de sua própria humanidade, possa se elevar à condição de sujeito social, é necessário enfrentar a questão do “como”: a construção da consciência de classe. O problema histórico dramático que resulta da análise clássica sobre o lugar social do proletariado é saber como uma classe que é explorada, economicamente, oprimida, socialmente, e politicamente, dominada, pode ser protagonista de um projeto de revolução social, no qual se candidata à conquista do poder político, e à reorganização geral de toda a sociedade.

A resposta de Marx era uma aposta na luta política. Acreditava que o proletariado, mesmo com todas as limitações objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se veria diante do caminho da revolução. Poderia precisar de um longo período de aprendizagem sindical parlamentar para esgotar todas as outras vias. Para vencer as ilusões, por exemplo, nas possibilidades de reformar o capitalismo. Poderia, também, abreviar a experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas e, mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua.

Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente teriam que repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classes trabalhadora aprendam com a experiência dos sectores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.

Há momentos na História em que as massas, exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. Quando e em que circunstâncias é imprevisível. Mas quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, toda a sociedade mergulha em um turbilhão e vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. E se esse sentimento for compartilhado por milhões, então, essa força social se transforma em força material, em uma força material terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias.

As lutas decisivas, a revolução, poderiam tardar, mas seriam certas, previu Marx; a conquista do poder, a vitória, seriam possíveis, porém, incertas. Este dilema é a chave das maiores críticas a Marx. Cento e cinquenta anos teriam sido um intervalo histórico mais que o bastante para o demonstrar. O argumento é forte, mas não é novo. Os medos, as vacilações e as inseguranças do proletariado diante dos confrontos decisivos permanecem sendo o argumento final que sustenta o desalento, a desesperança e o cepticismo nas perspectivas de triunfo de uma estratégia revolucionária: a classe operária teria faltado ao encontro com a História.

Essas posições não surpreendem em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito sérias. O impressionismo é, no entanto, perigoso em política e fatal em teoria.

Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica se apóiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes, que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas. A transição socialista, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia, previsivelmente, ser um processo extremamente difícil.

São necessários grandes intervalos, para que a classe trabalhadora possa se recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização de massas.

O que se quer dizer, quando se diz que Marx fez uma aposta na política? Isso significava que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar de suas hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes cíclicas, na direção da luta de classes. A história está repleta de episódios de rendição política de movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta.

As classes podem agir, por um período maior ou menor contra os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa dos seus interesses: as classes não fazem “seppuku”. As batalhas, os combates, cada luta são nessa escala e nessa proporção, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas.

As relações de forças se alteram, e podem ser mais desfavoráveis ou menos. As derrotas e as vitórias podem ser políticas ou históricas, com seqüelas mais duradouras ou mais superficiais. Entretanto, não existe a possibilidade histórica do suicídio político para uma classe social. Enquanto existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e lutará.

Marx tinha como premissa uma apreciação das possibilidades políticas do projeto como uma aposta no futuro. Por essa razão se tem argumentado que o projeto socialista teve, desde o início, uma natureza utópica, e parece razoável reconhecê-la, mesmo que a crítica soe irritativa. Não se confundia, no entanto, com predestinações ou imanências. A incerteza e o risco sempre foram inseparáveis do erro, assim como o elogio da vontade, um novo lugar para a subjetividade revolucionária, era indivisível do perigo da derrota. Quando há incerteza, um grão de utopia e outro de aventura são inescapáveis.

Afinal a presença da contrarrevolução define também os limites da aventura. Aventura? Sim, porque essas margens amplas de indeterminação encerram surpresas e riscos. Mas Marx pensava a revolução social anticapitalista como a primeira transição consciente e, nessa medida, atribuidora de sentido ao processo histórico, como a antessala de uma nova época de liberdade e igualdade. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro.

Marx foi um revolucionário. Foi por isso que ganhou tantos inimigos. Podemos conhecer o lugar na história de cada um pelos amigos que deixou, mas também, pelos seus inimigos. Seus inimigos nunca o diminuíram. Ao contrário, o engrandeceram.

Mais importante é que em cada luta contra a injustiça, Marx permanece presente. Ele está lá, nas ocupações dos que não têm casa para morar; nas greves de trabalhadores que reivindicam aumentos de salários; nas mobilizações dos professores pela defesa do ensino público; na resistência contra as catástrofes ambientais como em Mariana; nas ocupações de escolas dos secundaristas; na luta contra os fascistas quando voltamos às ruas por Marielle; na defesa das liberdades democrátias por Lula Livre. Ele está lá,  no coração daqueles em que pulsa uma esperança. Ele nunca nos deixou sozinhos.


[1] Marx, Karl. MECW, 15, p. 56.