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BRASIL

Sistema prisional e coronavírus: mais do mesmo nas escolhas político-criminais

Eduarda Garcia, de Porto Alegre, RS
Marcelo Casa/Agência Brasil

Estamos em meados de abril e, após as primeiras observações sobre impactos da chegada do Coronavírus no Brasil feitas ainda em março, já é possível observar os desdobramentos iniciais, assim como a correlação de forças e atuação das instituições e sociedade civil no que tange à população prisional.

O Ministério da Justiça, na figura de Sérgio Moro, lavou as mãos com álcool gel, nada propôs, apenas se enredou em fake news. Já o Supremo Tribunal Federal após a revogação da liminar concedida no âmbito da ADPF 347/2015, continua em silêncio. Continuamos nos apoiando na singela Recomendação Nº 62, emitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 17/03.

Chegamos ao ponto de, em reposta a um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de SP, o Desembargador Alberto Anderson Filho fundamentar sua decisão negando o pedido de prisão domiciliar com tom de deboche, alegando que os únicos que estão protegidos do coronavírus são astronautas[1]. A Corregedoria do CNJ oficiou o magistrado para que esclareça linguagem utilizada em sua decisão.

Em 27/03, no parecer do GT do Conselho Regional de Medicina do RS, em resumo, foi dito ser necessário que os custodiados, principalmente aqueles do grupo de risco, mantenham-se recolhidos no Sistema Prisional, pois lá são monitorados. Tal parecer foi objeto de nota de repúdio emitida pela Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (AbracrimRS)Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (Acriergs) expondo a ausência de cientificidade nas alegações.

Não nos surpreende que tal parecer seja utilizado por Promotores Públicos da execução penal para justificar que a concessão de domiciliar humanitária (PDH) deve ocorrer apenas em caso de detentos já contaminados pelo Covid-19, estando o restante “mais seguro dentro do sistema prisional do que fora, visto estarem sob isolamento social forçado”. Aliás, não contente, o Ministério Público do Rio Grande do Sul impetrou Mandado de Segurança (Nº 70084130947)[2] contra ato do Juízo da 2ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre em ação coletiva da Defensoria Pública do Estado em que se pede PHD a todos os presos do grupo de risco. Em 08/04, a 7ª Câmara Criminal do TJ/RS deferiu medida liminar para suspender todos os defeitos da decisão.

No mesmo dia, um caso de COVID-19 foi divulgado pela Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará, assim como no Distrito Federal, Rio Grande do Sul e em tantos outros estados. Neste momento é preciso máxima transparência nas ocorrências, apesar de não termos dados unificados entre as regiões do Brasil. À nível de Brasil, os dados do CNJ são alarmantes quanto ao grupo de risco[3].

As medidas de desencarceramento como combate à proliferação de Covid-19 não significam desleixo com a responsabilização penal, mas sim uma questão humanitária, de garantia do direito à vida e à saúde previstos na Constituição Federal e Lei de Execução Penal. O Judiciário deve levar em consideração não apenas os presos do grupo de risco, mas também os presos provisórios cujas medidas cautelares devem ser revisadas a cada 90 dias, de acordo com o Código de Processo Penal, assim como os detentos que já possuem direito à progressão de regime, a saídas especiais, livramento condicional, extinção de punibilidade, etc.

Nem mesmo uma pandemia altera o atual paradigma de política criminal no Brasil. A denúncia da realidade prisional é fundamental, mas ressaltar as diversas iniciativas positivas e de solidariedade, apesar da inoperância das superestruturas do Poder Público, também é preciso.

O Instituto Pro Bono abriu seleção voluntária para 50 estudantes e 150 advogados/as para realização de mutirão carcerário e redação de Habeas Corpus para presos provisórios que estão no grupo de risco.  Em Porto Alegre, temos atuado via Frente Quilombola no mesmo sentido. Auto-organização de pessoas e instituições como a Pastoral Carcerária levam produtos de higiene e limpeza a presídios.

Renda básica universal, auto-organização de movimentos sociais, periferias e coletivos na distribuição de cestas básicas e vakinhas virtuais farão a diferença frente à quase paralisação do Estado e grandes empresas. Esperamos que neste caminho sejam tiradas as lições para a saída de uma crise estrutural que vai além do fato do contágio humano com o novo coronavírus, sendo consequência do atual modo de organizar a sociedade a partir de uma (ir)racionalidade capitalista e punitivista.

 

Notas:

[1]Dos cerca de 7.780.000.000 de habitantes do Planeta Terra, apenas três: ANDREW MORGAN, OLEG SKRIPOCKA e JESSICA MEIER, ocupantes da estação espacial internacional, o primeiro há 256 dias e os outros dois há 189 dias, portanto há mais de 6 meses, por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado CORONA VIRUS”

[2] Art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal: “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.

[3] No sistema carcerário brasileiro, os cerca de 9,7 mil homens e mulheres maiores de 60 anos representam o triplo do número de vagas destinadas a esse público, 2.919. Outros grupos de risco incluem 8,8 mil tuberculosos e 7,7 mil portadores do vírus HIV, além de 13,6 mil doentes de outras enfermidades contagiosas, como sífilis e hepatite.