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Colunas

Pacificação e (com) impunidade

Valter Campanato/Agência Brasil

Romero Venâncio

Romero Venâncio é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor da Universidade Federal de Sergipe (Departamento de Filosofia e Núcleo de Ciências da Religião). Atua em pesquisas sobre: Marx, Sartre, F. Fanon, Enrique Dussel e o pensamento Decolonial Latino Americano.

“A construção histórica é dedicada à memória dos sem nome.” (W. Benjamin)

Acabei de ler o breve ensaio da professora Jeanne Marie Gagnebin, intitulado: “O preço de uma reconciliação extorquida” que foi publicado na importante coletânea: “O que resta da ditadura” (Boitempo, 2010). Começo com essa referência porque estamos diante de mais uma noticia da vez neste janeiro de 2024 de um Brasil que parece ainda não ter saído de “transe político”. A bola da vez é a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), deputado Alexandre Ramagem (que foi da ABIN no governo Bolsonaro) e todo uma enorme lista de pessoas que foram monitoradas (ilegalmente) por uma ferramenta profissional de arapongagem. Nem precisa dizer que toda essa situação é típica de ditadura(s).

Temos mais tempero para qualquer análise de conjuntura nesse janeiro de 2024. O jornalismo faz seu papel em focar no fato. Na lista das práticas da ilegal arapongagem aparece gente de poder como dois ministros do STF, as informações de que houve Interferências em processos dos filhos de Bolsonaro (então presidente da República), que se meteu no processo de assassinato da vereadora Marielle Franco e por ai vai… Tudo isto vindo de uma ação da Polícia Federal onde encontrou, nos endereços ligados ao deputado Ramagem (PL-RJ), seis celulares e quatro notebooks que pertencem à Abin. A informação foi noticiada por todo o jornalismo da casa grande, as mídias alternativas e com uma série de análises nas redes digitais a torto e à direita.

Veio a lume mais uma vez uma série de atividades ilegais comprovados do antigo governo Bolsonaro e sua gente. E mais uma vez vem as noticias de “fim do bolsonarismo”, “prisão de Bolsanaro e parte da família”, os paladinos do “rigor da lei” e toda uma parolagem midiática de defesa do estado democrático de direito. Qualquer pessoa versado um pouco na história contemporânea brasileira (dos anos 80 para cá) sabe que as coisas que nascem como notícias bombásticas neste país, crescem como fogo de palha, muito palavreado oportunista e depois segue para o esquecimento com pouca apuração e menos ainda punição dentro da lei. Pessimismo? Não. O mais puro realismo político diante da experiência histórica nativa. Pode ser que mude com esse escândalo da ABIN e seu pessoal? Pode ser. Mas nada indica. A resposta dos bolsonaristas ao fato, é mais um delírio desses crentes em suas fantasias. Nem precisa dizer mais nada sobre estes bolsonaristas de plantão.

Pode até parecer que foi coincidência essas denúncias comprovadas da ação da ABIN no governo Bolsonaro neste momento e ano! Não foi e nunca será num Brasil que teimou em não acertar as contas com a pacificação extorquida que nasceu na “lei da anistia” e foi até 1985 quando aconteceu o fim formal da ditadura pós-64. Nunca é demais lembrar: 2024 lembramos os 60 anos do golpe de 1964. A ABIN do ex-presidente FHC é filha do SNI da ditadura (por mais que o governo civil tenha afirmado que não). Um país que não passou à limpo os crimes da ditadura e manteve boa parte das instituições marcadas e maculadas pela cultura da ditadura, queria o que? Uma ABIN democrática? Nem como piada uma afirmação destas, serve.

Trocando em miúdos: jamais se deve acreditar que Bolsonaro poderia ter compromisso com qualquer valor democrático. Jamais! Ele e sua turma são herdeiros direto de Sylvio Frota (general da ditadura autor do: “Ideais traídos: A mais grave crise dos governos militares narrada por um de seus protagonistas”). Nem precisa lembrar aqui as “artes do Frota” (militar, não o outro) nos anos 70. Os frutos podres vindos deste senhor, continuaram sua obra. De Brilhante Ustra a Augusto Heleno, de Bolsonaro a Ramagem… A coisa apenas continuou, venhamos e convenhamos.

Uma frase/questão extraordinária do professor Paulo Arantes (USP) no livro citado no inicio do texto, pode resumir bem toda esta situação em uma chave mais profunda e para além da mera conjuntura:

“Tudo somado, o que resta afinal da ditadura? na resposta francamente atravessada do psicanalista Tales Ab`Sáber, simplesmente tudo. Tudo menos a ditadura, é claro”. In: “O que resta da ditadura” – (p. 205).

Neste ano que lembramos (e deveríamos lembra de maneira mais efetiva!) os 60 anos do golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu, a frase de Arantes é perfeita diante do caso da ABIN nesta semana. Saindo da mera superficialidade da arapongagem bolsonarista, temos que saber que a coisa vem de porões mais nefastos e de tempos de terror. Como os tempos de terror foram pacificados formalmente e sem efetiva punição de torturadores e assassinos que se fizeram na ditadura, sempre se pode esperar pouco de alguma justiça no caso da vez em 2024. Não por acaso do destino que a cada década que nos distanciamos de 1964, mais difícil fica fica recobrar a memória.

A ABIN, simbolicamente e fisicamente, faz parte daquele “entulho autoritário” que sobreviveu (e sobrevive) nos governos civis. A lógica desses governos é a pacificação com impunidade. Uma espécie triste e sistemática de “panificação” (em sentido de passar pano!!!) do passado (recente, inclusive). A padaria dessa democracia sem memória produz uma fornalha de “pães amargos” com o fermento da injustiça. Os massacrados, torturados, os que tiverem corpos desaparecidos, os exilados, os empobrecidos pela ditadura ainda esperam por justiça e memória (em vão???). ABIN não só nome do presente. É fantasma do passado.