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TEORIA

Pensando um pouco sobre a “crise de direção do proletariado”

Henrique Canary, da redação

A ideia da crise de direção do proletariado é um dos paradigmas fundamentais das correntes trotskistas. Esse é um dos eixos do Programa de Transição, adotado por ocasião da fundação da IV Internacional, em 1938. Desde então, praticamente todas as organizações que reivindicam a tradição de Leon Trótski se erguem sobre essa base. Junto com a ideia da crise de direção, vem embutida a estratégia de sua superação positiva. No presente artigo, levantamos a hipótese de que esse conceito – crise de direção do proletariado – já não mais corresponde à realidade. Seria necessária uma nova abordagem, capaz não apenas de explicar a ausência de revoluções socialistas vitoriosas desde meados dos anos 1970, mas também de apontar uma saída.

O que é a crise de direção do proletariado? 

Não há dúvidas de que essa é uma das ideias centrais do trotskismo. O Programa de Transição começa com a seguinte frase: “A característica fundamental da situação política mundial, no seu conjunto, é a da crise de direção do proletariado” (1) (pág. 10). Tudo deriva daí. O que tinha em mente Trótski? Vejamos.

Trótski escreve em 1938. A Revolução Russa cumpria então seu 21º aniversário. A explosão revolucionária do final dos anos 1910 e início dos anos 1920, embora já tivesse se apagado, lançava ainda seus ecos tardios sobre a luta de classes mundial. Fruto da enorme vitória de 1917, a III Internacional se tornara uma organização de massas. Os partidos comunistas contavam com dezenas – em alguns casos centenas – de milhares de militantes ativos e disciplinados, que penetravam com sua ação no âmago das próprias massas, com um amplo e profundo trabalho de base. Sindicatos, associações, clubes operários, centros culturais, universidades, as ciências, as artes – tudo ou quase tudo se encontrava sob a influência dos comunistas, herdeiros de Lênin e representantes de uma grandiosa experiência socialista que estava sendo implementada no maior país da Terra (no pós-guerra a experiência socialista abarcaria 1/3 da superfície terrestre). O socialismo estava dentro do horizonte político imediato; era um tema discutido cotidianamente pelas grandes massas. O fascismo crescia no mundo inteiro, é verdade, mas apenas como resposta ao perigo da revolução socialista. 

Além dos comunistas, havia também os sociais-democratas. Eles rivalizavam com os comunistas, influenciando também milhões de operários. Eram, aliás, os dirigentes mais antigos e tradicionais, herdeiros da gloriosa tradição alemã. Governavam países, regiões e tinham enorme peso em diversos parlamentos europeus.

Assim, o movimento operário – uniforme, homogêneo e disciplinado – seguia fielmente sua direção, seja ela comunista ou socialdemocrata. As palavras de ordem lançadas pelas organizações operárias tinham exatamente esse sentido: o de uma ordem. Moviam grandes massas para essa ou aquela luta, determinavam até onde ia a ação. 

Mas havia uma contradição: na própria URSS – a pátria socialista que crescia e se fortalecia vertiginosamente – estava acontecendo uma contrarrevolução política. Uma direção que representava os interesses de uma nascente burocracia tomara o poder, eliminara fisicamente a velha guarda bolchevique e implementara um regime contrarrevolucionário baseado na teoria do socialismo em um só país. Para tanto, a democracia operária nos sovietes e no partido bolchevique fora anulada, em benefício de um regime tirânico que perseguia não apenas opositores, mas inclusive seus fundadores e defensores mais fiéis.

Como isso foi possível? Evidentemente, o controle do aparato do partido bolchevique e do Estado soviético cumpriu o seu papel, da mesma forma que as manobras internas e a simples violência política. Mas não só. A burocracia stalinista representava uma nova correlação de forças, uma nova consciência e uma nova disposição das massas soviéticas. Foram três revoluções (1905, fevereiro de 1917 e outubro de 1917) e quatro guerras (a Guerra Russo-Japonesa de 1905, a I Guerra Mundial de 1914-1917, a Guerra Civil de 1918-1921 e a Guerra Russo-Polonesa de 1922). Some-se a isso a reviravolta que significou a expropriação do campo a partir de 1928, com sua profunda violência e centenas de milhares de vítimas e deslocados. Teremos então a tempestade perfeita, o cenário ideal para a ascensão do stalinismo: ninguém aguentava mais. Stálin captou esse sentimento e formulou seu programa: “Basta de aventuras! Construamos o socialismo na URSS! Temos muito o que fazer aqui!” Não se deve menosprezar o preço pago por Trótski por elaborar e difundir a simples verdade de que, caso permanecesse isolada, a URSS fatalmente sucumbiria. “Aventureiro! Irresponsável! Não acredita no potencial do povo soviético!” Se vemos esse tipo de acusação contra Trótski ainda hoje no YouTube, depois da falência da URSS exatamente pelas razões por ele apontadas, imaginem como era isso nos anos 1920 e 1930!

O fato é que o stalinismo triunfou. E não apenas na URSS. Tendo vencido a luta interna na União Soviética e cavalgando internacionalmente a autoridade da Revolução de Outubro, a fração stalinista se tornou a direção inconteste da III Internacional. Os partidos comunistas no mundo inteiro foram “depurados”. Trotskistas, bukharinistas e opositores em geral foram eliminados das direções nacionais. Os partidos comunistas foram primeiro “bolchevizados” (controle rígido por parte de Moscou), depois “proletarizados” (todo e qualquer pensamento crítico foi eliminado como desvio “pequeno-burguês” e “intelectual”). Mas eles não perderam sua relação com as massas. Continuavam dirigindo e movendo milhões. 

Assim, a contradição anterior (ecos da luta revolucionária de 1917 x contrarrevolução stalinista) transcresceu em uma nova: por um lado, o mundo se encontrava objetivamente pronto para a revolução socialista; por outro, havia ocorrido um grande retrocesso subjetivo (de consciência) na classe trabalhadora. O proletariado seguia agora não mais uma direção revolucionária, mas uma direção burocrática, conservadora, nacionalista e contrarrevolucionária (aplicava métodos de contrarrevolução violenta dentro da URSS).

A socialdemocracia não deixava por menos. Ao se tornar parte orgânica do Estado burguês, com seus primeiros ministros, prefeitos, governadores e enormes bancadas parlamentares, passou a ser uma representante da burguesia dentro do movimento operário. Utilizava toda sua autoridade no proletariado para desviar e domesticar as lutas, dirigindo-as para o beco sem saída do respeito à institucionalidade e ao calendário eleitoral. O apoio à I Guerra Mundial em 1914 e a traição à Revolução Alemã de 1918-1919 foram somente o início de sua jornada reformista. Muitas outras traições vieram depois.

Essa é a fotografia que Trótski tira em 1938: “Tudo depende do proletariado e, antes de tudo, de sua vanguarda revolucionária. A crise histórica da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária” (pág. 11).

Entendendo, então, o conceito: a crise de direção do proletariado é uma contradição entre a disposição de luta revolucionária das massas e sua direção traidora, burocrática ou reformista, que se nega a levar às últimas consequências os combates que dirige. Vejamos: “Em todos os países, o proletariado está envolvido por uma angústia profunda. Massas de milhões de homens lançam-se sem cessar no caminho da revolução. Mas, em cada um dessas ocasiões, chocam-se com seus próprios aparelhos burocráticos conservadores” (pág. 12). A partir daí, Trótski nos dá uma série de exemplos de lutas em que o proletariado tentou ir mais além em sua ação revolucionária, mas foi enganado, desviado e iludido por sua direção burocrática: a Revolução Espanhola de 1931-1938, a França de 1936, o prodigioso crescimento do movimento sindical nos Estados Unidos na mesma época. As “frentes populares”, quer dizer, os governos de colaboração de classes, também seriam, segundo Trótski, uma resposta antecipada das direções traidoras e da burguesia ao perigo da revolução, os “últimos recursos políticos do imperialismo na luta contra a revolução proletária” (pág. 13), em suas exatas palavras.

Como superar ou resolver essa crise de direção? A resposta era relativamente simples, embora dramaticamente difícil na prática: destruindo politicamente reformistas e stalinistas e conquistando a hegemonia entre as massas. Trótski acreditava que a II Guerra Mundial teria para os verdadeiros revolucionários um efeito similar ao que a I Guerra Mundial teve em seu tempo: permitiria a substituição de uma liderança por outra, a superação histórica da crise de direção. Fora assim em 1914-1917, quando os comunistas superaram os sociais-democratas. Se repetiria nos anos que estavam por vir. Mas para isso, era preciso um combate feroz dentro do movimento operário. 

Por que essa ideia foi correta e importante historicamente?

Basicamente porque, analisando alguns processos históricos concretos, ela corresponde à realidade. O que dizer, por exemplo, da Revolução Chinesa de 1927, onde o Partido Comunista da China, por ordens de Stálin, se dissolveu no interior do Kuomintang, o movimento de libertação nacional de caráter burguês e nacionalista? De fato, nesse processo, a iniciativa revolucionária das massas foi tolhida e distorcida pela direção stalinista: chamaram os operários chineses a confiar na direção burguesa até essa mesma direção esmagá-los fisicamente no famoso massacre de Xangai; atrasaram o surgimento dos sovietes quando era preciso convocá-los; organizaram às pressas sovietes artificiais quando a revolução havia sofrido uma derrota etc. Ou o que dizer da Alemanha dos anos 1930? Da recusa intransigente da direção do Partido Comunista da Alemanha em formar uma frente única com a socialdemocracia para derrotar o nazismo? Mesmo alguns processos que se deram depois da morte de Trótski ocorreram segundo esse esquema que ele desenhou tão bem: o chamado do Partido Comunista da Itália aos operários para que entregassem as armas e reconstruíssem o Estado burguês depois da vitória sobre Mussolini; processos similares na França e Grécia também no imediato pós-guerra, a postura do Partido Comunista de Cuba diante da ditadura de Batista etc. Haveria muitos outros exemplos. As traições existiram na história e não há como negá-las. A questão reside em saber se elas explicam tudo. Chegaremos lá.

Nossa primeira e provisória conclusão, portanto, é de que a ideia de “crise de direção do proletariado” foi uma enorme conquista programática e teórica que ajuda a explicar muitos fracassos revolucionários do século 20. Talvez não explique tudo, mas não há problema. De um modo geral, pode-se afirmar que o século 20 foi marcado por essa contradição gritante. De um lado, gigantescos ascensos revolucionários que colocavam em cheque a dominação burguesa e imperialista. De outro, uma direção disposta a tudo para preservar a fonte de seu poder (a dominação burocrática da URSS) e que para isso tinha como estratégia a convivência pacífica com o imperialismo e a competição econômica, mas nada de revolução. Nos países em que essa direção perdeu a hegemonia sobre as massas, coisas incríveis aconteceram, como na China em 1949 e em Cuba em 1959. Mas essas foram exceções.

Por que essa ideia não é mais adequada?

O que teria acontecido no século 20 e início do século 21 que anulou essa ideia tão central para Trótski? Muitas coisas. Vejamos.

Nos anos 1970 começa a crise do sistema socialista mundial, fruto do isolamento a que se referia Trótski na teoria da revolução permanente. A China encontra uma saída promovendo reformas que introduzem elementos de capitalismo na economia (não importa aqui se a China é hoje capitalista ou não). A URSS faz o mesmo em meados dos anos 1980 (perestroika), mas o resultado é mais caótico, resultando na dissolução do Estado, na independentização de cada uma das 15 repúblicas soviéticas e na restauração do capitalismo em todas elas. Fruto disso, o Bloco Socialista (Europa Oriental) se desfaz e o capitalismo também é restaurado aí, mais ou menos como na URSS, ou seja, de forma violenta e abrupta e com o apoio das grandes massas. A Alemanha se reunifica sobre bases capitalistas e os Estados Unidos emergem vitoriosos da Guerra Fria.

Esses acontecimentos gigantescos têm um profundo impacto na consciência das massas e na propaganda imperialista. O socialismo é encarado como um modelo fracassado. A democracia burguesa começa a ser vista como o único horizonte possível e as massas passam a esperar não mais uma mudança radical em suas vidas, mas pequenas reformas e melhorias parciais. Às vezes, nem isso.

Junto com esse fato, mudanças estruturais acontecem. Vem a reestruturação produtiva. A classe operária é fragmentada, individualizada, atomizada. Surge o neoliberalismo. Os serviços sociais são destruídos, o Estado é lapidado e deixa de prestar muitos serviços sociais que forneciam um senso de coletividade à vida. O desemprego e o desalento tornam-se parte da paisagem normal da sociedade. Depois, a precarização (terceirização) e, mais recentemente, a uberização dos empregos. A classe operária “clássica” (fabril) é decomposta, desestruturada, jogada nos aplicativos, nas bicicletas e motocicletas do iFood e nos carros da Uber. A economia – e com ela a classe trabalhadora – se plataformiza.

O movimento sindical entra em crise e tem enormes dificuldades em organizar as pessoas. As desfiliações são massivas. Os sindicatos tornam-se uma coisa alheia à classe e seu cotidiano. Poucos atendem aos seus chamados. A propaganda neoliberal joga uns trabalhadores contra os outros. Os grevistas são “vagabundos”, principalmente os funcionários públicos, que são “privilegiados” e “não querem trabalhar”.

A ultra-direita se organiza e ressurge no cenário mundial como uma força avassaladora, impulsionada pelas redes sociais, onde a presença da esquerda ainda é bastante minoritária. O neofacismo vence as eleições em países importantes e ameaça em outros.

A ultradireita se organiza e ressurge no cenário mundial como uma força avassaladora, impulsionada pelas redes sociais, onde a presença da esquerda ainda é bastante minoritária. O neofascismo vence as eleições em países importantes e ameaça em outros.

Tudo isso se reflete na “direção” da classe. As aspas não são por acaso. Pode-se se falar realmente em uma “direção” nessas condições? Alguns partidos socialdemocratas preservam uma importante influência política, mas é difícil dizer que “dirigem” a classe. Sua inserção social não guarda nenhuma proporção com aquela da primeira metade do século 20. Os partidos comunistas então – nem se fala. Alguns se tornaram seitas anacrônicas; outros se adaptaram à democracia burguesa, aprofundando o processo de social-democratização que vinha desde os anos 1970 com o “eurocomunismo”; outros poucos encontraram saídas políticas e seguem resistindo, mas são tão marginais quanto o resto da esquerda radical.

Pensemos agora novamente na frase de Trótski: “Em todos os países, o proletariado está envolvido por uma angústia profunda. Massas de milhões de homens lançam-se sem cessar no caminho da revolução. Mas, em cada um dessas ocasiões, chocam-se com seus próprios aparelhos burocráticos conservadores”. Milhões de pessoas lançam-se sem cessar no caminho da revolução? O principal obstáculo que enfrentam são as direções traidoras, burocráticas e reformistas? As massas têm disposição de ir além da democracia burguesa, mas os processos revolucionários são “desviados”? É assim em nosso cotidiano? As greves não obtém resultado porque são traídas? Novamente, não negamos que as traições existam, mas esse é o principal problema da atual etapa histórica? Ou é a dispersão, a confusão, a apatia, o individualismo, a alienação, a imobilidade e a falta de perspectivas? As massas desejam ardentemente a superação da sociedade capitalista, mas são enganadas por suas “direções”? Suas lutas tendem ao socialismo, mas são constantemente traídas por stalinistas e reformistas?

Lembremos as últimas assembleias das quais participamos ou mesmo a situação geral de nossa categoria. Quantas vezes a direção do sindicato, apoiada por todos os partidos de esquerda, tentou construir uma mobilização, mas não foi possível? As “direções majoritárias” foram as culpadas? Em todos os casos? Estamos seguros disso? Ora, todo ativista sabe que construir uma mobilização é uma das coisas mais difíceis que existem. A posição de diretor do sindicato pode oferecer alguma vantagem, mas nem de longe resolve o problema da disposição de luta de uma categoria. É preciso construir com meses de antecedência, correr os setores, publicar boletins, postar nas redes, negociar com as direções dos sindicatos aliados, fazer acordos, ceder, adaptar o discurso. Às vezes dá certo. Às vezes não.

Nada está mais longe da realidade do que “massas de milhões de pessoas” que “se lançam sem cessar no caminho da revolução” e que, nesse caminho, “chocam-se com seu próprios aparatos conservadores”. É preciso admitir que isso não é mais assim.

Qual é, então, a crise?

Aqueles que defendem que a ideia central do Programa de Transição segue válida argumentam que o que houve foi um “aprofundamento” da crise de direção do proletariado. Isso explicaria fenômenos como o neofascismo, o Estado Islâmico, o resultado desastroso do levante da Praça Maidan na Ucrânia, o desfecho de Junho de 2013 no Brasil, o fiasco da nova constituição chilena e outros “paradoxos” no terreno da direção política das massas. O paradigma trotskiano, portanto, seguiria válido, só que mais agudo. Argumento interessante, mas é contorcionismo lógico. Essa resposta reconfortante ignora os processos ocorridos no seio da própria classe-que-vive-do-trabalho: sua desestruturação física, política, econômica, social e cultural. Ignora também as consequências do profundo retrocesso na consciência das massas: a rejeição aos partidos, à esquerda, aos sindicatos, o apelo religioso, o individualismo, a ideologia do empreendedorismo, a negação das lutas coletivas, o abandono da perspectiva socialista.

A característica determinante da etapa histórica que vivemos não é, portanto, a “crise de direção do proletariado”, mas sim uma crise do próprio proletariado. Essa crise, que poderíamos chamar de crise de subjetividade, produto de toda a realidade que descrevemos acima, resulta em um profundo retrocesso na consciência e na disposição de luta. O proletariado segue existindo como “classe em si”, ou seja, nunca foi tão amplo, tão produtivo, tão importante socialmente, tão internacional, tão conectado economicamente. Mas o proletariado perdeu a dimensão que chamamos “para si”. Não se enxerga nem mesmo como uma classe social distinta, separada da burguesia ou da pequena-burguesia e classe média; muito menos como uma classe com interesses próprios; nem pensar então como o portador de uma nova sociedade, do socialismo.

As lutas evidentemente seguem acontecendo porque o capitalismo segue existindo, mas nunca foram tão defensivas, confusas e tão limitadas em sua perspectiva estratégica. Isso não pode ser atribuído fundamentalmente à direção, embora a direção – quando existe! – possa cumprir um papel. É preciso ir mais fundo. E lá no fundo, se cavarmos bem, está a crise subjetiva do proletariado.

Qual é a tarefa do período histórico?

A tarefa do período histórico é determinada pela característica mais geral deste mesmo período. A tarefa elaborada no Programa de Transição era a superação da crise de direção do proletariado por meio da mobilização permanente das massas e da disputa de direção. A tarefa do presente período histórico é a recomposição da subjetividade histórica do proletariado. Para tanto, é preciso refazer o caminho já percorrido. É preciso acompanhar a classe-que-vive-do-trabalho em sua nova (velha) experiência histórica: fomentar as lutas mínimas e a organização, reconstruir os laços de classe, promover a consciência, o internacionalismo, a unidade para lutar, a independência de classe. O proletariado precisa, em primeiro lugar, se entender como uma classe. Esse é o primeiro passo. Depois, formular seus interesses e lutar por eles.

É preciso aproveitar as lutas reais (contra as opressões, pelo planeta, por direitos etc.) para reconstruir no seio do proletariado a ideia da identidade de classe e da oposição aos interesses da burguesia. Naturalmente, seguir intervindo nas organizações de classe existentes, mas com uma perspectiva mais paciente, menos ultimatista e mais educativa. 

Ou seja, é preciso promover experiências: lutas e movimentos contra a opressão, associações de bairro, cultura, territórios, emergência climática, sindicatos, disputas na internet, conquista de postos parlamentares, agitação e propaganda não restrita por algoritmos etc. Tudo o que ajude na retomada da consciência de classe perdida devido a uma profunda mudança histórica. Junto com as lutas, incentivar todo tipo de auto-organização das massas.

É preciso abandonar a ideia da iminência da revolução e o que daí deriva: a luta “de todos contra todos” dentro da esquerda, a disputa desenfreada pela direção – como se esta resolvesse tudo. É preciso passar a uma atividade colaborativa, ainda que se mantenham – e se devem manter – as distinções entre organizações, programas e estratégias. Mas a ideia de que cada organização revolucionária é um pequeno partido bolchevique dirigido por um pequeno Lênin que lança suas pequenas “Teses de Abril” contra os pequenos conciliadores dos sovietes – essa ideia infantil precisa ser superada.

Isso quer dizer que não é uma luta para amanhã. É a tarefa das nossas vidas. É preciso abandonar a ideia da iminência da revolução e o que daí deriva: a luta “de todos contra todos” dentro da esquerda, a disputa desenfreada pela direção – como se esta resolvesse tudo. É preciso passar a uma atividade colaborativa, ainda que se mantenham – e se devem manter – as distinções entre organizações, programas e estratégias. Mas a ideia de que cada organização revolucionária é um pequeno partido bolchevique dirigido por um pequeno Lênin que lança suas pequenas “Teses de Abril” contra os pequenos conciliadores dos sovietes – essa ideia infantil precisa ser superada.

Às vezes dizemos que o retrocesso histórico nos fez retornar a uma situação similar à que tínhamos durante a I Internacional. Isso é verdade, mas é preciso tirar todas as conclusões dessa frase. O período da I Internacional foi um período de construção da subjetividade histórica da classe. A “classe em si” se tornou paulatinamente “classe para si” na medida em que sua organização e concentração econômica se encontraram com a educação e a agitação política. Marx e Engels lutaram até as últimas consequências pela vitória da revolução quando ela ocorreu (Primavera dos Povos de 1848, Comuna de Paris de 1871). Mas, em geral, viveram fora de seu tempo. Estavam “fora de fase”, como se diz na série Star Trek quando um objeto habita um tempo diferente do que lhe é natural. Estamos na mesma situação. A distinção entre reformistas e revolucionários é necessária porque diz respeito à estratégia. É preciso preservar um programa, uma tradição, um objetivo final porque o tempo que vivemos passará. Não queremos reformar o capitalismo. Mas essa distinção não pode significar a autofagia destrutiva que vemos hoje. O período histórico impõe uma ampla colaboração entre distintas forças de esquerda. As táticas defensivas e unitárias adquirem importância primordial porque é na luta real que a classe trabalhadora recuperará o instinto perdido.

Isso não diminui, mas, ao contrário, aumenta a necessidade de organizações revolucionárias marxistas, coesas, internacionalistas, formadas por militante ativos, radicalmente democráticas em seu interior. Mas essas organizações só crescerão se buscarem se ligar ao movimento real, imperfeito da classe trabalhadora, dos explorados e oprimidos. Esse movimento é essencialmente reformista, não tende aos revolucionários, rejeita nossa estratégia e está repleto de contradições e perigos. Mas é o que há de mais importante.

A causa do socialismo tem pressa porque a vida humana é curta e o capitalismo conduz o mundo à destruição. Mas não ditamos o ritmo da história. Ele não depende da nossa vontade. Depende da consciência e da ação de uma classe – uma classe que sofreu uma profunda derrota histórica. É preciso encontrar os caminhos. Começamos a fazê-lo. Estamos aprendendo a viver na nova situação. Reaprendemos a importância da questão racial na formação social brasileira, o papel da reprodução social no mecanismo de dominação capitalista, o peso da opressão regional e LGBTQI na divisão e alienação da classe. Começamos a estudar o tema climático, indígena, das redes sociais e a entender em que país vivemos. Voltamos a nos ver como latinoamericanos.

Em escala histórica, o século 20 e este primeiro quartel do século 21 não são grande coisa. Os primeiros embriões da burguesia surgiram no século 13. Ela levou cerca de 400 anos para fazer sua primeira revolução e mais uns 200 para consolidar seu poder e seu projeto de sociedade. Retrocedeu, avançou, retrocedeu novamente, venceu finalmente, foi enfrentada pelo proletariado, sobreviveu, segue dominando. Isso consumiu algumas gerações. As grandes transformações históricas são assim. São revolucionários aqueles que fazem e vivem a revolução. Mas também o são aqueles que lutam por uma revolução futura porque não lutamos por nós. Lutamos por essa incrível experiência cósmica chamada humanidade, que ocupa um tempo muito maior do que o das nossas vidas. Essa é a dimensão do nosso projeto. Nos tornamos humanos no dia em que, ao invés de agarrar a presa com nossas próprias mãos, como ditava nosso instinto, nos sentamos para lascar uma pedra e produzir uma ferramenta mais adequada e eficiente. Ser humano é isso – é preparar o futuro. Abandonar o paradigma da “crise de direção” é o primeiro passo para seguir o caminho preparado por aqueles que vieram antes de nós e que nos mostraram tanto.

Notas

1 Todas as citações do Programa de Transição são da edição do Instituto José Luís e Rosa Sundermann, de 2004.