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TEORIA

Literatura e Revolução

Diego Braga

Eram os anos de 1922 e 1923 na Rússia. Travavam-se as primeiras lutas contra a burocratização stalinista do partido bolchevique e da própria URSS, em meio à ainda escassa produção agrícola e industrial e à periclitante situação da ditadura do proletariado. Durante suas férias militantes neste momento decisivo, o incansável Leon Trotsky recusou o cargo de vice-presidente do Conselho de Comissários do Povo oferecido por Lênin e se retirou para o interior da Rússia… para escrever sobre literatura!

Trotsky escreveu os ensaios que compõem a coletânea publicada com o nome de Literatura e Revolução como uma série de artigos para o Pravda (jornal bolchevique da época)Não pretendia produzir um livro, apenas um prefácio para um dos volumes de seus escritos a ser publicado pela editora do Estado. Ocorre que a reflexão sobre literatura se foi revelando como um dos terrenos fundamentais no combate que se iniciava. Os ensaios se expandiram e se transformaram em um livro à parte.

Se o fato de o ter escrito nas férias mostra que a cultura e a literatura, como o próprio Trotsky deixa claro no livro1têm importância em certa medida complementar, postergável e dependente, refletindo a construção das bases materiais e políticas do socialismo mais que constituindo tais bases, também é preciso atentar para o detalhe de que tais textos sobre literatura e cultura foram redigidos num dos períodos mais críticos, o da ascensão do stalinismo, o que evidencia o quão decisiva era a questão da cultura na compreensão de Trotsky acerca das tarefas revolucionárias do recém-fundado Estado Operário. A cultura esteve sempre como um dos cavalos de batalha na linha de frente da luta contra a burocracia. Aprofundar e ampliar o acesso, a consciência, a compreensão e a sensibilidade em relação à cultura tanto nas massas como no partido era decisivo para evitar a degenerescência. Afinal, a elevação do nível cultural era a precondição da participação das massas na política, um dos ingredientes da argamassa que daria solidez ao edifício revolucionário contra a intempérie que acabou rachando por dentro sua estrutura antes que o concreto secasse.

O problema, para os bolcheviques, era que a luta pelo avanço e pela universalização culturais não dependia apenas de uma decisão votada em congresso, de uma posição teórica ou política, muito menos de uma canetada de comissário. Também a caneta que assina um poema, um artigo científico ou um tratado de filosofia não pode criar as bases econômicas, sociais e políticas que permitem o surgimento de poemas, artigos ou tratados, apenas ratificar sua existência e identificar sua autoria. Por importantes que fossem as atitudes dos bolcheviques em favor do avanço da cultura, tal avanço estava atrelado ao desenvolvimento material da sociedade como um todo, tal como uma biblioteca móvel na caçamba de um caminhão não chega aos lugares mais remotos de um país atrasado se não houver, primeiramente, um motor possante, combustível abundante, estradas e um piloto competente para o caminhão. E o decisivo: é necessário que todos trabalhem menos – maior produtividade do trabalho – para que haja mais tempo livre para ler. A revolução na cultura não depende apenas, portanto, de posições estéticas ou filosóficas, nem somente de resoluções políticas. Esta talvez seja a tese cultural principal de Trotsky em Literatura e Revolução.

A burocracia tinha uma concepção distinta. Para a camarilha que começava orbitar em torno a Stalin, tal como seria possível construir o socialismo num só país atrasado e devastado, era também viável – e desejável – a existência de cultura “proletária”, mesmo com uma classe trabalhadora inculta e materialmente carente. A cultura, como a política, sob a burocracia, tornava-se não apenas determinada do alto para baixo como também um campo administrativo gerenciado com os métodos de escritório, mas cujas decisões se impõem com os da repressão. Baixada qual decreto pela burocracia, de proletária, a cultura sob o stalinismo tinha apenas o nome. O processo de controle burocrático da cultura, que culmina com a implementação do Realismo Socialista, é parte da stalinização da URSS e do partido. Portanto, ao escrever sobre literatura defendendo posições contrárias à produção artificial de “cultura proletária” e ao controle da cultura pelo Estado sob critérios administrativos (e não revolucionários), Trotsky estava travando parte importante do combate contra a burocracia.

Entre 1917 e 1928 havia pouco controle da cultura pelo partido. A censura bolchevique a periódicos contrarrevolucionários era rigorosíssima, mas para os livros, que tinham apelo de massa menor, era mais branda. A postura de Trotsky a respeito da questão no âmbito da arte fica clara em Literatura e Revolução: “(…) [o partido] não repudia a priori qualquer grupo literário, mesmo composto unicamente de intelectuais, por menos que este se esforce em aproximar-se da Revolução e reforçar um dos seus laços (um laço é sempre um ponto fraco) com a cidade ou com a aldeia, entre os membros do Partido e os sem partido ou entre a intelligentsia e o proletariado”2. Respeitando este critério, porém, “O Partido orienta-se por critérios políticos e repele, na arte, as tendências nitidamente venenosas ou desagregadoras. É verdade, contudo, que a frente da arte está menos protegida que a da política. Não ocorre o mesmo com a da ciência?”3. Enfim, “(…) O Partido, evidentemente, não se pode entregar ao princípio liberal do laissez-faire, laissez-passer, mesmo na arte, nem por um só dia. A questão é saber quando deve intervir, em que medida e em que caso”4.

Depois da Guerra Civil, editoras e organizações culturais relativamente independentes floresceram. Inúmeros movimentos artísticos não-socialistas refletiam o espírito da NEP, muitos inclusive com viés crítico. Apesar de pobre e, em suas realizações mais artisticamente acabadas, produzida por círculos não-operários, a cultura durante a revolução viveu uma explosão de criatividade a despeito dos poucos recursos. Dados a necessidade de diálogo com as massas iletradas e seu caráter de encenação e de mobilidade, o teatro foi o que mais floresceu imediatamente após a revolução. A literatura, centro das atenções do livro de Trotsky, demorou um pouco mais a brotar, mas seria marcada também pela pluralidade e a independência em relação ao partido, como no caso dos movimentos futurista, formalista, imagista, etc.

Houve também uma cultura diretamente atrelada às tarefas da revolução. Durante a Guerra Civil, carros com trupes teatrais seguiam na retaguarda do exército vermelho. O teatro soviético dos primeiros anos da Revolução Russa encontrou duas vertentes: a primeira, uma teatralização da vida em que acontecimentos eram convertidos em encenações, não como dramaturgia. Eram comemorações da vitória do proletariado por otimismo no futuro comunista, com comícios gigantescos, canções em coro e tiros de canhão. Grupos treinados de Agitprop que incluíam profissionais de teatro organizavam os eventos culturais do Partido nas capitais e no interior. O auge destas manifestações dos primeiros anos da Revolução foi a encenação da Tomada do Palácio de Inverno, dirigida por Nikolai Evreinov em Petrogrado, a novembro de 1920, quando a vitória na Guerra Civil já era iminente. 15 mil participantes incluindo soldados e atores apresentaram, para uma plateia estimada de 100 mil pessoas, fanfarras, luzes, tiros e uma grande estrela vermelha. Nesta celebração de Outubro à tomada do palácio, entre fogos de artifício e o coro da Internacional, seguiu-se uma encenação da Guerra Civil, com uma plataforma branca e outra vermelha como palcos da vitória esmagadora do proletariado, cena ovacionada pelas massas.

A outra vertente que floresceu no teatro soviético foi a da teatralização do teatro, ou seja, encenações que se empenhavam por construir a cena não como ilusão de realidade ou expressão de fantasias, mas como declarações do caráter “construído” do teatro e do mundo, construção que poderia e deveria contar com a participação do público. Meyerhold e Vakhtângov foram os precursores do teatro como obra aberta – as massas deveriam atuar e criar. Como se vê, alguns dos trilhos principais em que correriam os trens do teatro de vanguarda no século XX foram colocados pioneiramente, apesar dos parcos recursos, no contexto vitória do proletariado russo. Ainda em 1925, após a morte de Lenin, é feita uma declaração de neutralidade do partido frente a movimentos artísticos concorrentes. Lunatchárski, Comissário do Povo para Instrução que logo iria capitular à burocracia, ainda defende liberdade à arte que não é abertamente oposta à revolução.

Em 1928 vem o decreto do Comitê Central: a literatura da URSS deve servir ao partido. Enviam-se escritores a canteiros de obras para produzir literatura enaltecendo o mundo do trabalho. Em 1932 o stalinismo impõe tendências nacionalistas frente ao ‘proletarismo’ da Rapp (Associação de Escritores Proletários), substituída pelo Sindicato dos Escritores Soviéticos, controlado por Stalin, ao qual se deveria estar filiado para poder publicar. Por fim, em 1934, o Congresso dos Escritores Soviéticos sanciona a adoção oficial do Realismo Socialista (de Stalin, Gorki – que antes defendia liberdade artística – e Zhdanov): o artista deveria então retratar a realidade concreta, enaltecendo o progresso revolucionário para educar os trabalhadores na ideologia oficial da burocracia, sempre em tom otimista e teor heroico. Não poderia haver muitos conflitos nos romances e dramas, porque a sociedade soviética seria livre de lutas que justificassem relações conflituosas. O objetivo era criar uma ideologia de passividade no proletariado, para que ele não ousasse reclamar o poder usurpado pela burocracia de volta para os soviets. É contra as primeiras manifestações do que viria a ser esta contrarrevolução cultural que, ainda em 1922 e 1923, Trotsky escreve Literatura e Revolução.

O primeiro dos pontos de vista centrais combatidos no livro diz respeito à tentativa de criar uma cultura artificial supostamente proletária. Nesta questão, coincidia totalmente com Lenin, que era inclusive partidário de medidas mais radicais de repressão contra o Proletkult. Para Trotsky, estas propostas de criação de cultura em cartório surgiam tanto da incompreensão da visão do materialismo dialético sobre a cultura quanto da demagogia que procura celebrar a penúria cultural do proletariado imediatamente após a revolução com denominações vazias que servem, inclusive, como desculpa para retardar o necessário processo de sua aculturação. Como o avanço cultural do proletariado era uma das artilharias que poderia evitar ou repelir o avanço da burocratização, é natural que a demagogia da “cultura proletária” fosse adotada pela burocracia, que também não era muito afeita ao materialismo dialético, senão ao vulgar.

Contrariamente às que o precederam, o proletariado é a única classe que pretende que sua ditadura seja um “breve período de transição”. É duvidoso que o proletariado possa criar uma cultura própria neste intervalo de tempo, não apenas por ser ele curto, mas também por ser ocupado sobretudo com a defesa da sua ditadura contra a burguesia, com o desenvolvimento econômico e com a luta pela revolução mundial. Será o período em que o proletariado manifesta o auge de seu caráter de classe. Por outro lado, quanto menos se preocupar com a defesa de seu regime e com o desenvolvimento das bases econômicas do socialismo, mais fraco se mostrará o caráter de classe do proletariado. Assim, Trotsky diz que “(…) quanto mais favoráveis se tornarem as condições para a criação cultural, tanto mais o proletariado irá se dissolver na comunidade socialista, se libertar de suas características de classe, isto é, deixar de ser proletariado”, e conclui que “(…) não haverá cultura proletária. E, para dizer a verdade, não existe motivo para lamentar isso. O proletariado tomou o poder precisamente para acabar com a cultura de classe e abrir caminho a uma cultura da humanidade”5. “Não se pode criar uma cultura de classe à revelia da classe”6, de modo que “A tarefa principal da intelligentsia proletária para o futuro imediato não está (…) na abstração de uma nova cultura – cuja base ainda falta -, e sim no trabalho cultural mais concreto: ajudar de forma sistemática, planificada e crítica as massas atrasadas a assimilar os elementos indispensáveis da cultura já existente”7.

A segunda tese cultural defendida por Trotsky versa sobre a relação do partido com a produção cultural. A postura de Trotsky, muitas vezes classificada injustamente de anarquista ou de liberal (o que costuma dar quase sempre na mesma), é contrária ao controle burocrático da cultura pelo partido e pelo Estado, como já mencionamos acima. No entanto, as elaborações de Trotsky vão além. Numa postura genial acerca da polêmica entre arte engajada ou arte livre, Trotsky mostra que a contradição entre liberdade engajamento político deve ser superada dialeticamente. Primeiramente, reconhece, em última instância, contra a estética burguesa, a teleologia da arte: “A arte, mesmo a mais pura, é totalmente teleológica: se rompe com os grandes fins, quer o artista tome consciência disso ou não, degenera numa simples confusão. A teleologia encarna-se na política. E a Revolução é a política condensada que lança na ação massas de vários milhões de homens”8. Em seguida, contra as ideias de que a arte deva ser apenas engajada, um martelo para moldar a realidade, ao contrário de um espelho para refleti-la, Trotsky declara: “Ensina-se o manejo do martelo com o auxílio do espelho (…). Se não se pode dispensar o espelho, mesmo para barbear-se, como construir ou reconstruir a vida sem o espelho da literatura? Ninguém certamente pede à nova literatura que tenha a impassibilidade de um espelho. Quanto mais profunda a literatura, quanto mais imbuída do desejo de modelar a vida, tanto mais dinâmica e significativamente poderá pintar a vida”9. O mesmo se deveria dizer do repúdio futurista à penetração psicológica e à questão da vida quotidiana. Trotsky questiona: se a arte se nega a fazer o homem se conhecer, penetrar em seu mundo interior, como pode querer transformar o mundo? A revolta da literatura contra o realismo burguês é muito justa porque este limita a existência ao quotidiano burguês, mas o realismo que liga a arte à vida para além dos círculos burgueses não deve ser repudiado por isso, a menos que, como se subentende no futurismo, se tenha uma concepção em última análise burguesa de realidade, apesar da sincera simpatia de Maiakovksi pela revolução.

Literatura e Revolução, enfim, abre um dos fronts fundamentais de combate à burocratização, colocando a luta pelo avanço cultural do proletariado e pela liberdade de criação, livre de demagogias e antecipações cartoriais, e em seu devido patamar, tantas vezes secundarizado por organizações revolucionárias e, outras, supervalorizado por um suposto marxismo culturalista pós-modernizante. A ideia central que salta das páginas desta reflexão de Trotsky é que a arte mais livre e criativa não é aquela que traz mais invencionices formais – por mais que Trotsky reconheça a importância da pesquisa formal e da técnica artística -, nem a mais individualista – ainda que aponte a individualização do estilo enquanto expressão social como caráter do amadurecimento artístico. Genuinamente livre e criativa é a arte mais comprometida com a criação da liberdade universal. Que a arte da classe trabalhadora, hoje em grande parte privada da participação ativa no que há de melhor na cultura, será, de fato, não uma arte de classe, mas uma arte sem classes: arte socialista, seria mais correto dizer, em vez de proletária.

Cabe ressaltar ainda a extrema beleza, comum nos textos de Trotsky, aliada a um humor devastador – cujo sentido é principalmente crítico – que, em seus melhores momentos, provoca gargalhadas nos leitores. Sua extrema familiaridade com a cultura Russa especificamente e com a cultura universal como um todo é impressionante, quando não realmente assustadora. Sua penetração crítica, profundamente realista e dialética, não entra em contradição com passagens de brilhante de imaginação utópica – no bom sentido – que inspiram e emocionam:

“A sociedade futura irá se destacar da áspera e embrutecedora preocupação do pão de cada dia. Os restaurantes coletivos prepararão, à escolha de cada um, comida boa, sadia e apetitosa. As lavanderias públicas lavarão bem as roupas. Todas as crianças serão fortes, alegres, bem alimentadas e absorverão os elementos fundamentais da ciência e da arte, como a albumina, o ar e o calor do sol”10, Assim, “(…) as paixões liberadas irão se voltar para a técnica, para a construção, inclusive da arte, que naturalmente se tornará mais geral, madura, forte, a forma ideal de edificação da vida em todos os terrenos. A arte não será simplesmente aquele belo acessório sem relação com qualquer coisa”11, e o próprio corpo humano “(…) será mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E sobre ela se levantarão novos cumes”12.

Referências Bibliográficas

TROTSKY, Leon. Literatura e Revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.


1“A Revolução salvou a sociedade e a cultura, mas por meio da cirurgia mais cruel. Todas as forças ativas concentram-se na política, na luta revolucionária. O resto passa para segundo plano, e a Revolução esmaga sem piedade tudo o que a ela se opõe” [p. 153]. “Toda a nossa atividade econômica e cultural hoje não passa de uma reordenação de nossos pertences entre duas batalhas, duas campanhas” [p. 154].

2p. 74.

3p. 74.

4p. 75.

5p. 150.

6p. 156.

7p. 155.

8p. 95.

9p. 114.

10p. 152.

11p. 180-1.

12p. 196.