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Sem anistia, prisão para Bolsonaro; hora de ir às ruas

O desafio da nova conjuntura é aproveitar a oportunidade para abrir uma situação política melhor. Não há muito mistério, nem mágica

Gabriela Biló/Folhapress

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Corro atrás do tempo, vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

Chico Buarque

1 As necessidades de nossas vidas pessoais nos levam a considerar, todos os dias, em algum momento, que horas são. As necessidades impostas pelas lutas sociais, em outro grau de abstração, exigem, também, que nos perguntemos em que situação política estamos. “Que horas são” na luta de classes? Há um novo momento na conjuntura, embora ainda no contexto de uma situação nacional desfavorável, em que a relação social de forças pemanece defensiva. Mas mudou, favoravelmente, a relação política de forças em função da ofensiva da investigação da Polícia Federal, autorizada por Alexandre de Moraes, sobre a cúpula da extrema-direita golpista, cercando o próprio clã da família Bolsonaro. A operação “Tempus Veritatis”, ao atingir a alta cúpula das Forças Armadas, abre a possibilidade de criminalização e prisão de Bolsonaro. Seria uma derrota imensa, terrível e, talvez, irreversível para a corrente neofascista. Exige a coragem política de tomar a inciativa de mobilização popular pelo Sem Anistia, pela condenação dos generais golpistas e prisão para Bolsonaro.

2 As provas já divulgadas a partir da delação de Mauro Cid fundamentaram de forma irrefutável que existiu uma conspiração golpista articulada dentro do Palácio do Planalto. Já está demonstrado que Bolsonaro estava engajado num conluio e complô de preparação de uma quartelada. O golpe de Estado estava em marcha. Na verdade, não foi uma operação conduzida em estrito sigilo. Não era um segredo porque a agitação política da campanha de reeleição bolsonarista permitia concluir que o perigo de sublevação militar, apoiado na mobilização de sua base social, era real e imediato. A novidade é que a divulgação do vídeo da reunião ministerial e mensagens por Alexandre de Moraes confirma de forma desconcertante a desfaçatez criminosa. A conjuntura mudou porque está colocada na ordem do dia a liquidação política da liderança neofascismo brasileiro. O que é inusitado em nossa história é o desafio de levar, também, a alta oficialidade militar a julgamento. Seria enorme, monumental, histórico.

>> Leia também: O Brasil exige: prisão para Bolsonaro e os generais golpistas!

3 A nova conjuntura nos oferece uma brecha, um caminho, uma oportunidade extraordinária. Quem diminui o impacto sobre a situação política de uma possível criminalização da liderança do neofascismo perdeu a bússola de classe. A “Tempus Veritatis” confirma que a maioria do STF assumiu a responsabilidade de uma ofensiva judicial-policial contra a liderança máxima do neofascismo no país. Por quê? Porque Bolsonaro representa uma ameaça ao regime democrático-liberal em geral. A extrema-direita é um movimento político-social-cultural de massas muito poderoso. As pesquisas disponíveis até agora informam que mais de 40% da população desconfia, suspeita e desacredita que Bolsonaro seja culpado. Uma maioria apoia a prisão de Bolsoanro, mas a diferença não é grande. Ninguém deveria duvidar que Bolsonaro cometeu variados crimes de responsabilidade durante seus quatro anos de mandato. A blindagem do Centrão garantiu que pudesse cumprir o mandato até o fim. Quem passou os últimos anos, durante o mandato Bolsonaro, preocupado com os supostos “abusos de poder” dos Tribunais Superiores errou muito. O STF defendeu o regime democrático-liberal. As ameaça às liberdades democráticas vieram do Congresso que defendeu a “legitimidade” de Bolsonaro. A esquerda não pode titubear em apoiar e realizar uma defesa da iniciativa do STF liderada por Alexandre de Moraes.

4 O bolsonarismo iniciou uma campanha de autodefesa com  a convocação para um Ato na Paulista dia 25 de fevereiro na Avenida Paulista. Vai tentar intimidar a investigação apoiado no engajamento de sua base social nas ruas, mas sabe que está na defensiva. Não se pode saber qual será sua capacidade de mobilização, mas não deve ser subestimado. A narrativa de que está sendo perseguido poderá alcançar alguma repercussão, por suposto, porque mantém autoridade, sobretudo, nas camadas médias mais envenenadas pelo discurso neofascista. Será maior ou menor em função da disputa política-ideológica. Mas essa disputa é inescapável. O argumento de que a prisão de Bolsonaro “fortaleceria” a extrema-direita é errado. Ninguém pode prever quando e como virá uma erosão qualitativa da influência da extrema-direita. Mas hoje ela passa pelo apoio à ofensiva do Supremo Tribunal Federal.

5 Se a esquerda não tiver a lucidez de que deve responder nas ruas à nova situação estará tropeçando em suas próprias pernas. O monopólio das ruas não pode ficar nas mãos da extrema-direita. O “sonambulismo” nunca é uma boa tática para a esquerda. “Jogar parado” quando Bolsonaro decide “dobrar a aposta” é muito perigoso. Uma “hibernação’ deixando a responsabilidade pelo desenlace desta luta nas mãos do STF seria imperdoável. É um erro, inclusive, para aqueles hipnotizados por cálculos eleitorais. A experiência internacional, Milei na Argentina, Trump nos EUA, e perspectiva de crescimento da extrema-direita nas eleições europeias, revela que desconsiderar, diminuir, ou desprezar o impacto das ações de rua liderada por Bolsonaro é um erro grave. O que não avança, recua. A conjuntura mudou para melhor, e pode incidir sobre a própria situação, invertendo a relação social de forças. Mas a oportunidade pode, também, ser perdida.

6 Devemos aprender com nossa história. Em 1964 abriu-se no Brasil uma etapa contrarrevolucionária, que permaneceu até o final dos anos 70, por quinze anos. Ao longo dessa etapa, ocorreram várias mudanças de situação. Essas mudanças se traduziram em transformações no regime político: bonapartismo reacionário entre 1964 e 68, e depois bonapartismo contra-revolucionário, com elementos semi-fascistas, até 1974/76. Em 1978/79 abriu-se uma situação pré-revolucionária, paradoxalmente, no interior de uma etapa ainda reacionária. Poder-se-ia objetar que não há dialética que explique esta contradição. Mas este aparente enigma, o sentido assimétrico do signo entre etapa e situação, é o que permite explicar a mudança de etapas. Esta explicação resulta, dialeticamente, coerente, se considerarmos que situações transitórias são, por definição, muito contraditórias. E a situação aberta entre 1978/82 reúne os fatores “clássicos” de uma situação transitória. Nesse sentido, preparava as condições para uma mudança de etapa que estava por se dar, mas que poderia ter sido bloqueada, porque os processos estão sempre em aberto, e as dinâmicas podem ser interrompidas no curso das lutas.

7 A ditadura militar, a forma do regime, entrou em lenta agonia, vindo finalmente a sucumbir, com as Diretas em 1984. Claro que a visão retrospectiva facilita a análise: se alguém escrevesse em 1981, no calor dos acontecimentos, depois da derrota duríssima da greve no ABC, quando das intervenções do Governo Figueiredo nos sindicatos de bancários e metalúrgicos, que o Brasil estava em uma situação pré-revolucionária, seria considerado um demente, e até recomendada a internação por “insanidade”. Mas essa situação pré-revolucionária não se fechou, apesar dos muitos reveses, e das distintas conjunturas que se sucederam, e isso explica que em 1984 tenha sido possível a explosão das Diretas.

8 Em conclusão: as situações podem ser aferidas pelas mudanças nas formas do regime, embora não se esgotem nessa variável. Ela é, todavia, o elemento mais objetivo dos deslocamentos das relações de forças. Uma avaliação dos desencontros dos tempos históricos e políticos exige a compreensão destes aparentes anacronismos: só podemos explicar a irrupção de milhões para a ação política no afã de derrotar a ditadura, se considerarmos as alterações moleculares que foram se avolumando nos anos anteriores. Esse é o sentido das situações transitórias que podem ser bloqueadas, não são irreversíveis. Vale a pena acrescentar que vivemos, desde de meados 1999, outra vez, uma situação transitória, na passagem de uma situação defensiva na luta de classes para uma situação pré-revolucionária, que foi a chave para a eleição de Lula em 2002.

9 Um dos mal entendidos mais comuns sobre os critérios de periodização é o esquematismo. O maior perigo é a simplificação exagerada, e não o contrário. Este erro consiste em resumir ou reduzir as escalas de classificação às medidas de temporalidades lineares: épocas seriam mais longas do que etapas, etapas seriam, por sua vez, mais longas do que situações e, finalmente, as conjunturas seriam as fases mais breves. Em suma, longa duração, média duração, curta duração e presente. Este tipo de esquema não é o melhor. Perde-se o critério marxista que analisa a realidade a partir da luta de classes. Sendo este o critério de avaliação das etapas da situação internacional, a avaliação deve estar orientada pela identificação das vitórias e derrotas na arena mundial entre revolução e contrarrevolução.

10 O trabalho teórico exige a construção de um modelo, esquemas, evidentemente, mas eles devem ser elásticos, quando a questão é a periodização. As fases ou períodos histórico-políticos não têm um padrão regular. O sentido ou dinâmica contraditória de épocas, etapas e situações convivem em simultaneidade dentro de amálgamas instáveis, que são o próprio movimento de transformação. O trabalho de periodização está entre os mais difíceis, porque resume em uma síntese explicativa uma infinidade de análises, sem as quais, não teria qualquer significado. A desigualdade dos tempos que se alternam em simultaneidade é quase uma regra, e não uma excepção. O esforço de síntese, sem o qual não há como procurar explicações bem sustentadas é, portanto, complicado. Enfrentemos o problema de frente: assim como ocorre a confusão de mudança de etapa com a mudança de época, existe também o perigo de uma má interpretação das relações entre etapas e situações. As épocas históricas são definidas por critérios, essencialmente, objetivos, portanto, econômico-sociais, e são, necessariamente, períodos relativamente longos.

Uma época pode ter medidas seculares. As etapas são fases essencialmente político-sociais, e não têm uma duração “padrão” que possa ser previamente estipulada, porque correspondem a um período em que a relação de forças entre revolução e contrarrevolução se manteve estável, portanto, a refração deste processo central se expressou, também, na relação entre Estados no sistema internacional. O desafio da nova conjuntura é aproveitar a oportunidade para abrir uma situação política melhor. Não há muito mistério, nem mágica. O “abracadabra” que a vida está nos oferecendo é Sem anistia, Prisão para Bolsonaro.