Por: Isabella Miranda, Imperatriz, MA
*Texto originalmente publicado no site da Carta Capital
2017 se iniciou há apenas 17 dias, mas já temos notícias de três massacres, em que 113 presos foram mortos dentro de penitenciárias de diferentes estados do país.
No último fim de semana, dia 14 de janeiro, 26 presos foram encontrados mortos na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Quase todos decapitados.
No dia 06 de janeiro, 31 presos foram mortos em Boa Vista, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, a maior de Roraima.
No dia 02 de janeiro, 56 corpos de presos foram contabilizados no Amazonas, no complexo penitenciário Anísio Jobim.
O que liga todos esses amontoados de corpos não são apenas suas cores não brancas, mas os motivos e as concretas possibilidades de mortes a que estão submetidos os encarcerados Brasil afora. Em todos os casos, as condições de aprisionamento em que se mantinham eram degradantes e subumanas. Em todos os casos, as autoridades públicas imputaram às facções as causas das rebeliões que teriam culminado em mortes. Em todos os casos, havia superlotação carcerária nos presídios onde se encontraram os cadáveres.
A Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, tem capacidade para 620 detentos, mas mantinha cerca de 1.150 presos, segundo a SEJUC, órgão responsável pelo sistema prisional do RN.
A Penitenciária de Monte Cristo, em Roraima, até outubro, abrigava cerca de 1,4 mil presos, o dobro de sua capacidade de 750 vagas. Segundo inspeção realizada em setembro de 2016 pelo Conselho Nacional de Justiça, o presídio se encontrava em péssimas condições, com uma maioria de presos provisórios (932) e sem a separação de presos de acordo com o regime de cumprimento de pena, em contrariedade ao que determina a Lei de Execução Penal.
O complexo penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, abrigava 1.224 detentos, mas sua capacidade é de 454 presos, o que representa um excedente de 170%, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas.
Da mesma forma, ocorreu com outras contagens de corpos no sistema penitenciário brasileiro: em maio e outubro do ano passado, no Acre (4 mortos e dezenas de feridos) e no Ceará (14 mortos); entre 2013 e 2014, no complexo penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão (41 mortos); em 2002 e em 2004, no Urso Branco, em Rondônia (45 e 16 mortos, respectivamente); no Carandiru, em São Paulo, em 1992 (111 mortos). Todas as unidades registravam índices de encarceramento maiores que as disponibilidades de vagas.
Nos casos levados ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos – Urso Branco e Pedrinhas –, a Corte Interamericana entendeu que as causas dos massacres estavam ligadas à superlotação das unidades prisionais. A superlotação gera a ausência de condições dignas de cumprimento de pena e dificulta a garantia de direitos. Na prática, o encarceramento em massa é acompanhado por uma cultura de esquecimento do preso e de silenciamento das péssimas condições a que está submetido.
Apesar de ser alardeada por grande parte da “criminologia midiática” [1] brasileira como um problema de falta de vagas, a superlotação carcerária em todo o país está ligada a uma lógica de superencarceramento: a superlotação existe porque se encarcera cada vez mais. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional, o número de pessoas privadas de liberdade aumentou 575% de 1990 a 2014.
“Encarcerar mais” é uma ação que se dá em diversas frentes; é o resultado de políticas criminais legislativas, executivas e judiciárias recrudescedoras, ou redutoras de garantias, como o recente decreto de indulto editado pelo presidente não eleito Michel Temer, que acaba com a possibilidade de comutação de penas e reduz drasticamente as hipóteses de concessão de indulto; ou jurisprudências como a súmula 582 do STJ [2], que praticamente acaba com a possibilidade de tentativa no crime de roubo – ambas, aumentam, na prática, as possibilidades temporais de permanência no cárcere, contribuindo, assim, para o superencarceramento. Políticas criminais que se baseiam em uma ideia de eficientismo penal: a ideia de que “a prisão funciona” e é o instrumento eficaz de combate ao crime, ancoradas numa perspectiva de defesa social.
Da mesma forma, o papel desempenhado pelos atores do sistema de justiça criminal – com suas visões de mundo, crenças, valores, ideologia – no desenvolvimento processual tem fundamental relevância nessa engrenagem que opera tendo o rigor punitivo como pressuposto e desemboca no abarrotamento de prisões. A materialidade linguística dos processos criminais daqueles mortos certamente enuncia ilegalidades e violências estruturantes de uma prática judiciária (que se articula com a prática penitenciária) supressora de garantias fundamentais de (não-)pessoas, representadas como “outro-criminalizado”.
Zaffaroni identifica a América Latina, por seu passado colonial, como imensa instituição de sequestro[3]. Achile Mbembe aponta a colônia como lugar onde se exerce um poder à margem da lei, onde se pratica um tipo de violência mais excessiva: a necropolítica. “Característica mais original desta formação de terror é a concatenação de biopoder, estado de exceção e estado de sítio”[4].
Ao se desvelar a atuação subterrânea processual penal, (re)produtora do racismo institucional, fica demonstrado como se realiza o corte entre “quem deve morrer e quem deve viver” [5], que na colônia não é bio, mas, necropolítico.
[1] A expressão é de Zaffaroni, para se referir aos meios de comunicação de massa como integrantes das agências do sistema penal. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. A palavra dos mortos. São Paulo: Saraiva, 2012.
[2] Súmula 582 do STJ: “Consuma-se o crime de roubo com a inversão da posse do bem mediante emprego de violência ou grave ameaça, ainda que por breve tempo e em seguida à perseguição imediata ao agente e recuperação da coisa roubada, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada”.
[3]ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
[4]MBEMBE, Achile. Necopolítica. Espanha: Melusina, 2011.
[5]FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975/1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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