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OPRESSÕES

Xuxa no país do Carandiru

Gabriel Santos, Maceió, AL
(Foto: EBC — Reprodução/Internet)

Será que o juiz aceitou a apelação? – Racionais MC’s em Diário de um Detento

“Eu tenho um pensamento que pode parecer muito ruim para as pessoas, desumano. Na minha opinião, existem muitas pessoas que fizeram muitas, muitas coisas erradas e estão aí pagando pelos seus erros num ad eternum, para sempre em prisões. Poderiam ajudar nesses caso. Aí vai vir um pessoal dos Direitos Humanos e dizer que ‘não, eles não podem ser usados’. Mas acho que se são pessoas que está provado que irão passar sessenta anos na cadeia, cinquenta anos na cadeia e que irão morrer lá, acho que poderiam usar ao menos um pouco da vidas delas para ajudar outras pessoas. Provando remédios, vacinas, provando tudo nessas pessoas. Pelo menos serviriam para alguma coisa antes de morrer, para ajudar a salvar vidas”. Essa frase foi dita por Xuxa Meneghel, empresária e uma das mais conhecidas apresentadoras da televisão brasileira, durante uma live em defesa dos animais nesta sexta (26), no canal da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Para criticar o teste que empresas de cosméticos e farmacêuticas realizam em animais, Xuxa, uma das maiores celebridades de nosso país, achou normal sugerir que estes testes fossem realizados em seres humanos privados de liberdade e sob custódias do Estado.

Era a brecha que o sistema queria, avise o IML, chegou o grande dia

O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. São 800 mil pessoas privadas de liberdade. Celas lotadas, insalubres, mal ventiladas, violência, maus tratos, pessoas espremidas, sujeitas a alimentação e condições de higiene inadequadas, sem condições de dignidade humana, como o próprio STF apontou. As prisões são um depósito de gente, existem vagas no sistema prisional para 437 mil pessoas, isso significa que temos uma superlotação de 166%.

Como cantou Mano Brown, no país da calça bege, sempre existe mais uma vaga. Em nosso país, diferente do que é alardeado por muitos, se encarcera muitas pessoas, e esses encerramentos seguem uma lógica e um objetivo. Mais de um terço da população carcerária é formada por presos provisórios, ou seja, por pessoas que sequer foram condenadas. Mais de dois terços são de pessoas negras. E a maior parte dos crimes são de tráfico de drogas por pequenas quantidades, e crimes de bagatela.

O sistema prisional brasileiro é uma máquina de moer gente, definiu Renato Vitto, ex-diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). É um local que termina por servir como um depósito de pessoas encontradas à margem da sociedade por conta da lógica de reprodução da sociedade brasileira, efetuado de forma consciente pelo Estado brasileiro e de nossas elites. Assim, pessoas negras e periferias terminam por superlotar o sistema prisional.

Dentro do sistema, vale apontar alguns dados sobre a saúde da população carcerária. A taxa de suicidio de mulheres encarceradas é 2.000% maior que a de mulheres fora do sistema prisional. Um outro dado que expõe as condições degradantes é a de um surto de

tuberculose dentro das prisões. Em 10 anos esta doença atingiu 35.000% a mais pessoas dentro do cárcere do que fora dele.

Estas condições desumanas deveriam chocar e buscar reflexões. O porquê desta superlotação? Porque tantas pessoas negras são presas? Qual a consequência da política de aprisionamento em massa e da Guerra às Drogas para a sociedade? Porém, todas estas questões parecem não incomodar tanto nosso governo, nossas elites, e pessoas como Xuxa.

Adolf Hitler sorri no inferno

Infelizmente a ideia de Xuxa de usar seres humanos como cobaias não é uma ideia inovadora. Em abril do ano passado, cientistas franceses defenderam que africanos deveriam ser usados em experimentos para testar vacinas e medicamentos contra a COVID-19.

Durante o período nazista, médicos faziam experimentos com pessoas que eram considerada inferiores, como judeus, poloneses, ciganos, soldados soviéticos capturados. Estas pessoas sofrem com traumas, sequelas, desfigurações, e muitas vezes morriam como consequência destes experimentos. Era a lógica de que pessoas sem valor social, deviam ser usadas para algo que pudessem servir ao restante da sociedade de valor (os arianos).

Na dita maior democracia do mundo, os Estados Unidos, tivemos o caso do Estudo Tuskegee. Onde durante mais de 40 anos o Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos (SPS), na cidade de Tuskegee no Alabama, buscou observar a evolução natural da sífilis. Foram usadas pessoas negras como cobaias, sem que as mesmas soubessem que seus corpos estavam servindo para tal estudo que teve como consequência a morte de 400 pessoas negras adultas e outras dezenas de crianças que nasceram doentes.

Outro caso é o de Dr. Mario Sims, até hoje considerado o pai da ginecologia moderna. Ele usava mulheres negras e crianças negras escravizadas como cobaias, aprimorando suas técnicas em seus corpos, negando para estas mulheres qualquer anestesia ou tratamento para dor.

Usar seres humanos como experimentos é algo sério, e não pode ser tratado de forma banal, como fez Xuxa. Inclusive se tornou prática proibida pela Organização Mundial de Saúde no meio do século passado. Esta ideia de seres humanos como experimentos carregam em si uma questão racial profunda, pois os corpos que viram cobaias, são corpos considerados descartáveis, e esta lógica sobre quem merece viver ou não, é vista a partir da ótica racial. São ideias que remetem ao supremacismo branco, e a ações de nazistas, e dos senhores de escravos.

Não é difícil imaginar qual a cor de pele e o CEP das pessoas que Xuxa pensou quando se referiu aos presidiários. Pessoas negras são presas em maior número, e em diversos casos de forma injusta. São parte majoritária dos presos que sequer receberam julgamentos. Logo elas estariam mais propensas a serem usadas como cobaias nesses experimentos. O nosso sistema de justiça criminal se retroalimenta a partir da lógica do racismo estrutural, e

este sistema é usado como uma forma de controle social. Desde o período que o primeiro africano desembarcou deste lado do Atlântico, nossas elites brancas pensam formas de controlar a população negra. O encarceramento em massa, o sistema prisional e a forma que se desenvolve a justiça prisional é uma dessas formas de controle.

O pensamento racista de Xuxa seria mais uma desta forma de controle de corpos. Ela parte da ideia da existência de corpos que são um atraso e descartáveis, que não merecem direitos básicos. Este discurso termina por reforçar o imaginário que nossas elites têm de si, como super-humanos, puros, desprovidos de maldade, e detentores de poderes que determinam quem merece dignidade ou não. A partir da lógica de Xuxa, nossa elite branca descendente de donos de escravizados, reforça para si sua imagem de superioridade social e racial em comparação ao resto da população.

Xuxa, ao ver que sua posição foi bastante criticada, logo “reconheceu o erro”, afirmando que acabou misturando assuntos e falou demais de uma forma que não gostaria. Para Xuxa, o problema foi a forma que ela falou, não a ideia em si. Essa ela mantém, pois não se trata de um descuido, para ela, assim como para nossas elites, uma parcela de nossa população vale menos que um cachorro. Uma parcela que tem cor e classe. Mano Brown já cantava “o ser humano é descartável no Brasil. Xuxa só mostrou o que já sabíamos: a ética do supremacismo branco, da escravização e do colonialismo, são coisas intrínsecas às nossas classes superiores.