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TEORIA

1917: o mundo muda de face num país improvável (2)

Bernardo Boris Vargaftig, de São Paulo (SP)

Já mencionamos que Lenin chegou a Petrograd em 3 de Abril de 1917, após atravessar a Alemanha e a Suécia num trem abusivamente denominado “blindado”, negociado com o Estado Maior alemão. Não o era, não se tratava naquele momento de uma ação militar, mas da mudança dos rumos da já República russa que, numa conferência histórica na cidade polonesa de Brest-Litovsk, negociaria com o Império Alemão a tão temida, pelo imperialismo ocidental, “paz separada”. Portanto, Lenin, e Trotski, chefe da delegação soviética, conseguiram (graças a enormes concessões feitas aos alemães) a tão almejada paz separada.

Lenin foi acolhido com grande entusiasmo pelos trabalhadores e soldados que compareceram à sua chegada e diante deles e dos dirigentes políticos presentes defendeu seu ‘Programa de Abril’. Este se opunha à tendência reinante no partido bolchevique, localmente dirigido naquele momento por Stalin e Kamenev, que pregava a reaproximação com a ala esquerda dos mencheviques e o “apoio crítico” ao governo burguês de Kerenski e portanto ao prosseguimento “leal” da aliança guerreira. Lembro que após a vitória da revolução de Fevereiro 1917, instalou-se a república, presidida pelo advogado Kerenski. A “democracia burguesa” era representada por um parlamento rale, a Duma, que os reformistas de todo tipo desejavam fortalecer para assegurar sua autoridade frente aos Soviets, comitês populares eleitos representando o proletariado e seus aliados. Na primeira de suas dez “Teses de Abril”, Lenin se coloca contra o chamado “defensismo revolucionário”, que de “revolucionário” tinha apenas o nome, argumentando que o procedimento da guerra somente se justificaria se a tomada do poder tivesse ocorrido e após uma declaração formal de renúncia a qualquer anexação territorial, assim como completa dissociação dos interesses do capital. como haviam aliás feito os revolucionários franceses após 1792. Discute também a posição pedagógica a ser tomada frente “à inegável boa fé de amplas massas dos ainda defensores do defensismo revolucionário”, que admitem a guerra por necessidade mas sem conquistas, sendo nisso enganadas pela burguesia.

Em 1 de Março, durante a reunião do Comitê Executivo do Soviet, a ala dita esquerda dos mencheviques afirmava que a tarefa do Soviet consiste em “forçar” a burguesia liberal a tomar o poder. Pelo modelo bolchevique, isto era o agente necessário de uma revolução necessária e necessariamente burguesa. Nove condições foram formuladas para que o Soviet apoiasse um governo provisório (lembremo-nos que era menos de um mês após a queda da monarquia).

Um exame mais detalhado das “Cartas sobre a tática”, escritas em meados e final de Abril, permite identificar um resto de etapismo, quando Lenin afirma que a primeira etapa da revolução russa concedeu o poder à burguesia, substituindo uma classe derrotada, a nobreza feudal. Esta passagem do poder de uma a outra classe, define uma revolução. A etapa seguinte, virtualmente contínua, seria a revolução socialista. O que já diferenciava sua posição daquele que desdenhosamente ele nomeava “velhos bolcheviques”, era que a completude das tarefas da revolução burguesa, como a distribuição de terras para fortalecer a burguesia rural, não poderia, nas condições do capitalismo em rápido desenvolvimento na Rússia, impedir outra passagem do poder, da burguesia aos trabalhadores. Dizia Lenin em sua Carta sobre a tática (escrita entre 21 e 26 de Abril).: As palavras de ordem e as idéias dos bolcheviques foram, em seu conjunto, inteiramente confirmadas pela história; entretanto, na realidade concreta, as coisas ocorreram diferentemente do que nós e ninguém poderia prever, de forma mais original, mais curiosa, com mais nuances”.

No ponto 2 das Tese afirma Lenin que o que havia de original na situação da Rússia naquele momento era a transição da primeira etapa da revolução que havia empoderado a burguesia devido à fraqueza do movimento operário, para a segunda etapa, que empoderaria o proletariado e o campesinato pobre. Qualquer que fosse sua posição sobre a polêmica entre a revolução por etapas e a revolução permanente, é inegável que Lenin, embora explicitando que a etapa democrático burguesa (dita primeira etapa) precede a etapa socialista, logo daria um conteúdo totalmente diverso do posicionamento menchevique (como o do socialista histórico Pleckanov) e stalinista. Seu raciocínio é curioso e discutível: se o que permitiu que a burguesia ocupasse o poder na dita primeira etapa foi a fraqueza da classe operária, pode-se concluir que a distinção entre a primeira e a segunda etapa desapareceria se a classe trabalhadora fosse mais politizada e organizada, como seria o caso da Europa Ocidental e da Alemanha, país fetiche dos bolcheviques. Assim, a divisão do processo histórico revolucionário em etapas seria um conceito tático, eventual e não obrigatório, ao resultar da situação concreta e não de uma lei histórica, quase hegeliana, que caminharia em direção à realização da história.

Lenin defendia a revolução alemã e mundial, e apelava aos socialistas e trabalhadores alemães para uma aliança com os revolucionários russos. Além disso, pregava um apoio total à revolução camponesa em curso e à criação de uma nova Internacional, pois a segunda se havia traído ao apoiar a guerra imperialista.

Um intervalo para tirar uma lição do que precede. Como digo acima, Lenin estimulava as confraternizações na frente da batalha, para combater a guerra imperialista. Lembremos que tanto a burguesia quanto os mencheviques e Stalin se opunham ao que o último denominava “ações desorganizadas”. Lenin foi chamado de “anarquista” alheio à realidade russa após anos de ausência, de estar “sentado no trono de Bakunin” (teórico do anarquismo). Resistiu às pressões, ao se recusar a aplicar fórmulas dúbias, como o apoio ao que o governo Kerenski teria de bom e repúdio ao que teria de mau. Esta formulação, sob pretexto de “realismo”, levaria o Partido, o Soviet e o movimento popular ao reboquismo. Logo que lhe fosse útil, a burguesia se liberaria desta aliança oportunista, que lhe teria servido em momento de fraqueza para bloquear os avanços socialistas. Com as ressalvas óbvias de período e das condições específicas, esta situação não é inédita. O mesmo ocorreu na guerra europeia anti-monárquica empreendida pelos jacobinos franceses em 1792, com a direção competente de Robespierre e Saint-Just. Ocorreu também na 1a guerra mundial e, no caso russo, graças à paciente construção do Partido bolchevique nos anos precedentes como à existência de Lenin e Trotski. A situação criada pela revolução de Fevereiro, ao introduzir as massas na história, caminhava rapidamente para o aguçamento da revolução permanente, desmentindo os epígonos da revolução por etapas. As Teses de Abril, além de influenciarem radicalmente a política em curso, possuíam um enorme potencial educativo. Mesmo que Lenin não tenha empregado o termo “revolução permanente”, ele acolheu plenamente a adesão de Trotski aos bolcheviques, foi seu principal proponente e teórico.
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A oposição era entre revolucionários auto-proclamados “realistas”, como o eram naquele momento os mencheviques e bolcheviques como Stalin e Zinoviev e aqueles que, como Lenin e Trotski, subordinavam sua tática à sua estratégia e assim fortaleciam o movimento dos oprimidos contra a conciliação com os opressores. Esta é uma constante histórica. Não significa desprezar as oportunidades de enfrentar o inimigo principal, neutralizando o inimigo momentaneamente secundário, mas exige que se mantenha clareza a respeito de sua natureza. Não adiantava “pressionar” o primeiro-ministro Kerenski ou a burguesia empoderada no Parlamento (a Duma), senão como forma de desmascará-los, como não adianta “pressionar” Lula para que ele se transforme em aliado estratégico. Ao contrário, esta posição gera ilusões no adversário. Com as reservas de detalhes, Lula está exposto, senão condenado pelo que tem feito (e não feito), a ser um Kerenski piorado, utilizando seu prestígio para paralisar o movimento de massas, como tem feito, capacidade negativa que faltava a Kerenski.

No dia 4 de Abril, horas após sua chegada, as “Teses de Abril” foram lidas por Lenin em duas reuniões de militantes, uma exclusiva aos bolcheviques e outra que incluía os mencheviques. Inicialmente, Stalin e Kamenev pretendiam nesse momento selar a fusão com os chamados “mencheviques de esquerda”. Ao tomar a palavra, Lenin explicitou os dez pontos de seu documento e inverteu a situação. Para ele, somente a “ditadura do proletariado”, destruindo a relação inédita que se estabelecera entre o governo burguês que substituía a monarquia desde Fevereiro e a “ditadura democrática” operária e camponesa (os Soviets, termo russo equivalente a “Conselho”) e iniciando a revolução socialista contra a guerra, teria condições para levar a termo a revolução democrática russa. Note-se um resto de etapismo nestas formulações, verdade que bem encurtado e, por outro lado, uma grande prudência nas decisões. De fato, em outros momentos, Lenin prevenia que as ilusões ainda vigentes entre os trabalhadores sobre um “caminho pacífico” ao bem estar, senão ao socialismo, deveriam ser pacientemente combatidas, pois estas ilusões dificultariam, ou até impediriam, a consolidação do novo poder. Apesar deste reconhecimento, Lenin continuava entretanto a identificar verbalmente etapas no processo revolucionário.

A revolução prosseguiu em Março-Junho, com uma burguesia impossibilitada de restaurar a “normalidade” legislativa devido ao vigor do movimento popular e dos Soviets, e a esquerda insuficientemente preparada, aguerrida e despida de ilusões reformistas, para derrubar os obstáculos erguidos pela mesma burguesia. Não seria possível continuar por muito tempo neste equilíbrio instável e cada lado tratava de se reforçar material e politicamente para enfrentar a contenda, logo que isto lhe fosse possível.