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MUNDO

“Me recuso a participar de uma guerra de vingança”: Israel prende adolescente por se opor à conscrição pelo exército

Tal Mitnick é o primeiro objetor de consciência israelense a ser preso desde 7 de outubro. Ele explica por que a guerra atual apenas reafirmou suas convicções.

Por Oren Ziv, com tradução de Waldo Mermelstein
Oren Ziv

Tal Mitnick.

Na terça-feira (26), Tal Mitnick, de 18 anos, de Tel Aviv, se tornou o primeiro israelense a recusar o serviço militar obrigatório desde Israel lançou seu ataque à sitiada Faixa de Gaza há mais de 80 dias. Mitnick foi convocado para o centro de recrutamento de Tel Hashomer, onde se declarou um objetor de consciência, e foi condenado a 30 dias de prisão militar.

Mitnick é um dos 230 estudantes israelenses do ensino médio que assinou uma carta aberta no início de setembro, antes da guerra, anunciando sua intenção de recusar suas ordens de conscrição como parte de uma mobilização contra os esforços do governo de extrema direita de Israel para restringir o poder judiciário. Ligando o golpe judicial ao antigo domínio militar de Israel sobre os palestinos, os secundaristas – que se organizaram sob a bandeira da “Juventude Contra a Ditadura” – declararam que não serviriam no exército “até que a democracia esteja garantida para todos os que vivem sob a jurisdição do governo israelense”.

No início de dezembro, Mitnick se apresentou perante o Comitê de Consciência do Exército – composto por vários representantes militares e um representante acadêmico – que rejeitou seu pedido de isenção do serviço militar. Ao declarar sua recusa [em servir] na terça-feira, Mitnick foi imediatamente levado para a prisão militar de Neve Tzedek, perto de Netanya, para iniciar a cumprir sua sentença, ao final da qual ele será ordenado a se apresentar novamente ao centro de recrutamento. Nos últimos anos, os objetores de consciência foram submetidos a vários períodos de prisão, alguns chegando a até 100 dias ou mais de encarceramento.

Noa Levy, advogada que representa os israelenses que se negam  a servir em nome do Mesarvot, declarou para a rede +972 e Local Call que, desde o início da guerra, o exército optou em grande parte por não prender cidadãos que haviam anunciado sua recusa em servir. “Tal não é o primeiro opositor cuja data de alistamento foi após o início da guerra”, explicou. “Antes dele, houve dezenas, tanto de opositores da reserva quanto opositores do serviço regular. Mas o Exército encontrou outras maneiras de lidar com eles e não os mandou para a prisão.”

Em uma mensagem que diverge acentuadamente do discurso público israelense dominante em meio ao ataque contínuo do exército a Gaza, e em um momento em que qualquer pessoa em Israel que expresse oposição moderada à guerra está enfrentando perseguição e repressão, Mitnick disse ao +972: “Minha recusa é uma tentativa de influenciar a sociedade israelense e evitar participar da ocupação e do massacre que acontece em Gaza. Estou tentando dizer que não é em meu nome. Manifesto solidariedade com os inocentes em Gaza. Eu sei que eles querem viver; eles não merecem ser transformados em refugiados pela segunda vez em suas vidas.”

Tal Mitnick segura um cartaz que diz “Vamos morrer antes de nos alistarmos”, dentro do bloco antiocupação em uma manifestação antigoverno em Tel Aviv, em 29 de abril de 2023. (Oren Ziv)

Em uma declaração de recusa publicada antes de sua prisão, Mitnick descreveu o ataque liderado pelo Hamas em 7 de outubro sobre o sul de Israel como “um trauma diferente de qualquer outro na história do país”, mas afirmou que o bombardeio do exército a Gaza não é a resposta. “Não há solução militar para um problema político”, escreveu. “Por isso, me recuso a alistar-me num exército que acredita que o verdadeiro problema pode ser ignorado, sob um governo que só dá continuidade ao luto e à dor.

“Eu me recuso a acreditar que mais violência trará segurança”, continuou. “Eu me recuso a participar de uma guerra de vingança.”

Pouco antes de entrar na prisão, Mitnick falou ao +972 sobre sua decisão de recusar [a servir], o medo de entrar na prisão no atual clima político e a mensagem que pretende transmitir ao público em Israel e em Gaza.

Como surgiu a sua decisão de recusar o alistamento?

Mesmo antes do primeiro aviso de convocatória, eu sabia que não estava interessado em me alistar. Eu sabia que não estava disposto a servir nesse sistema que perpetua o apartheid na Cisjordânia e só contribui para o ciclo de derramamento de sangue. Entendi pela posição muito privilegiada em que me encontro, tendo uma família e um entorno que me apoiam, que tenho a obrigação de usá-la para atingir outros jovens e mostrar que há outro caminho.

Quando converso com meus amigos – alguns dos quais servem no exército e outros que foram dispensados – sobre por que não vou para o exército, eles entendem que isso vem de uma perspectiva humanista de consideração pelo próximo. Ninguém acha que eu apoio o Hamas ou quero que [meus amigos] sofram danos. Há pessoas que acreditam que a atividade militar trará segurança. Acredito que a minha recusa pública é o que vai influenciar e trazer mais segurança.

Jovens manifestantes queimam suas convocatórias para servir no exército israelense durante um protesto contra o governo em Tel Aviv, em 1º de abril de 2023. (Oren Ziv)

Como os protestos contra a reforma do Judiciário o ajudaram a moldar sua visão de mundo?

Antes dos protestos, eu via o ativismo político como algo muito distante, e não achava que era possível causar impacto como indivíduo. Quando os protestos começaram e vi que incluíam membros do Knesset (Parlamento) indo às ruas, percebi que a política está mais perto de mim do que eu pensava, que posso atingir todos os recantos do país e que posso ter influência. Foi aí que entendi que minhas ações podem afetar a realidade que vemos no país e tenho a obrigação de agir por um futuro melhor.

Você estava debatendo se deveria fazê-lo agora, dada a atmosfera atual?

Sim, havia dúvidas. Eu sempre soube que o Exército não tem uma política consistente em relação aos objetores de consciência, que a resposta pode mudar em um momento – libertar todos os opositores ou prendê-los por muito tempo – e eu estava preparado para isso. Depois do 7 de outubro e do ataque do governo ao movimento pela paz, sobre a parceria judaico-árabe e sobre os cidadãos palestinos. Expressar apoio e solidariedade aos inocentes em Gaza, mesmo em manifestações, tornou-se assustador. Mas agora é justamente o momento de mostrar o outro lado, de mostrar que existimos.

Você acha que há alguém no país disposto a ouvir essas mensagens agora?

Todos sabemos que precisamos de outro caminho, especialmente depois de 7 de outubro. Todos sabemos que [o que é praticado] simplesmente não funciona, que Benjamin Netanyahu não é o “Sr. Segurança”. Gerenciar o conflito é uma política que não funcionou e acabou por entrar em colapso.

Não podemos continuar com a situação atual, e há duas opções agora: a direita sugere transferência e genocídio dos palestinos em Gaza; o outro lado diz que há palestinos aqui, vivendo entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo, e eles têm direito a direitos. Mesmo as pessoas que votaram em Bibi, e mesmo aqueles que apoiaram a reforma do Judiciário, podem se conectar à ideia de que todos merecem viver com justiça, que todos merecem um teto sobre suas cabeças e apoiar a existência compartilhada aqui.

Depois do 7 de outubro, muitos que estavam na esquerda afirmaram que estavam “reflexivos”. Isso o afetou?

Não há justificativa para prejudicar civis inocentes. O ataque criminoso de 7 de outubro, em que inocentes foram mortos, é, a meu ver, uma resistência ilegítima à opressão do povo palestino. No entanto, proibir resistências legítimas, como protestos, ou declarar organizações de direitos humanos como organizações terroristas, leva as pessoas a desumanizar o próximo e a ações visando civis.

Manifestantes israelenses protestam em frente ao quartel-general do exército israelense em Tel Aviv, pedindo um cessar-fogo na guerra em Gaza, em 28 de outubro de 2023. (Oren Ziv)

O dia 7 de outubro não mudou minha perspectiva; apenas a reforçou. Ainda acredito que é impossível conviver com o cerco a Gaza e uma ocupação, e não sofrer nenhuma consequência. Acredito que muitas pessoas finalmente entenderam isso. A ideia de “longe da visão, longe da mente” não funciona. Algo precisa mudar, e a única maneira é conversar, para chegar a um acordo político. Não estou dizendo que vai resolver tudo, mas será mais um passo em direção à justiça e à paz.

Qual foi a sua experiência no Comitê de Consciência?

A entrevistador prévia ao comitê foi agressiva. Ela questionou minha não-violência porque eu me opus às ações do governo e à ocupação. Essencialmente, devido às minhas opiniões, ela me disse que eu não sou um objetor de consciência porque eram opiniões políticas.

No final, passei pela pré-comissão e me apresentei à própria comissão menos de uma semana após a entrevista, enquanto muitas pessoas costumam esperar meio ano. Foi uma entrevista hostil: eu contra quatro pessoas.

Atacaram minhas opiniões. Eles me perguntaram o que eu teria feito no dia 7 de outubro e como eu teria lidado com a situação. Eles constantemente me interrompiam e diziam que formulariam a pergunta de forma diferente. Tentei continuar respondendo, mas disseram que eu não estava respondendo. Eu não sou o líder de Israel; eles não podem me colocar nessa posição.

Perguntaram-me como é que a minha recusa é diferente da recusa dos Irmãos em Armas [um grupo de veteranos do exército que declarou sua recusa em comparecer ao serviço da reserva em protesto contra o golpe judicial]. Respondi que os aprecio e acho importante que haja pessoas que tenham uma linha vermelha no serviço [militar] – mas defini a minha linha vermelha antes disso, e espero que a linha vermelha deles se mova na direção da minha.

Dois dias depois, disseram-me que eu não tinha passado na comissão. Não fiquei surpreso. Não recebi nenhuma explicação, apenas me ligaram e me contaram o resultado.

Como você planeja passar o tempo na prisão?

Tenho alguns livros longos, que espero que me permitam trazer: “Beber o Mar em Gaza”, de Amira Hass, uma história da CIA, e uma história da Luta Mizrahi (judeus provindos do Oriente Médio), de Sami Shalom Chetrit. Falei com objetores de consciência que estiveram na prisão antes; definitivamente não é um acampamento de verão, mas pelo que eu entendo, é possível lidar com isso. Você só precisa falar da maneira certa e não pensar que está acima de ninguém. 

Oren Ziv é fotojornalista, repórter da Local Call e membro fundador do coletivo de fotografia Activestills.
Texto traduzido a partir do artigo em inglês da 972 Magazine.