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Por que não flopou?

Notas sobre a Manifestação Bolsonarista de 25/02/2024 na Av. Paulista São Paulo, ou “Porque não flopou”, como uma contribuição à interpretação e compreensão da analise deste evento.

Paulo Pinto/Agência Brasil

José Carlos Miranda

José Carlos Miranda é ativista social desde 1981. Foi ferroviário e metalúrgico e faz parte da Coordenação Nacional da Resistência-PSOL.

Com colaboração de Mario Conte

1. Havia estrutura material considerável, o que significa apoio de setores que concentram dinheiro. Não foi ato como das Frente Brasil Popular, ou Frente Povo Sem Medo, que fazem uso de carro de som de sindicato. Houve palco montado, com luz e som e tal estrutura não materializa ou consubstancia por vontade ou desejo. Houve mão de obra contratada para montagem e desmontagem, segurança, aportes de apoio da prefeitura e do governo estadual, além da locação da estrutura;

2. Ter conseguido os alvarás faz parte dos acenos recíprocos do bolsonarismo a Ricardo Nunes e Tarcísio e vice-versa. Como único governador presente a discursar, o ato visava, ainda que secundariamente, dar coesão às massas simpáticas ao programa de extrema direita e iniciar a passagem da tocha a um herdeiro político. A inelegibilidade de Bolsonaro ou sua prisão não elimina o conjunto de contradições e sentimentos arrivistas que o alçaram ao poder político. É necessário compreender definitivamente que o indivíduo Bolsonaro é muito mais a expressão de um sentimento de parcelas da massa dos brasileiros que causa. Não resolvidas as contradições, outro agente catalizador pode ocupar o vácuo político em vez das motivações e ressentimentos simplesmente sublimarem-se em passe de mágica;

3. O número mobilizado é considerável. Ainda que Secretaria Estadual de Segurança Pública não apresente número confiável e certamente tenha inflado com o número oficioso de 600 mil presentes, grupo independente e especializado da USP estimou 185 mil presentes no pico da manifestação. “Não flopou”. E é uma demonstração inequívoca do poder de mobilização, em um momento de desmoralização por série de ações da PF e condenações dos primeiros operadores do ato do 8 de janeiro. Tripudiar e fazer piada é antes mecanismo de defesa e negação que compreensão da complexidade dos fatos;

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4. A presença de quatro governadores de estado indica força política e resiliência. Tarcísio em SP funcionou como anfitrião e foi o único a discursar. Indica que de afilhado político pode se tornar primeira opção do Bolsonarismo na esfera federal. Muito cedo para afirmar, mas segue hipótese altamente provável. Caiado de GO resolveu apagar as agressões que sofreu quando governador do estado durante a pandemia. Seus interesses reacionários ditam seus atos e a participação crescente de GO no PIB com o crescimento do agronegócio desvelam setor e região comprometida com agenda da extrema direita. Zema de MG, talvez mais por oportunismo que afinidade ideológica, marcou presença e tenta firmar seu nome junto à extrema direita como opção. Governador de importante estado, MG, será ator importante nos próximos anos. O “pequeno” Jorginho marcou presença porque seu ridículo governo sequer visa administrar o estado de SC, mas antes prosseguir em ritmo de campanha eleitoral com ações voltadas a postagens de redes sociais para agradar sua base de extrema direita. Sequer recebe representantes do governo federal em visitas oficiais para discutir ações comuns no Estado, o que é celebrado pelo seu público que ignora que SC sendo o sexto maior PIB do país é ainda muito inferior ao dos três primeiros colocados, cerca de apenas 58% do PIB do RJ, segundo colocado. Jorginho marcou presença muito mais por suas pretensões pessoais provincianas que por um projeto mais audacioso, como os outros três governadores presentes. Ausência de Castro, do RJ, foi por sua vez importante;

5. Presença de Magno Malta e Malafaia e suas respectivas falas, as mais agressivas em relação ao STF, talvez indique uma “divisão do trabalho sujo”. Por serem pastores e terem autoridade e influência com amplas massas devem seguir tensionando a corda e desafiando o STF, apostando que a instituição não pretende desagradar a massa neopentecostais, que inclusive deve crescer na próxima década e tornar-se maioria religiosa no país antes de 2050, segundo projeções que compreenderam que seu crescimento não é espontâneo, mas fruto de trabalho disciplinado e sistemático;

6. O discurso de Bolsonaro foi passional, visando colar a etiqueta de perseguido político e vítima de injustiças para sua base;

7. Outro aspecto foi o tom conciliador na maioria do discurso, algo inédito. O tensionamento estava medido até um certo ponto e recuava depois, embora nunca até a posição de início, anterior ao tensionamento, como em uma paciente guerra de posições em trincheiras. Agora, consciente da materialidade das fartas provas e gravidades de suas ações, sabe que é uma questão de tempo para que seja preso, ainda que o devido processo legal possa lhe garantir responder em liberdade por mais alguns anos. O pedido de anistia aos operadores do 8 de janeiro é um pedido de anistia si próprio, a seus filhos, sua companheira e seus acólitos e cúmplices. Uma aposta na composição reacionária do congresso e na tradição brasileira de nunca cobrar consequências de crimes políticos;

8. Vale ressaltar o “short” do seu discurso escolhido e veiculado pelo site G1 e por toda rede Globo, demonstra o tom conciliador e contém um ato falho (em negrito): “O que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar maneira de nós vivermos em paz. É não continuarmos sobressaltados. É por parte do Parlamento brasileiro (…) uma anistia para aqueles pobres coitados que estão presos em Brasília. Nós não queremos mais que seus filhos sejam órfãos de pais vivos. A conciliação. Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil. Agora nós pedimos a todos 513 deputados, 81 senadores, um projeto de anistia para seja feita justiça em nosso Brasil”;

9. Ao citar que barbaridades foram anistiadas no passado, Bolsonaro reconhece que seus acólitos raivosos e cúmplices, assim como ele mesmo, cometeram barbaridades, em vez de cumprir com as obrigações do cargo ao qual foi mandatado pelo voto popular. Mas é uma aposta no predicado tão menosprezado pela moderna sociologia brasileira, principalmente a que se proclama crítica: a passionalidade como traço predominante do caráter social do brasileiro médio, que se expressa por meio de arrivismo e ressentimento contra desafetos e perdão e leniência às piores faltas aos que se têm algum apreço, enfim, o velho “brasileiro cordial” das raízes do Brasil, tão mal compreendido quanto mal citado e que ajuda a explicar tanto o comportamento da extrema direita, quanto do chamado campo progressista na última década nacional, ainda que não seja ele único fator ou chave universal da explicação do grande buraco cavado em que nos encontramos, que é este Brasil de 2024.

10. Se a conjuntura coloca Bolsonaro na defensiva, seu discurso de vítima perseguida conjuntamente à reafirmação da pauta de costumes conservadora (contra “ideologia de Gênero”, contra comunismo, etc.) somados ao discurso emotivo de Michele reafirmando o compromisso dela e seu marido com Deus e esse ser o motivo de serem perseguidos, a maioria, se não a totalidade do público presente no ato (e outros tantos milhões espalhados pelo país) se identificam com a condição de “perseguidos” por suas posições e convicções reacionárias e preconceituosas. A fratura segue exposta e os agressivos brasileiros “cordiais bolsonaristas” não estão dispostos a calcificar nada ou cicatrizar feridas. A disputa das ruas segue aberta e não podemos permanecer observando como se eles estivesem derrotados ou destruídos. Cordial aqui não tem absolutamente nenhuma conotação daquele que “demonstra afabilidade, sinceridade, caloroso, franco”, mas daquele “que revela disposição favorável em relação a outrem”, ambas acepções de dicionário, embora a segunda explique as relações interpessoais acima das instituições e isonomia formal da lei e da Constituição de 88, ou seja uma cordialidade tanto proselitista quanto excludente

11. Seguimos na complexa e resiliente situação reacionária demonstrada como um fato, não efêmero, na situação nacional e internacional, uma constatação afirmada a cada evento na luta de classes em escala internacional. Compreender o estágio da luta de classes e o consequente nível da consciência de classe do proletariado é fundamental para a armação política, elaboração das táticas e mantenimento firme da estratégia revolucionária. Mais que nunca, o olhar deve estar em primeiro lugar nas massas, não para ser levado pela corrente da lógica formal, mas para acuidade das melhores táticas e oportunidades para encontrar as brechas na emaranhada situação reacionária e abrir caminho para uma dinâmica positiva para nossa classe.

Coluna de José Carlos Miranda, com colaboração de Mario Conte, músico e militante do PSOL Joinville SC