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Colunas

Relato 21: “Luto para que as comunidades terapêuticas sejam fechadas de forma sistemática e emergencial”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Kleidson Oliveira 

Me chamo Kleidson Oliveira sou um homem negro, de 45 anos, que mora no Distrito Federal. Antes de chegar até aqui tive uma passagem em situação de rua. Na época, procurei tratamento para conseguir sair da dependência química, sendo que uma das tentativas foi em uma comunidade terapêutica, numa cidade chamado Coronel Fabriciano. Lá eu descobri que eu era apenas mais um dos caras que ia trabalhar na manutenção daquele complexo de fazenda. O individuo que era o dono da comunidade terapêutica disse que eu tinha que trabalhar, minha função era arrancar o mato na beira da BR, plantar dentro da fazenda e fazer trabalho pesado, cavar buraco para cerca, essas coisas. Ele me disse que eu tinha que fazer isso, que era uma missão de deus eu viver do meu suor. Perguntei para ele se eu ia ter diária e ele disse não, que lái não teria diária, que seria um trabalho por amor. Respondi que então eu teria que sair de lá porque eu não aguentava mais aquilo não, até porque eu tinha ido  morar na rua porque não estava dando conta de trabalhar pesado. 

Mesmo assim, tive dificuldade de sair daquele lugar, chamado Fazenda Leão de Judá. Fiquei por volta de quase 20 dias naquele lugar até que eu consegui fugir, pegar carona num caminhão que me levou de volta para Belo Horizonte. Fiquei com medo de buscar tratamento. Recaí de novo, não conseguia sair do vício, fiquei assombrado com toda a Kombi de igreja que chegava no centro de Belo Horizonte. 

Um dia, um agente comunitário de saúde passando por mim falou desse tal de CERSAM, os CAPS de Belo Horizonte. Falou do tratamento que tinha lá, da forma de cuidado e eu quis experimentar uma vez. Então, eu fui para um CERSAM e lá eu realmente fui acolhido de forma humanizada, com pessoas que dialogaram comigo, num local onde passei a ser cuidado. Uma vez acolhido, eu consegui ficar 30 dias sem o consumo da substância conhecida como crack e sem beber e usar cigarro. Isso me deu força para me reestruturar fisicamente, psicologicamente e também para colocar em prática objetivos que, há muito tempo, eu tinha abandonado, como ter alguma renda. 

Eventualmente eu me afastei da cidade, consegui comprar um veículo e andar de cidade em cidade, de estado em estado. Não era um veículo que consumia muito combustível, então eu dava conta de andar cerca de 500 km. Ficava migrando, fugindo da droga, procurando trabalhos que pudessem me ajudar a distrair a mente e fiz a redução de danos a base de maconha, da qual fiz uso nos momentos mais angustiantes que a abstinência me causava. Dei uma volta grande no Brasil e quando eu estava voltando para Belo Horizonte, passando pelo Distrito Federal eu sofri um acidente. A partir daí eu conheci pessoas e acabei decidindo ficar por aqui. 

Para não cometer os mesmos erros do passado eu procurei ajuda do CAPS de Brasília, onde eu fui encaminhado para o CAPS do Guará. Passei 3 anos lá fazendo acompanhamento e aprendi várias atividades como roda de conversa interativa, horta e artesanato. Gostava muito de fazer era a oficina da horta, me ajudava a fazer renda e ajudava os companheiros a terem dinheiro para passagem para fazer as atividades no CAPS. Fui me envolvendo cada vez mais, aprendendo sobre as formas de cuidado, até que um dia chegou um momento que eu estava bem reabilitado e precisava ser reinserido na sociedade. Então o CAPS me levou para uma capacitação que eu consegui concluir o primeiro e segundo grau e fiz cursos profissionalizantes, entre eles o curso de facilitador. 

Aí eu consegui coordenar rodas de conversa com usuários da rede e me inserir no território com essa metodologia, fazendo com que os indivíduos do território tivessem acesso aos cuidados no CAPS. Eu fui evoluindo, fui participando de atividades, de reuniões relacionandas com a saúde e a militância, foi uma das formas que eu encontrei de conseguir  me manter distante das drogas. 

Apesar disso, a militância me trouxe alguns problemas, pois eu chegava para dizer sobre a saúde mental que eu queria, as pessoas me perguntavam quem eu era, eu falava que era usuário do CAPS, então eles tentavam me tratar mal ou me hostilizavam nos locais. Por isso, decidi assumir posições sociais como conselho de saúde, coordenação de movimento social, me inseri em vários movimentos sociais que me davam retaguarda e ficava protegido contra os ataques das pessoas que queriam desmontar essa Rede de Atenção Psicossocial. A partir daí eu fui cada vez mais evoluindo, evoluindo, e hoje eu sou uma das pessoas aqui no DF que briga pela saúde mental humanizada, pelo fim dos manicômios e pela ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). 

Um problema que nos atrapalha muito é que as igrejas, principalmente as evangélicas, deixaram de orar a deus e passaram a explorar o público usuário de droga e em situação de rua através de comunidades terapêuticas, ganhando muito dinheiro, ocupando cargos públicos, cargos políticos, gerando uma rede de desmonte da Atenção Psicossocial do país. Eu vendo essa situação e vendo a metodologia deles, resolvi fazer o enfretamento e hoje eu brigo para que as comunidades terapêuticas, que são manicômios, sejam fechadas de forma sistemática e emergencial e que sejam abertos serviços substitutivos. Só assim a população consegue ser atendida mais próxima de casa e de forma humanizada, evitando que os individuos sejam encarcerados e que a indústria lucre com o sofrimento dessas pessoas. Hoje sou um militante da saúde mental e da população em situação de rua, que é uma população muito esquecida e, às vezes, maltratada por indivíduos preconceituosos.