“O projeto da tortura implica numa negação total – totalitária – da pessoa, enquanto ser encarnado.”
Hélio Pellegrino
Nesta Semana Santa aproveitei a temporalidade litúrgica para meditar a partir do livro “Brasil, nunca mais!” publicado em 1985 e o texto bíblico da Paixão de Cristo. Encontramos no anexo II do livro um texto ainda de grande atualidade no Brasil como esse em que vivemos. Trata-se de: “A tortura , o que é, como evolui na história”. A reflexão do texto tem como objetivo atingir o aparelho repressivo de tortura montado pela ditadura militar pós-64. Sabemos que um conjunto de bispos liderados por Dom Helder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns, denunciaram pelo mundo a tortura praticada no Brasil pelos militares em seus porões.
Todo cristão, sabendo ou não, é seguidor de um prisioneiro político que foi torturado até a morte. Tortura essa com requintes de crueldade, não esqueçamos. Isso tudo registrado em detalhe nos Evangelhos:
“Puseram-lhe uma coroa de espinhos que haviam trançado… Batiam-lhe na cabeça com um caniço, cuspiam nele… Depois de zombarem dele, tiraram-lhe a púrpura, vestiram-no com as vestes dele e conduziram-no para fora para crucificá-lo.” (Mc. 14: 16-20)
Da tortura física à psicológica, vemos aqui. Sabendo que “Jesus foi humano em tudo…” como diz o próprio texto bíblico. Não foi uma encenação como pensam alguns religiosos. Foi real. Ou não fazia sentido algum descrever em detalhes. Sabemos que a repetição de anos e anos da “Paixão de Cristo” nas igrejas, cinemas e teatros, fez com que a dimensão martirial da tortura fosse perdendo seu impacto inicial e sua brutalidade. Mas o fundo da narrativa não se perdeu como “lágrimas na chuva”. O fato é que Jesus foi torturado e conduzido a morte sob tortura.
Para nós deveria ter um significado radical: ser contra a tortura é dever de todo ser humano que se diz cristão. Não tem meio termo: seguir Jesus é ser contra toda forma de tortura. Mas tem um dado importante para se entender a tortura perpetrada contra Jesus. Ela foi consequência da opção do projeto histórico do carpinteiro de Nazaré. A tortura romana que foi praticada e exposta publicamente em Jesus vem como uma reação violenta à práxis de Cristo. A práxis histórica de Jesus de Nazaré era insuportável para os poderes na palestina do Século I.
Da Inquisição (movimento político-religioso que ocorreu entre os séculos XII ao XVIII na Europa e nas Américas, cujo objetivo era buscar o arrependimento daqueles considerados hereges pela Igreja e condenar as teorias contrárias aos dogmas do cristianismo) às ditaduras espalhadas pelo mundo; a Igreja cristã apoiou quase tudo. Não se deve esconder isso. Assumir e fazer autocrítica é o melhor que os cristãos podem fazer diante do apoio no passado e no presente que suas igrejas emprestaram aos regimes que praticavam torturas.
Também é importante destacar a luta das várias igrejas cristãs contra a tortura. Nas denúncias e auxílio à implementação de grupos de direitos humanos que enfrentavam a situação da tortura.
No caso brasileiro no período pós-1964, onde foi implementado de forma autoritária um golpe militar, o catolicismo romano exerceu um papel de destaque na defesa de pessoas torturadas, na criação de comissões de direitos humanos e nas denúncias públicas da prática de tortura dentro e fora do Brasil.
Um projeto dos mais significativos na luta contra a ditadura brasileira e na organização da memória de tempos nefastos em que a tortura foi prática constante e profissionalizada, foi o “Brasil, nunca mais”.
O “Projeto Brasil: Nunca Mais” foi desenvolvido por Dom Paulo Evaristo Arns, pelo Rabino Henry Sobel, pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright e equipe que, clandestinamente, atuou entre os anos 1979 e 1985 durante o período final da ditadura militar no Brasil na organização e catalogação de documentos relativos a tortura e assassinatos do regime ditatorial. Como livro foi publicado no ano de 1985 e gerou uma importante documentação sobre a história do Brasil contemporâneo e a terrível experiência da ditadura para o país.
Esse sistema perseguiu, exilou, assassinou, torturou, fez desaparecer corpos, concentrou renda, criou uma escalada inflacionária enorme e empobreceu ainda os mais pobres.
Concluímos nossa meditação afirmando o seguinte: Jesus foi preso, torturado e violentamente assassinado. Todo ser humano que vive a brutalidade da tortura, participa consciente ou inconscientemente da “Paixão de Cristo”. É uma situação de fé, mas é acima de tudo uma condição antropológica. A tortura é por natureza uma ofensa ao Cristianismo vivido verdadeiramente como seguimento a Jesus. Cristão que apoia tortura se coloca fora da comunhão eclesial.
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