Com essa simples pergunta termina o áudio de um amigo, sobre o projeto de professores e estudantes da Escola Guignard – Escola de Artes Plásticas da UEMG. O áudio terminou e eu não tenho resposta até o momento, mas falaremos dele mais a frente. Só gravem as últimas palavras: “É bonito a palavra? Me dá outra palavra, pelo amor de Deus!”
Desde o dia 7 de novembro está acontecendo a XX Mostra Interna da Guignard1, a primeira desde o fim da pandemia, e a proposta dessa vez é diferente das anteriores. Natural: o mundo de 2024 não é o mesmo de 2019. Isso se reflete não só na organização, mas também nos trabalhos apresentados. Ao invés de ocupar a galeria, o prédio foi dividido em 80 lotes de diversos tamanhos, distribuídos entre estudantes da Escola.
A diversidade de técnicas apresentada nas 80 propostas de ocupação do espaço converteu a Escola em um grande caleidoscópio, oferecendo ao espectador uma experiência estética única: gravuras, pinturas, esculturas, instalações, trabalhos individuais e coletivos dividem o espaço.
O trabalho da artista Marthinica, Nada é uma Atoíce, faz parte de uma intervenção já realizada há alguns anos em diferentes espaços da cidade de Belo Horizonte, como o Hospital Galba Veloso, a Faculdade de Medicina da UFMG e praças públicas, com um banco e uma plaquinha em que se lê Lugar de Fazer Nada, somos convidados a nada fazer.
Curiosamente, ao lado da obra que nos convida a praticar o ócio contemplativo – ou não – do espaço e da vida, encontra-se a intervenção Não Feche os Olhos, que nos encoraja a fazer tudo. De autoria do EncorAge Coletivo, formado por 3 artistas, em um mural de 150x100cm construído em serigrafia, xilogravura e impressão fotográfica, estão à disposição cartões postais e zines, convidando todos a retirar, assinar e enviar pelos Correios. A ação funciona como um abaixo assinado postal, endereçado ao Itamaraty, pedindo rompimento de relações diplomáticas e comerciais com o Estado de Israel. É um CHAMADO às pessoas para a ação e também ao trabalho de base, quando convida a pegar mais postais, dialogar e convidar seus amigos e conhecidos multiplicar a ação.
Encontrando palavras para um projeto sensível
Concomitante à abertura da mostra, foi realizada a Semana Guignard: um projeto de Extensão em que a faculdade fica aberta a projetos para a população. Uma das atividades, proposta pelo professor Paulo Barbosa e seus alunos da disciplina Arte na Atualidade, chama-se Faixa de Gaza. Cinquenta metros de tecido branco, no qual somos convidados a escrever o nome das crianças mortas pelo estado de Israel (a partir de uma lista assustadoramente longa disposta junto à faixa.
Esse trabalho mexeu comigo de tal forma que decidi criar um pequeno vídeo e compartilhar com minha pequena rede de contatos. Logo após isso, um amigo me manda o áudio.
Em um tom de voz baixo, muitas vezes com pausa, uns palavrões, uns suspiros e toda uma correnteza de sentimentos, diz mais ou menos assim: “não faz isso, é de doer o coração – digno, não tenho condições de fazer, mas digno – vou divulgar, bonito”. Ele para, pensa se questiona: “será que bonito é a palavra? Pelo amor de Deus, me dê uma palavra pra isso…”
Escrever nessa faixa não é uma tarefa simples, não no sentido fiel da palavra, é só pegar uma caneta, escolher um nome e escrever, marcando na planilha o nome escrito para não haver repetições. Mas a caneta pesa, o coração aperta e para alguns as lágrimas caem – e é bom que assim seja, caso contrário algo em nós estaria morto. Eu não tive coragem, ainda, mas terei. Não é uma tarefa alienada, ninguém vai lá porque necessita de nota, vai porque vai, (vai porque se importa, vai porque foi tocado), simples assim.
Uma avalanche de imagens vem à minha mente. O que Nihad seria? O atleta do século XXI? Maior que Marta, Pelé e Maradona? A maior mente de nosso tempo? Maior que Marie Curie e Einstein? Cineasta? Artista – poderia superar os girassois de Van Gogh? superaria os poemas de Patrícia Galvão? Não saberemos…
Ayala gostaria de sentar em uma praça e não fazer nada? Gostaria de em seu ócio contemplar a vida? Ou se envolveria em alguma luta local ou até mesmo internacionalista? Ninguém saberá a resposta, porque roubaram a possibilidade desse pequeno ser, de menos de um ano de idade, de viver.
Todas aquelas crianças, cada nome poderia ter um futuro, um googol2 de possibilidades, e há uma estranha sensação de que tudo isso foi por nada. Quando digo por nada, não que eu ignore as verdadeiras razões, eu as conheço, eu e todo negro conhece: colonialismo, imperialismo, racismo, genocídio… tudo em nome do lucro. Isso é nada perante a vida. Mas para o Sionismo isso é tudo e está acima da vida.
No instante que tento repetir novamente o ato de pegar a caneta lembro que nem todas as crianças morreram com as bombas. Há aquelas que estão cegas, queimadas, formando uma legião de mutiladas. Lembro dos hospitais destruídos e que a ausência de cuidados médicos leva a mais mortes. Lembro dos muitos que estão debaixo de escombros… então, a mão volta a tremer e o coração aperta, é difícil.
O ódio sionista ao futuro concentra suas bombas e drones de forma eficaz em maternidades, escolas e universidades, querem exterminá-los. Não por um ano, mas por 76 anos – é essa a duração do genocídio povo palestino- e só agora alguns, poucos ainda, abriram os olhos.
Na tentativa do estado de Israel promover o apagamento de sua existência, o projeto Faixa de Gaza busca eternizar os mártires palestinos. Se me permitirem ser um pouco poético, eles morreram sem conhecer o cruel mundo que o capitalismo construiu. Desconheceram o que é rancor. Seus corações foram puros e, mesmo que tenhamos falhado em protegê-los, eles não se vingarão. Se tornaram anjos que nos protegerão.
Quanto ao maior feito dessa intervenção, me agarro como sempre à definição de Hegel de Arte: a manifestação do espírito humano, e, como Lucáks completa, espírito humano não na sua definição metafísica e sim em anseios históricos da humanidade: a vida, o maior de todos os anseios, tão fortemente atacado pelo atual genocídio – o primeiro transmitido ao vivo em nossa pré-história3. É o fato de ser simples, mas com grande complexidade. A Faixa de Gaza da Guignard transforma alguns metros de tecido branco e uma caneta em algo impactante. Ela impacta porque ela é simplesmente tudo que nós somos: Humana.4
Comentários