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60 anos do Golpe de 1964: falta ainda muito. Justiça de transição no Brasil!

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

O conceito de “Justiça de Transição” surgiu nas décadas de 80/90, nas ciências políticas e Direito, com ênfase nos Direitos Humanos, na esteira de diversos processos de redemocratização na América Latina, tendo, do ponto de vista jurídico-político, como importantes referencias no Brasil, a meu ver, a criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, nos termos da Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995, a Comissão Nacional da Verdade, instituída  pela Lei 12. 528 de 18 de novembro de 2011e a Comissão Nacional de Anistia, criada com a aprovação da Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, que regulamentou o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), garantindo o direito de reparação àqueles que, no período que vai de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, sofreram violações  por motivação política, o que se tratou, no terreno constitucional, de um importante  mecanismo  de justiça de transição, ainda que limitado  ao campo da reparação, sendo que o  necessário mesmo seria, naquele processo constituinte, ter conseguido fazer  constar no texto da nova Constituição brasileira, além da reparação, o dever do Estado em apurar e punir todos os golpistas  civis e militares de 1964!

Já no plano internacional, o Documento intitulado “O Estado de Direito e a Justiça de Transição em Sociedades em conflito e em pós-conflito”, Resolução S/2004/616, é a referência do Conselho de Segurança da ONU  em se tratando de justiça transicional que, em breve síntese, consiste em um conjunto de mecanismos e ações (estatais ou não) para superação de um legado autoritário resultante de golpes de Estado, conflitos  e rupturas institucionais em uma determinada sociedade, como foram, no caso brasileiro, os golpes de 1937(Estado Novo) e 1964, que neste 1/4/2024 completa seis décadas.  No Brasil, este debate adquiriu mais força ainda  nos anos 2000, intrinsecamente vinculado à promoção de direitos humanos, em torno principalmente da exigência de responsabilização dos autores de crimes da ditadura civil-militar (1964/1985) e de medidas como a criação da Comissão Nacional da Verdade, acima citada, durante o governo Dilma,  passando a ter maior destaque, (ainda que com muitas limitações), a partir dos Governos do PT, sendo certo dizer que uma das motivações, por parte dos que tramaram o golpe judicial-parlamentar que depôs a ex-presidente Dilma Rousseff  foi também  estancar as tentativas de  apuração dos crimes dos militares envolvidos no golpe de 1964.

Como contraponto, os setores civis-militares defensores do golpe de 1964 intensificaram a negativa de seus abusos e crimes, chegando mesmo a simplesmente negar  que o Brasil  tivesse vivido uma ditadura militar, discurso que, na verdade, consiste em uma das  diversas  manifestações do propalado negacionismo, tão em voga, matriz  ideológica não somente daqueles  que pregam  contra as vacinas, ou insistem que a terra é plana,  mas também da política de direita e extrema-direita  que prega o “esquecimento” e, por conseguinte, a não responsabilização dos agentes envolvidos em atos de violações de direitos humanos.  E igualmente aplicam este mesmo método de “tudo negar” para ignorar notórias barbáries históricas cometidas contra negros, judeus, ciganos, como atualmente negam o genocídio de Gaza.

Buscando contribuir com este debate, Com o propósito de realmente levar a cabo uma efetiva justiça de transição, creio que   não  podemos nos ater somente ás medidas  de reparação individual das vítimas, por mais que  evidentemente sejam estas  muito importantes e devam prosseguir, mas precisamos avançar no tema da responsabilização das empresas que apoiaram a ditadura, como foi o importante inquérito da Volkswagen que tive a honra de ser um dos 32 subscritores do  pedido de abertura de inquérito civil público conjunto  perante o MPF, MPE-SP e MPT, juntamente com 10 centrais sindicais e, especialmente, do saudoso Advogado Modesto da Silveira,  em uma de suas últimas atividades de defesa dos  direitos humanos  antes de seu falecimento.   Com efeito, se não buscarmos a verdade sobre a real participação de empresas como VW, GM, Embraer, Mercedes Benz, Panasonic, CSN, Embraer, FSP, O GLOBO, FIAT, e tantas outras no que diz respeito ao financiamento, logística, suporte material e de pessoal, inclusive, na preparação e consumação do golpe empresarial-militar de 1964, todos nossos esforços não serão suficientes, por mais que abnegados. É desvendando o papel empresarial no golpe de 64 que podemos entender e explicar a atuação dos militares, e, por conseguinte, apurar suas motivações e o apoio e privilégios que desfrutaram durante a ditadura. E, com isto, exigir e fazer com que estas empresas venham indenizar também as vítimas e o próprio Estados pelos valores gastos, por exemplo, na concessão de indenizações pela Comissão Nacional de Anistia, que como bem sabemos, vive de “pires na mão” a cobrar recursos no orçamento para o pagamento as justas indenizações aos anistiados que ainda aguardam, há tanto tempo, estas reparações. E, por oportuno, acrescente-se que na recente tentativa de golpe de  8/1/24 tivemos a repetição, em escala de apoio empresarial e militar menor, do  que aconteceu em 64.

Por outro lado, além da punição de agressores, reparação das vítimas, a busca pela verdade e pelo resgate da memória, assim como reformas institucionais democráticas, para remoção do chamado entulho autoritário, é necessário também que sejam adotadas diretrizes e políticas de Justiça de Transição de cunho educacional, especialmente da juventude, destinadas à formação escolar e universitária. A adoção dos temas de memória nos currículos escolares consiste  em  indispensável antídoto contra o negacionismo, ao abranger a  História dos períodos de exceção, experimentados pelo país, e o ensino dos conceitos de Estado de Direito, Direitos Fundamentais e Humanos. Isso pode contribuir para formação de jovens com consciências democráticas, plurais, abertas ao debate de ideias, dotadas de espírito crítico, conhecimento do passado e engajamento nos processos democráticos.  O contrário será uma juventude sujeita a manipulações da extrema-direita, seja no campo público, como na política, seja no campo da vida privada, como na religião.

Certa é a importância dessa educação democrática que, como forma de impedi-la, uma das mais importantes campanhas da extrema-direita brasileira neste campo  é o movimento “Escola sem Partido”, além de todos os males á educação que o bolsonarismo nos legou durante o tempo que comandou o MEC, como, por exemplo, a promoção das escolas militares e as mudanças curriculares que restringiram os conteúdos de disciplinas de história, filosofia, sociologia.  Além de patrocinar cenas de violências contra professores nas escolas, invasões de salas de aulas sob o argumento de “fiscalização de professores comunistas”, chegou-se ao ponto de disseminar projetos de leis estaduais e municipais para supostamente “proibir a partidarização das escolas”. Tais projetos, ainda que inconstitucionais, serviram de instrumento para, em seu conteúdo, fazer também propaganda negacionista sobre regime militar brasileiro e tentar acuar os professores que ensinavam aos seus alunos o que realmente ocorreu durante a ditadura militar brasileira.

E ainda neste tópico sobre educação, faz-se necessário dar atenção ao ensino nas instituições militares, desde os Centros de formação de soldados, marinheiros, Escolas de Sargentos e sobretudo as Academias de formação de oficiais, sejam estas das Forças Armadas, sejam das Polícias militares e Bombeiros militares, onde se verifica muito intensamente a identificação com o discurso de extrema-direita que esteve no poder nos últimos quatro anos. Nesse contexto das instituições militares, a doutrinação golpista foi sempre beneficiada e viabilizada por todo o histórico de formação dos militares brasileiros, que até hoje aprendem de seus professores, como dogma, em seus variados centros de preparação profissional, os fundamentos e a ideologia da Segurança Nacional, a base teórica do intervencionismo militar em toda a América Latina, em nome da luta contra o “comunismo” e as esquerdas. Há de se rediscutir os currículos destas instituições de formação militar, inserindo em seus programas educacionais o tema da justiça de transição, pois, em caso contrário o que continuaremos a ver é a perpetuação do pensamento militar antidemocrático, sempre disposto a servir de instrumento para golpes civis-militares, quando não protagonizarem.

Além das medidas educacionais, as políticas públicas voltadas para recuperação e preservação da memória dos crimes das ditaduras consistem também em   um dos eixos fundamentais da Justiça de Transição. Sem elas, as demais iniciativas se perdem totalmente, pois o que legitima a Justiça de Transição é exatamente a repulsa e a decisão de superar o passado, que, por sua vez, deve estar bem documentado, narrado e vivo nas consciências atuais. A divulgação de depoimentos das vítimas, de agentes da repressão, os documentos comprobatórios de suas ações criminosas, ao lado da promoção de exposições, eventos culturais, oficinas reunindo vítimas, seus familiares e psicólogos, seminários, pesquisas acadêmicas, enfim, todas essas atividades são muito importantes no enfrentamento do negacionismo do golpe de 64, além da criação e manutenção de museus sobre o passado autoritário, como, por exemplo, a campanha pela transformação do antigo prédio do DOPS no Rio de Janeiro, Casa da Morte em Petrópolis, e outros locais usados pela  repressão  em espaços de memória.

Como visto, justiça de transição   é um tema muito amplo e complexo, no qual não há soluções fáceis, com muitos fatores que lhe dão origem e igualmente muitas formas e frentes de abordagem e aplicação, do ponto de vista não somente das esquerdas, mas de todos aqueles que, independentemente de diferentes visões de mundo, defendem liberdades democráticas, garantia plena de manifestação e organização (exceto para o fascismo). Assim como a ditadura militar foi um processo social-ideológico- econômico ainda replicante, a luta por sua total superação é outro processo, que, infelizmente, no Brasil está ainda incompleto, motivo pelo qual, aqui e ali costuma reaparecer, como recentemente assistimos no 8/1/2024.  Faz-se necessário cada vez mais que esta pauta seja incorporada ás agendas dos movimentos popular e sindical, pois ainda é um tema muito restrito ás entidades de direitos humanos e órgãos do Estado voltados para promoção de Direito Humanos.

Por fim, enquanto Advogado de Direitos Humanos e também  Anistiado Político, (tendo eu mesmo sido monitorado e detido ilegalmente quando, estudante, militava na antiga Convergência Socialista), tenho a convicção e experiência  de que este tema somente avança, na prática, quando  ganha as ruas e  setores da sociedade que possuem interesse em memória, verdade e justiça se mobilizam, enfim, quando há  cobrança aberta  e  ação coletiva organizada. Afora isto, a própria presença de Lula no Governo Federal não é garantia da plena efetivação de medidas transicionais, embora reconhecidamente em muito contribua para este fim, bem como mesmo em instituições como o MPF que vem realizando um  reconhecido   trabalho neste campo, sabemos que há muitas diferenças de compreensão sobre isto em seu interior. E a cúpula militar, como bem sabemos, segue refratária, em um comportamento que é uma mistura de   formação antidemocrática de seus comandantes com o sentimento de autoproteção. E definitivamente a elite nacional e transnacional que possui, de fato, o poder economico neste país não é a favor de revolver o passado ditatorial, até porque tem a plena consciência de que encontrará neste passado as suas  próprias digitais!