Pular para o conteúdo
TEORIA

Outubro ou Novembro (1): o mundo muda de face num país improvável

Bernardo Boris Vargaftig, de São Paulo (SP)

Introdução: Porque estudar a revolução russa?

É habitual comemorarmos datas festivas, históricas e políticas ou, para grande parte da população, religiosas. A Revolução russa de Outubro (no calendário juliano em vigor na Rússia pré-revolucionária) ocorreu em 7 de Novembro de 1917 e se agudizou enormemente até aproximadamente 1925. A Morte de Lenin em 1924, a expulsão de Trotski do Partido bolchevique em 1927, marcam o começo de um processo tenebroso de contra-revolução. Há excelentes livros de história desta época e não pretendo repeti-los ou, pior, completá-los. Escolhi um outro procedimento, o de cobrir um espaço temporal ou evento determinado e explorar as hipóteses e opiniões a respeito, procurando, com prudência, destacar acontecimentos que evocam de alguma forma, a situação brasileira atual ou próxima. Nem de longe se trata de seguir um caminho de total determinismo, em que o que ocorreu no passado deva obrigatoriamente se repetir.  Destaco  as eventuais semelhanças entre os eventos políticos ocorridos e/ou da relação de forças entre as classes em disputa, com futuros desenvolvimentos iguais até um certo ponto e certamente diversos em médio e longo prazo. Começo com as chamadas “Teses de Abril de Lenin” algumas semanas após a Revolução de Fevereiro, que levou uma representação burguesa a substituir, com vacilações, a autocracia feudal tsarista. Outros pontos nevrálgicos seguirão (1).

1917 (2): o mundo muda de face num país improvável

Em 24 de outubro de 1917, pelo calendário dito juliano (3), o mundo mudou de face.  Surgia algo novo, a promessa da futura sociedade socialista, em que a propriedade privada dos meios de produção seria substituída pela propriedade social, com o desaparecimento das classes sociais – estrutura social vigente havia mais de dois mil anos, sob formas de escravidão, feudalismo, capitalismo e suas combinações.

Era a revolução preparada pelos bolcheviques, a fração mais decidida do então Partido social-democratico, formado pelos mencheviques (menchii = minoritários, em russo, grosso modo os reformistas) e os bolcheviques (majoritários). Os mencheviques tinham subgrupos ou tendências, menos evidentes entre os bolcheviques, cujos membros podiam certamente exprimir posições divergentes, predominando a posição daqueles que, após uma livre discussão, formariam uma maioria em um ponto importante da política em curso. O direito a constituir tendências era garantido.

O Partido foi o instrumento da revolução, encabeçado por V. Lenin que, com L. Trotski, recentemente aderido à tendência bolchevique, dirigiu a tomada do poder e os primeiros anos de luta contra a reação interna, apoiada por tropas intervencionistas de mais de 20 países, até 1924-1925. Impossível relatar todos acontecimentos na frente da luta de classes que precederam e seguiram a tomada do poder.

Muitos livros escritos por participantes e/ou historiadores comprometidos relatam e interpretam estes acontecimentos do ponto de vista marxista, e podem e devem ser consultados (4). Resumi-los aqui tem pouco sentido e escolhi um outro enfoque, o de manter o contexto histórico, e relatar e comentar um aspecto do processo de avanço e recuo do movimento revolucionário naqueles dias. Entenda-se que toda história política, até mesmo a escolha dos parâmetros da cronologia, depende do ponto de vista do autor. Relatar o nascimento de uma doutrina política, religiosa ou de uma descoberta científica, envolve de fato um ponto de vista. Boa razão de procurar as alternativas.

Um aspecto essencial das lutas que precederam a tomada do poder em Novembro de 1917, foi o polêmico retorno de Lenin à Rússia em Abril de 1917, após 12 anos de exílio, então em Zurich, com outros 7.000 (!) súditos russos, bloqueados na Suíça. Este exílio parecia terminar após a revolução dita “democratico-burguesa”, que em fevereiro derrubara o czarismo, substituído por uma coalizão burguesa, liderada pelo advogado Alexandre Kerenski. Dado essencial para entender o que ocorreria, haviam-se formado espontaneamente comitês de trabalhadores, os Soviets, formados por camponeses e soldados eleitos por seus companheiros. Um enorme exército enfrentava tropas alemãs, neste terceiro ano da 1a. Guerra Mundial. Eram os Soviets, já presentes em número menor quando da revolução de 1905, que representavam um duplo poder, ainda paralelo, senão inferior, ao governo burguês “legitimo”. Trotski havia presidido o primeiro dos Soviets, o de 1905, em São Petersburgo (= Petrograd). A grande preocupação da coalizão imperialista anti-germânica, formada pela Grã-Bretanha, França e Rússia era que esta, expurgada do militarismo monárquico pela Revolução dita democratico-burguesa do mesmo ano, negociasse uma paz separada com o bloco germânico, liberando um gigantesco contingente de tropas para a frente ocidental.

Em Zurich, virtualmente impotente, Lenin sentia a terra fugir-lhe sob os pés, com a capitulação dos mencheviques à patriotada guerreira (ao custo do sangue dos soldados-camponeses). Grave pelas suas consequências, em Março, dois membros da direção bolchevique, Kamenev e Stalin, retornaram da deportação na Sibéria e reorientaram a política partidária ao que denominaram “defensivo revolucionário” e propuseram a fusão do Partido com a ala esquerda dos mencheviques. Bela demonstração do internacionalismo proletário e traição à revolução alemã em curso (o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl LIebknecht por milicianos ligados à chamada social-democracia de Ebert, Noske e Scheidemann foi nos inicios de 1919).

O ocorrido em Março e Abril de 1917, pouco após a revolução de Fevereiro, que empoderou a burguesia dita “democrática”, é essencial para o que se seguiria, a vitória socialista de Novembro. A semi-vitoria de Fevereiro, a realeza derrubada e substituída pela democracia burguesa e, em paralelo, os Soviets em crescimento numérico e político, tiveram enorme impacto emocional, portanto político. Após longos combates, muitos bolcheviques consideravam terem vencido e seus esforços esmoreceram. Apesar disto, em dois meses o número de militantes passou a 79.000, dos quais 15.000 em Petrogrado. Em 5 de Março, o jornal Pravda foi republicado, e em seu segundo número 100.000 exemplares foram vendidos. Era dirigido por Molotov e Chliaonikov, retornados do exílio, sendo o primeiro o futuro cúmplice de Stalin. Kamenev, futura vítima dos expurgos stalinistas de 1936-1938, também retornado, chegou a escrever no Pravda de 28 de Março, uma patriotada belicista afirmando que “o soldado russo permanecerá firme em seu posto, e responderá com balas às balas…”  Condenou assim a revolução alemã à derrota, eliminando o apoio que os bolcheviques dela esperavam.  A  linha reformista e capitulacionista parecia triunfar, mas era sem contar com a capacidade e autoridade de Lenin.

Em 16 de Abril, Lenin conseguiu retornar, após extraordinária negociação com a Alemanha, que lhe permitira gozar, com mais camaradas, de exterritorialidade e assim atravessar o território inimigo num trem afretado, sem precisar da documentação, que aliás não possuía. Os alemães assim procediam porque precisavam desesperadamente da paz separada com a Rússia, para transferirem o grosso de suas tropas para a frente ocidental. O posicionamento de Lenin contrariava, ao promover este acordo inédito com o inimigo, o lugar comum pacifista, seu objetivo não era a democracia burguesa (e a inevitável prisão logo que oportuno), mas a “revolução socialista mundial”. A posição de Kamenev, dita “do interior”, era “defensiva” e aparentada à dos mencheviques. Stalin aliás propusera a imediata fusão com uma ala esquerdizante dos mencheviques… Ao contrário deste posicionamento, em 17 de Abril, Lenin lia para uma sala repleta de bolcheviques suas “Teses de Abril”, escritas durante a viagem de trem, que se opunham à linha da então maioria, explicitando que a guerra continuava imperialista, apesar da mudança política interna. Para ele, ainda meio etapista na linguagem, porém “permanentista” na prática, a etapa democrático-burguesa estava terminada (etapa histórica bem curta, algumas semanas !) e os revolucionários deveriam passar à etapa socialista.

As “Teses de Abril” de fato afirmam:

“O que há de original na situação atual na Rússia é a transição da primeira etapa da revolução, que empoderou a  burguesia devido ao grau insuficiente de consciência e de organização do proletariado, à segunda etapa, que deverá empoderar o proletariado e as camadas pobres do campesinato”.

Curiosamente, esta formulação parece manter a teoria da revolução por etapas distintas, portanto em oposição à formulação de Trotski. Este afirmava que a revolução teria um aspecto “permanente”, o que não significava que ocorreria diariamente, mas que as reivindicações e conquistas de caráter democrático burguês dariam continuidade s tarefas socialistas. Seria impossível decretar, em meio a uma reforma anti-feudal, obtida pelo único método disponível, a revolução, que por decreto não se iria adiante, obrigando o movimento de massas a se paralisar para satisfazer a teoria etapista. Aliás, vimos bem no Brasil, na China dos anos vinte, na Espanha republicana, na França da Frente Popular que precedeu a 2a Grande Guerra, enfim em muitos exemplos, a que levou a teoria etapista…

Não acho que a história se repete, mas acredito que circunstâncias parecidas podem levar a consequências parecidas. Abro assim um parênteses para comparar os eventos acima a parte da história brasileira, quando os acordos que se seguiram à erosão e retirada da ditadura, foram negociados pelos Kerensky brasileiros de serviço. Isso se deu em ausência de dois elementos essenciais que ocorreram na Rússia: por um lado, a guerra mundial que assassinou e radicalizou milhões de camponeses russos, tornados sensíveis à propaganda bolchevista resumida na palavra de ordem “Paz e Terra” e pelo outro, a existência de um partido revolucionário aguerrido, disciplinado e politizado. A única comparação que me vem ao espírito é com os jacobinos da Revolução francesa (tese sustentada pelo historiador marxisante A. Mathiez (5).

Estas condições não existiram no Brasil da “abertura”. Mesmo se os vinte anos de ditadura possam conceitualmente representar os quatro anos de guerra mundial, a inexistência de um Partido revolucionário ou organização equivalente impedia avanços coordenados, como aliás faltavam na Alemanha. Nesta, a jovem tendência Spartacus, vinda da social-democracia e que originou o Partido Comunista alemão, nem de longe tinha o preparo dos bolcheviques, Além disto, o assassinato de Rosa e de Karl Liebnicht pelo coligação da direção dos social-democratas alemães com as milicias pré-fascistas decapitou o futuro PC alemão.

Voltemos a Abril, na Rússia. Diante do aparente bloqueio da situação, com a aceitação pels dirigentes que substituam Lenin, do apoio ao governo “renovado” e do prosseguimento portanto da guerra imperialista,  Lenin resolvera correr todos riscos e retornar imediatamente à Rússia, custasse o que custasse, inclusive ao enfrentar a acusação de entendimento com o inimigo. O governo Kerensky sabotava a volta dos revolucionários exilados e havia mesmo transmitido aos postos de fronteira uma lista de pessoas a serem detidas se chegassem. Temiam eles e com razão, o papel corrosivo que desempenharam os revolucionários retornados. Isto ocorreu diferentemente no retorno dos exilados brasileiros, talvez porque a cúpula burguesa e imperialista pensava tê-los domesticado – no que se enganava, mas esta é outra história.

Foi também diferente o retorno dos mencheviques favoráveis ao prosseguimento do esforço de guerra, já que a “honra da Pátria” estaria em jogo: foram transportados como jóias preciosas (e o eram…), sob proteção da marinha de Sua Majestade britânica, sendo essenciais para que a coalizão imperialista se mantivesse intacta em seus três componentes associados, às custas dos trabalhadores mobilizados…

Em circunstâncias bem relatadas, mas sob um formato literário e sem embasamento ideológico e histórico sério, Stefan Zweig descreveu (6) com talento, como Lenin, enfrentando as objeções de seus próprios camaradas que temiam a pecha de “traidor”, negociou com os representantes alemães na Suíça uma autorização de retorno a São Petersburgo (já Petrograd – “grad” sendo “cidade” em russo e “Petro- em homenagem ao imperador quie fundara a cidade a partir do nada).

Lenin desembarcou em Petrograd em 3 (16)  de Abril, após atravessar o território alemão, portanto ïnimigo, aliás sem que este violasse o acordado, Foi recebido em fanfarra, pelos seus adversários políticos tornados belicistas, e por uma multidão popular, sobretudo soldados-camponeses. Qual não foram o espanto e a decepção dos “patriotas” presentes diante da concisão da intervenção de Lenin, que acentuou a enorme importância do duplo poder, mesmo se a nomeação de Kerenski ao cargo de Primeiro Ministro tivesse tido a aprovação do Soviet. Quer reorientar o Partido, que havia tomado posições “defensivas” sob a direção temporária de Kamenev e Stalin. Para tanto, leu em duas reuniões de militantes suas “Teses de Abril”, que havia redigido durante a viagem. Através de uma lista de dez pontos, reafirmou as posições internacionalistas: apoio total à revolução camponesa em curso, à reivindicação de “Todo poder aos Soviets” (expressão do duplo poder) e à formação de uma nova Internacional, pois a Segunda se havia desmoralizado pelas suas posições guerreiras, e enfim a mudança do nome do Partido para Partido Comunista. Escreveu Lenin : “O que há de original na situação atual da Rússia é a transição da primeira etapa da revolução, que empoderou a burguesia devido ao grau insuficiente  de consciência e de organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deverá empoderar o proletariado e as camadas pobres do campesinato”

Interessante notar que Lenin atribui o empoderamento pela burguesia, quando da queda do czarismo, “ao grau insuficiente de consciência e de organização do proletariado”, duas razões evidentemente essenciais, porém subjetivas. E se “o grau de consciência e de organização do proletariado” fosse suficiente, o etapismo não dominaria? Ve-se bem, que os fatores táticos e subjetivos não determinam que a teoria geral do etapismo seja válida, mas bem ao contrário, em ausência destas condições subjetivas, teria ocorrido o “desbloqueio” da revolução permanente.

Ve-se bem, que os fatores táticos e subjetivos não determinam que a teoria geral do etapismo seja válida, mas bem ao contrário, em ausência destas condições subjetivas, teria ocorrido o “desbloqueio” da revolução permanente.

Com sua habilidade habitual de associar formulações programáticas rigorosas com a tática para executá-las, também afirmou: “Vista a inegável boa fé de amplas camadas dos partidários do defensismo revolucionário, que somente admitem a guerra por necessidade e não para conquistas, e como são enganadas pela burguesia, é importante esclarece-las sobre seus erros, com perseverança, paciência e cuidados especiais, explicar-lhes que existe uma relação indissolúvel entre o capital e a guerra imperialista…”,

Segundo Trotski, “Não é de se estranhar que as Teses de Abril tenham sido reprovadas como sendo “trotskistas”, por transmitirem a ideia que o proletariado da Rússia poderá tomar o poder antes do proletariado ocidental, e que neste caso não poderá se limitar ao quadro da ditadura democrática, mas deverá empreender as primeiras medidas socialistas”.

A oposição verbal e de fundo entre o etapismo da social-democracia e do stalinismo e a concepção dita “trotskista” da revolução permanente tem um aspecto histórico, mas que não impede alianças entre seus adeptos e os da revolução permanente. Entretanto, na formulação de um programa de transição, que associa reivindicações econômicas ou políticas factíveis no regime capitalista vigente, como o aumento de salários, mudanças progressistas na política fiscal ou fundiária, à sua perenização e associação a medidas socialistas, as coisas mudam.

Veremos como e porque mudam em próximos capítulos.

Bernardo Boris Vargaftig é militante da Resistência-Psol, professor aposentado da USP e vencedor do Prêmio Farmacologista Sênior 2023.

Notas

1 A primeira parte desta série, desprovida da presente Introdução, foi publicada em EOL em 04/12/2023.

2 Primeiro artigo de uma série consagrada à revolução russa.

3 O Calendário vigente no Ocidente, a partir do século XVI, equivale  ao 7 de novembro. No que segue, utilizarei o formato 24 (7)  para indicar o 24 de outubro pelo calendário juliana, pré-soviético e 7 de novembro, pelo calendário atual, admitido na URSS em 1922.

As principais referências para a sinopse em curso são: Gian Giacomo Cavicchioli,  Editions Science Marxiste, Montreuil-sous-Bois, França, 2017 ; D. Bensaid, Octobre 17, la révolution trahie, Éditions Ligne, Paris, 2017; Livro coletivo,1917, O Ano que abalou o mundo, Editions SESC e Boitempo, S. Psulo, 2017; L. Trotsky, Historia da Revolução Russa, Edições Sundermann, S. Psulo, 2007; 

  1. Trotski, Minha Vida, Usina Editora, S. Paulo, 2017.

5 A.Mathiez, Révolution russe et révolution française, Éditions Critiques, Paris, 2017.

6 S. Zweig, Le Wagon plombé (o vagão blindado), Editora Payot, Paris, 2017. S. Sweig, romancista austríaco de qualidade e espírito democrático, embora afastado da política, refugiou-se no Brasil algum tempo após a incorporação da Austria à  Alemanha hitleriana. Por razões obscuras, pois no Brasil parecia estar em situação favorável, o casal se suicidou.