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O silêncio da CNBB sobre os 60 anos do golpe de 1964

Domínio público

Romero Venâncio

Romero Venâncio é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor da Universidade Federal de Sergipe (Departamento de Filosofia e Núcleo de Ciências da Religião). Atua em pesquisas sobre: Marx, Sartre, F. Fanon, Enrique Dussel e o pensamento Decolonial Latino Americano.

A reportagem é de Eduardo Campos Lima sobre: *”Episcopado brasileiro ignora 60 anos do golpe militar”*, publicada por Crux/IHU, nesse abril de 2024, passou despercebida ou quase. Uma pena. Mas merece reflexão. O autor começa com uma histórica lembrança:
“Há dez anos, no 50º aniversário do golpe, a CNBB divulgou um comunicado no qual dizia às gerações pós-ditadura que deveriam permanecer ativas na defesa do Estado de Direito e reafirmava o compromisso da Igreja com a defesa de democracia participativa e justiça social para todos”.

Aconteceu algo com o episcopado brasileiro depois desses dez anos passados? com certeza. Mudou muito a “cara” do episcopado brasileiro nos últimos anos e ficou cada vez mais distante os ecos de bispos profetas, corajosos e inspiradores. Neste ano de 2024, nada no site da CNBB ou nas redes digitais da entidade. Um silêncio tumular sobre o tema. A CNBB tem história no tema “Golpe de 1964 e sua herança”. Recobremos um pouco da memória.

Em 1964 a Igreja Católica apoiou o golpe. Rondava nos setores médios brasileiros o velho anticomunismo, que foi crescendo ainda mais com o governo João Goulart. As greves, o crescimento do movimento operário organizado em várias capitais do Brasil, as ligas camponesas, o movimento estudantil e o destaque para alguns intelectuais oriundos das esquerdas preocupava a grande ala conservadora da Igreja e os movimentos reacionários de classe média. Embalada por estes discursos contra o comunismo, a “ameaça” de Cuba, os movimentos de guerrilha que cresciam na América Latina, levaram a Igreja Católica a tomar posições bem conservadoras.

Ainda em 1964, mais precisamente no dia 29 de maio de 1964, a Igreja através de um grupo de bispos da CNBB, tornava público um histórico documento “Declaração sobre os acontecimentos de abril e maio de 1964”. Os prelados católicos assumiram uma posição de apoio aberto e categórico ao golpe de 1964: “atendendo a geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as forças armadas acudiram a tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra (…)” (declaração de Bispos da CBNN na Revista Paz e Terra, 1968: 160).

As mudanças em relação a ditadura na Igreja Católica no Brasil, vieram a partir de 1969. Depois do AI-5 e o total fechamento do regime ditatorial, a Igreja foi atingida e em cheio. Desde 1964, quando chegou em Recife, Dom Helder Câmara estava na qualidade de importante liderança da Igreja em sua ala progressista. Crítico dos desdobramentos do golpe e de como crescia o regime para uma ditadura, Dom Helder foi um dos primeiros a mudar sua posição sobre os militares. Desde 1967, vinha falando sobre a tortura nos porões da ditadura e estava “manchando” a imagem do Brasil e dos militares nos países onde era convidado e fazia discursos. O incômodo dos militares com Dom Helder e sua influência dentro da Igreja era notório e público, inclusive alguns generais buscavam outros bispos para reclamar. Tudo isso está bem documentado no livro “Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura” do brasilianista dos EUA Kenneth Serbin. Esse é um livro fundamental para entender as relações entre os bispos e os militares do poder no Brasil pós-64. Básico em nossa pesquisa e farto em fontes e prudente nas análises, o livro tornou-se uma referência para os pesquisadores na área.

A prisão e tortura sobre a Madre Maurina Borges em Ribeirão Preto, o assassinato do pe. Henrique no Recife e a prisão e tortura que sofreram um grupo de frades dominicanos fez a Igreja mudar radicalmente. A partir desses fatos, a Igreja Católica mudou de posição sobre a ditadura e assumiu um lugar de combate. A CNBB e Dom Helder Câmara junto com Dom Paulo Arns da Arquidiocese de São Paulo assumiram a liderança nesse combate. Documentos, análises de conjuntura, Campanhas da Fraternidade, comissões de justiça e paz na defesa dos direitos humanos passaram a ser a linha da Igreja nos anos 70.

Um legado importante para pensarmos hoje, 2024, os 60 anos do golpe de 1964. Fundamental a memória dos acontecimentos, dos personagens, das lutas, das torturas covardes, da luta pela democracia, dos exílios, das mortes e dos corpos ainda desaparecidos.
E onde anda a CNBB em dias atuais? Silenciando diante da sua história, de seu legado e diante dos 60 anos do golpe e da ditadura.

Nem a histórica posição da entidade os bispos querem recuperar. Lamentável. Mas para não ser injusto com alguns bispos ainda na linhagem profética, lembro aqui Dom Vicente Ferreira que em suas redes pessoais lembrou a data e divulgou o livro “Brasil, nunca mais” acompanhado de um texto. Merece destaque. Sei que temos mais alguns bispos que têm compromisso com causa dos pobres e oprimidos neste país e jamais defenderiam golpe ou ditadura alguma. Sei e afirmo a dignidade de um Dom Joaquim Mol. Sabemos disso. Mas o incômodo silêncio num contexto de avanço de uma extrema direita (inclusive dentro da Igreja), nos deixa triste e até envergonhados de nossos pastores. Nossos bispos sabem da frase evangélica:

“Se calarem a voz do profeta
as pedras falaram…”
… e arrematava o poeta Carlos Drummond:
“Não sou pedra
logo, me revolto…”

Em tempo!