Entre os postos de guarda israelenses no norte da Faixa de Gaza, cujos soldados desfrutam de um suprimento constante de comida e água, vagam centenas de milhares de palestinos famintos e sedentos que subsistem com ração para aves, grama e água contaminada.
Não sabemos se observadores independentes, nem israelenses nem palestinos, serão capazes de determinar nos próximos dias o que causou a maioria das vítimas entre as pessoas que esperavam por caminhões de ajuda que transportavam farinha para a cidade de Gaza, na quinta-feira, 29 de fevereiro: se foram principalmente tiros israelenses ou, como afirmam os militares, uma debandada enquanto os habitantes de Gaza fugiam depois que os soldados atiraram para o ar e mataram ou feriram alguns que consideravam como ameaças.
Israel não está permitindo que jornalistas estrangeiros entrem em Gaza, tornando simples para ele descartar reportagens baseadas no trabalho de jornalistas palestinos como tendenciosas. Todas as agências das Nações Unidas são percebidas em Israel como colaboradoras do Hamas, então a afirmação de vários funcionários da ONU de que a maioria dos feridos que viram nos hospitais tinham ferimentos de bala também será colocada na categoria “tendenciosa”.
De qualquer forma, disparar contra multidões de pessoas que esperavam pela farinha desde antes da meia-noite mostra que os comandantes no terreno e em Tel Aviv não entenderam que centenas de milhares de palestinos em Gaza estão enfrentando o perigo de morte por inanição. Se reconheceram a gravidade da situação, aparentemente não a transmitiram a seus subordinados. Caso contrário, os militares teriam se preparado adequadamente para a chegada dos caminhões e instruído adequadamente seus soldados. Os comandantes não teriam permitido que seus soldados, protegidos por tanques e drones, interpretassem o trágico espetáculo de milhares de pessoas famintas e sedentas rodeando caminhões de ajuda como uma ameaça às suas vidas – se é que uma das versões do Exército de quinta-feira deve ser considerada crível.
A quebra na conduta dos soldados na quinta-feira – que terminou com a morte de 118 civis (a mais recente delas anunciada no sábado) é compreensível se os comandantes confiarem apenas nos meios de comunicação israelenses. Estes raramente relatam o que não pode ser justificado, como ataques a terroristas e mostram tolerância e compreensão por todas as cenas em que soldados humilham e abusam da humilhação dos palestinos postadas nas redes sociais pelos próprios soldados.
No entanto, a quebra aponta para uma negligência amadora, nem que seja do ponto de vista das relações públicas e da diplomacia. Israel e os seus militares devem logo convencer a Corte Internacional de Justiça em Haia que a autorização de entrada de ajuda humanitária em Gaza é uma das medidas para evitar a prática de genocídio. Os militares são obrigados a trabalhar em conjunto com a COGAT -Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios [Ocupados]- (parte do Ministério da Defesa), que emite diariamente informações em inglês sobre os caminhões de ajuda que permitiu entrar em Gaza e tenta com todas as suas forças dar a impressão de que Israel está fazendo tudo o que está ao seu alcance para que civis palestinos bombardeados tenham comida.
Os governos ocidentais estão apoiando Israel e apoiando sua guerra, o que é uma das razões de seu prolongamento. Eles, aparentemente, não concordam com a posição palestina: de que se trata de uma atitude deliberada para causar fome na população de Gaza, como exigido pelos mais extremistas do governo de extrema direita de Israel e, de acordo com a teoria desmentida de que quanto mais dura a pressão, mais cedo os reféns serão libertados.
Mas o Ocidente está ouvindo os alertas de organizações internacionais de ajuda sobre fome e morte por fome. Desde meados de dezembro, no mais tardar, esses órgãos alertam para o aumento da fome, especialmente no norte de Gaza, por vários motivos. Bombardeios e manobras terrestres destruíram plantações e fazendas de gado. Os alimentos armazenados se esgotaram ou foram destruídos por bombardeios e mais bombardeios. Israel criou obstáculos na coordenação da entrega de ajuda e combustível ao norte de Gaza – e isso foi quando ainda pensava que poderia praticamente esvaziar o norte de civis.
Além disso, à medida em que a fome se espalha, o mesmo acontece com a prática da “distribuição espontânea”, como as organizações humanitárias chamam as invasões à carga de caminhões por indivíduos ou grupos. Outro motivo para o baixo número de caminhões é o medo dos motoristas por suas vidas, já que ninguém os protege de gangues armadas que saqueiam mercadorias à venda no mercado negro. É difícil verificar – de forma independente, sem estar lá, e independente das afirmações das IDF – a extensão dos saques em que o Hamas está envolvido para fornecer alimentos para seus membros.
Palestinos levam sacos de farinha de um caminhão de ajuda humanitária em Gaza, no mês passado. Crédito: Stringer/Reuters
Mas os moradores de Gaza também relatam casos de policiais que são enviados para proteger os comboios de saqueadores e são baleados e mortos pelo exército israelense. O embaixador David Satterfield, enviado especial dos EUA para questões humanitárias no Oriente Médio, reclamou no início de fevereiro que as forças israelenses haviam matado policiais palestinos que protegiam um comboio de ajuda da ONU em Rafah. Por isso, policiais, cujas funções também eram civis antes da guerra, se recusaram a acompanhar os comboios.
Fora de Israel, os anúncios de organizações da ONU de que não tentarão mais entregar suprimentos ao norte de Gaza por causa dos inúmeros obstáculos repercutiram amplamente. Em 29 de fevereiro, o secretário-geral do Conselho Norueguês para os Refugiados, o diplomata Jan Egeland, disse ter testemunhado crianças que “estão visivelmente desnutridas, reduzidas a procurar comida e assistência nas ruas”. Referindo-se ao que viu no sul de Gaza, ele disse: “É inimaginável que uma população inteira seja deixada à míngua enquanto grandes quantidades de suprimentos ficam esperando a poucos quilômetros de distância do outro lado da fronteira”. Em 27 de fevereiro, a organização Save the Children alertou: “O que estamos testemunhando em Gaza é um assassinato em massa de crianças em câmera lenta porque não há mais comida e nada chega até elas”. O Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas, informou que pelo menos 15 crianças morreram recentemente de desnutrição e desidratação.
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários informa que o risco de morrer de fome em Gaza afeta desproporcionalmente crianças e mulheres grávidas. O escritório disse que de 416 mulheres grávidas que visitaram uma clínica do Projeto HOPE em Deir al-Balah entre 5 e 24 de fevereiro, cerca de um quinto apresentou sinais de desnutrição, o que pode aumentar o risco de hemorragia pós-parto com risco de vida, parto prematuro e baixo peso do bebê.
Palestinos feridos no Hospital Al-Shifa, na Cidade de Gaza, nesta sexta-feira. Crédito: Kosay Al Nemer/Reuters
Talvez os comandantes e seus soldados pensem que tudo isso é propaganda do Hamas. Talvez eles deduzam dos relatórios do COGAT em língua inglesa de que há um suprimento constante e suficiente de alimentos para os habitantes de Gaza, e talvez pensem que as multidões de palestinos que invadem os caminhões são apenas saqueadores criminosos.
Independentemente disso, o tiroteio contra ou em direção à massa faminta de pessoas na manhã de quinta-feira não foi um acidente aleatório resultante de fadiga mental. Tomou forma sob o espírito militar que precedeu o massacre de 7 de outubro e se intensificou depois dele: por um lado, o desprezo pelos palestinos, vistos como pessoas menos dignas do que os israelenses, e, por outro, uma incriminação abrangente deles como um grupo que representa uma ameaça por definição. Se é aceitável bombardear edifícios residenciais com seus ocupantes civis dentro por causa da presença de um único membro sênior do Hamas, então certamente deve haver uma licença para atirar em pessoas no escuro, indiferentes ao fato de que seus pais idosos famintos ou crianças pequenas estão esperando que eles voltem com um pouco de farinha.
Original em The Israeli Military Doesn’t Grasp the Risk of Mass Death by Starvation in Gaza. Tradução de Waldo Mermelstein, do portal Esquerda Online.
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