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Colunas

Relato 20: “O que é uma boa Redução de Danos”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

por Alison Ferreira Dos Reis

Relato extraído do livro: Luta Antimanicomial na Prática, disponível gratuitamente.

Olá, me chamo Alison, sou trabalhador do consultório na rua, e antes mesmo de ser trabalhador já vivia em prática a trajetória de vida nas ruas. Já fiz uso de várias substâncias, coisas que não faço mais, substâncias como thinner, cola, crack, coisas que realmente rola nas ruas, mas igual escutei uma vez de um usuário: tudo na vida a gente leva como aprendizado, e não é uma coisa que eu me envergonhe, pois, independente de morar nas ruas, as pessoas tinham que ter meios, e fazer certos movimentos para se adquirir dinheiro. Mas nem sempre a galera adquirir dinheiro de forma correta mais isso era particular deles e inclusive na rua para se ser aceito em uma turma é bom a pessoa sempre colaborar com o próximo, não se envolver demais nos corres dos amigos; pois tudo na vida tem suas consequências, né? Benignas ou malignas, eu já dormi na Praça da Estação, viaduto Santa Tereza, Praça da Rodoviária e também fiquei por muito tempo transitando pelas ruas do bairro São Paulo que foi o bairro em que conheci o atendimento do consultório na rua. Na primeira vez confesso achei meio estranho aquele pessoal de branco me fazendo um tanto de pergunta, mas era uma galera que, ao estar do lado deles, você por alguns momentos conseguia esquecer o uso da substância e através deles conheci a redução de danos.

 O que é a redução de danos? É um conjunto de estratégias que visa minimizar os danos causados pelo uso de diferentes drogas, sem necessariamente ter de se abster do uso. Após um longo tempo fazendo uso de crack pelas ruas de Belo Horizonte, um dia decidi deixar de fazer uso da substância, foi aí em que abracei as propostas pelo consultório e pude perceber que realmente se seguir aquilo que as meninas de branco falam, você consegue voltar a se organizar novamente para sair das ruas e voltar a ter uma rotina comum. A primeira coisa em questão foi minha documentação, por estar na rua e por várias vezes me mover de maloca, em uma dessas perdi minha bolsa com todos os documentos; aí a assistente social Brenda e toda a sua equipe de profissionais foram me ajudando, nem sempre eles podiam me acompanhar por trabalhar no período da tarde, mas a pessoa realmente tem que começar a fazer movimentos também, pois fica difícil ajudar uma pessoa que não quer sair ao menos do lugar. Quando ela não podia me acompanhar me fornecia os vales transportes, a primeira coisa foi tirar minha certidão de nascimento para em seguida estar tirando a identidade, já com a certidão de nascimento na mão e a identidade já com data para ser entregue por orientação da Brenda voltei no CREAS que era na avenida Cristiano Machado, mas é um lugar que dava uma fila bem grande e por isso teria de chegar cedo. Quando cheguei lá fui bem atendido pela moça que atendia a galera da rua, ela me fez uma entrevista de perguntas e me orientou sobre uns direitos que tinha e não sabia, eu juro que eu não sabia que morador de rua tinha direito ao bolsa família e o bolsa família realmente foi importante para a minha saída das ruas, pois você já ter uma pequena renda mesmo que seja no final de mês já ajuda demais. Ai ela também fez minha inscrição no CadÚnico. beleza já recebia auxilio e já tinha documentação em mãos coisa que me possibilitou estar dormindo no abrigo São Paulo, chegava ao abrigo jantava, tomava um banho quente e graças ao abrigo já não dormia mais nas ruas. Mas no abrigo há horários como de desligar a televisão, e horário para desligar o chuveiro, inclusive tinha hora de levantar também e no tempo que frequentei ao abrigo, às 6 da manhã todos tem de estar já fora das dependências, depois de ser ofertado o café da manhã, coisa que ajuda bastante pois alimentado, se pensa melhor como fazer para arrumar dinheiro. Junto com o dinheiro do auxílio mais o dinheiro que fazia coletando reciclagens e com ajuda de uns amigos do bairro São Paulo tipo Jefim, Doquinha, o ferro velho, a Mirian, o Vanderlei pedreiro , os Bahianos e várias outras pessoas que me orientavam e inclusive se ofereceram para me ajudar a guardar dinheiro, pois mesmo morando no abrigo seria bom ter alguém que eu pudesse confiar para guardar valor em espécie, pois, por ser negro e conviver em meio as ruas constantemente, era abordado pela polícia, e sabemos que nem sempre eles são compreensivos com a população de rua. E depois de muita luta conseguir juntar uma quantidade de dinheiro razoável, nessa parte veio o Vanderlei que me via sempre em meio as lutas, ai contei a ele sobre o desejo de sair das ruas e fazer um pequeno barraquinho para mim na Vila Andiroba, pois eu já tinha conseguido a autorização da comunidade né, esse grande amigo me falou: “faz o dinheiro do material que eu vou construir pra você.” Eu brincando com um amigo, rompi os ligamentos do joelho esquerdo e, segundo o médico da Upa Norte, eu teria que operar para fazer os ligamentos do joelho, coisa que seria mais ou menos 6 meses de recuperação. Pronto agora estava morando nas ruas e sem nem poder colocar a perna esquerda no chão, foi uma parte bem complicada viu? Mas pude contar com vários amigos da vila, vários moradores, muitas pessoas do lugar se comoveram com minha situação e viram que não estava sendo fácil, pois agora com os ligamentos rompidos, já não conseguiria acessar o popular para estar almoçando. Graças a solidariedade de Dona Mirian do ferro velho, negão, Jefim, Mirian do Boi, Cecilia ex-moradora da vila e mais o povo da doação, tipo o evangelista cadim que sempre estava com projetos sociais ali, se faltou um almoço ou janta foi por pouco tempo. Galera do consultório na rua Nordeste arrumaram uma muleta para estar me locomovendo, o povo do abrigo São Paulo que me fornecia o banho a janta e, também, me ofereceram para ficar de permanecia dia por lá, mas mesmo sem fazer cirurgia pulei essa fase após 2 meses sem nem o joelho conseguir firmar. Meu joelho melhorou e foi onde pude voltar a dar seguimento ao meu plano de sair das ruas, e vou ser sincero, não fiz a cirurgia e com isso não posso mais fazer coisas como jogar bola, correr por longo tempo, pular de lugares altos, mas conseguia me locomover. Devagarzinho, após um ano difícil, consegui construir minha casinha, levantando cedo pra trabalhar de servente, às vezes no corre das bala no centro e também com a ajuda do auxílio. No começo em que estava deixando a substância, me envolvi em outra, mas agora essa já era uma droga lícita (Álcool), onde através de vários dias usando álcool associado ao uso do cannabis conseguir deixar a substância. É coisa que temos que superar dia após dia, e mudar a rotina também é uma tática importante para não estar regressando ao uso, e agora como já tinha um pequeno barraco já conseguia me organizar, comprar minhas coisinhas, foi maior alegria para mim voltar a cozinhar em casa, pois quando comentava com as mulheres que sabia cozinhar, muitas riram. Agora que tinha casa, um amigo meu junto com toda essa galera que se chama Hudson que me viu lutando, lutando, pra ver se a vida melhorava falou comigo: “Faz sua casinha que assim que você acabar eu te arrumo um emprego.” Eu após anos nas ruas vivendo só de bico, um emprego seria tudo o que queria para voltar a viver uma vida comum, e realmente ele me arrumou um emprego de ajudante em uma empresa e também fiz diversos bicos com ele de gesseiro. Ele me apresentou um rapaz chamado Gustavo; um rapaz super gente boa que estava precisando de ajudante de obras e bastante simpático me chamou para estar trabalhando com ele e sua equipe na empresa Feito à Mão, que faz serviços dentro dos prédios do TER. Ali fiquei por 3 meses da minha vida, e super gostava de trabalhar lá pois a galera é da paz, indiferente de trabalhar pesado, a galera é todo mundo brincalhão e bastante unido, coisa que fez me sentir super acolhido pela aquela galera. Até que um dia aquela assistente social da equipe nordeste quem me ajudou, me ligou em um dia de trabalho no TRE e me perguntou se eu teria interesse em trabalhar como redutor de danos. Eu disse a ela que teria interesse sim e que seria uma honra estar trabalhando no consultório na rua. Após esse contato, ela me orientou a estar entregando ela um currículo meu caso eu tivesse em mãos, assim ao final do dia fui ao encontro dela para estar entregando o currículo e, após duas semanas, fizeram o contato comigo para estar participando de uma seleção para redutores de danos, eu ainda nem tinha ganhado a vaga é só de participar já estava super feliz, além de viver a redução em partes, fui atrás de mais conteúdos, procurei vídeos, vi matérias na internet com grandes redutores, até que então chegou o dia! Me pediram para estar comparecendo a regional noroeste e lá estava, calmo, tranquilo, beleza, cheguei em frente as moças que estavam no dia, e aí a entrevista fluiu tive de responder umas perguntas, responder como eu conheci a redução de danos e o que eu entendo de redução de danos. Rolou um papo bem tranquilo viu, aí, após uma semana e meia, eu recebi a ligação da coordenação do consultório me parabenizando pois eu tinha ganhado a vaga. Aí IRMÃO, não sabia se ria, se chorava, se virava cambalhota, a alegria era nítida em minha face viu, de ex-usuário acompanhado pelo consultório, eu estava me tornando um profissional. Hoje sou trabalhador das ruas, ainda posso falar que a cada dia aprendemos um pouco com a galera, as trajetórias de vidas não são iguais, as dificuldades vão de pessoa pra pessoa. Quem acha pra mim que população de rua é tudo igual, não sabe o que se passa e não tem nenhum pouco de empatia com a dor do próximo, pois como eles estão nessa situação hoje, eu já estive um dia, e se me perguntar se eu realmente acredito na redução de danos eu afirmo com certeza de que é possível sim. A Redução de Danos é assim:  através de intervenções, das orientações, dos conselhos, da arte educação, da conversa com a galera e a entrega de insumos é importante demais. Para realmente vermos o serviço em efeito, precisamos estar nas cenas de uso sim, nos lugares onde a galera está, mas não com um olhar de superioridade, mais sim com um coração acolhedor sabendo que a grande maioria da galera está precisando de pessoas para ajudarem, não para apontarem o dedo. Voltando o olhar para o nosso serviço, o Consultório na rua, somos um serviço da Atenção Primária que atende a população de rua, ofertando o cuidado em saúde, e o direito à cidadania. Levamos usuários em consultas, para buscar medicação, acompanha em consultas, e com o apoio de outros serviços da rede, conseguimos estar ajudando a galera da rua a estar tirando a documentação, para que eles como eu possam estar acessando abrigos, ter direito a benefícios governamentais para realmente a galera ter uma vida com menos luta, pois em dias de chuva e de frio enquanto estão todos em suas casas, tem muitas pessoas embaixo de marquises e viadutos que realmente precisa da gente. Por isso, cada dia mais me sinto gratificado em estar fazendo pelo próximo hoje o que fizeram por mim no passado. Não medirei esforços para estar ajudando essa galera, pois eu acredito, já conheci diversas pessoas que faziam uso de substâncias e conseguiram sair. Pra mim quem fala que todo mundo é igual e que todo mundo não tem jeito, está sendo é preconceituoso, e assim vamos atendendo essa Belo Horizonte andando por viadutos, entrando em cenas de uso, mas cada vez mais ofertando o cuidado e acreditando na potencialidade de cada ser.