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MUNDO

O público israelense abraçou a doutrina Smotrich

A interiorização do “Plano Decisivo” do ministro de extrema-direita é evidente pelo apoio popular a um novo ultimato para Gaza: emigração ou aniquilação

Orly Noy, do portal +972 Magazine. Tradução de Waldo Mermelstein, do Esquerda Online.
Chaim Goldberg/Flash90

O ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, chega a uma conferência do governo no gabinete do primeiro-ministro em Jerusalém, em 27 de setembro de 2023. (Chaim Goldberg/Flash90)

Há seis anos, Bezalel Smotrich, então um jovem membro do Knesset em seu primeiro mandato, publicou seu “Plano Decisivo” – uma espécie de “estágio final” do conflito israelense-palestino. De acordo com o parlamentar de extrema direita, que agora atua como ministro das Finanças de Israel e déspota em nome do governo na Cisjordânia, a contradição inerente entre as aspirações nacionais judaicas e palestinas não permite qualquer tipo de compromisso, reconciliação ou divisão. Em vez de manter a ilusão de que um acordo político é possível, defendeu, a questão deve ser resolvida unilateralmente de uma vez por todas.

O plano faz apenas referências passageiras a Gaza, com Smotrich parecendo contente com o confinamento do enclave por Israel como uma solução ideal para o que ele chama de “desafio demográfico” representado pela própria existência dos palestinos. Em relação à Cisjordânia, no entanto, ele pede a anexação de sua totalidade.

Neste último território, as preocupações demográficas serão amenizadas oferecendo aos 3 milhões de residentes palestinos uma escolha: renunciar às suas aspirações nacionais e continuar vivendo em suas terras em um status inferior, ou emigrar para o exterior. Se, em vez disso, eles optarem por pegar em armas contra Israel, serão identificados como terroristas e o exército israelense começará a “matar aqueles que precisam ser mortos”. Quando perguntado em uma reunião, na qual apresentou seu plano a figuras sionistas- religiosas, se ele também queria matar famílias, mulheres e crianças, Smotrich respondeu: “Na guerra como na guerra”.Na medida em que recebeu alguma atenção pública, o Plano Decisivo tem sido percebido desde sua publicação como delirante e perigoso até mesmo entre os principais comentaristas políticos israelenses. No entanto, um exame da mídia e do discurso político israelenses atuais  mostra que, quando se trata do atual ataque do exército a Gaza, grande parte do público internalizou completamente a lógica do plano de Smotrich.

Na verdade, a opinião pública israelense em relação a Gaza, onde a visão de Smotrich está sendo implementada com uma crueldade que nem ele pode ter previsto, é agora ainda mais extrema do que o próprio texto do plano. Isso porque, na prática, Israel está retirando da pauta a primeira possibilidade oferecida – de uma existência inferior e despalestinizada – que até 7 de outubro era a opção escolhida pela maioria dos israelenses.

Soldados israelenses vistos atrás da fronteira de Kibbutz Be’eri, perto da fronteira Israel-Gaza, sul de Israel. 25 de outubro de 2023 (Yossi Zamir/Flash90)

Emigração ou aniquilação

O total assombro com o brutal ataque do Hamas, e a recusa em compreendê-lo no contexto de décadas de opressão, refletem uma posição israelense que genuinamente se pergunta por que os palestinos não se apegaram à sua condição de prisioneiros em Gaza, dizendo obrigado pela generosidade de Israel em permitir que algumas milhares de pessoas trabalhassem por salários mínimos nas terras das quais suas famílias foram expulsas, e ofereçam flores a seus ocupantes.

De fato, quantos israelenses se preocupam com a situação em Gaza enquanto os palestinos não dispararem foguetes ou romperem a cerca para entrar em nossas comunidades? Quem se preocupou em perguntar como é a “calma” no enclave sitiado? Para a maioria dos judeus israelenses, os mais de 2 milhões de palestinos em Gaza deveriam ter mantido a boca fechada e abraçado sua fome. Mas hoje, mesmo essa opção já não é satisfatória, deixando os israelenses se unirem por trás de um novo ultimato para Gaza: emigração ou aniquilação.

No discurso atual, a emigração é frequentemente apresentada como uma consideração humanitária, permitindo generosamente que civis palestinos deixem a área de hostilidades. Na realidade, cerca de três quartos da população de Gaza foram deslocados à força desde 7 de outubro, principalmente do norte, e o exército israelense continua a bombardeá-los em todas as partes da Faixa.

Alternativamente, a emigração é proposta sob a forma de planos de transferência em massa de palestinos para fora da Faixa, que estão sendo seriamente considerados por altos funcionários israelenses e formuladores de políticas. Para parte significativa do público israelense, os palestinos são mais fáceis de serem deslocados do seu lugar do que os móveis em uma sala de estar.

Palestinos fogem de suas casas na Cidade de Gaza em direção à parte sul da sitiada Faixa de Gaza, em 10 de novembro de 2023. (Atia Mohammed/Flash90)

Dado que expulsar a população de Gaza faz todo o sentido para a maioria dos israelenses, a recusa dos palestinos em submeter-se ao poder do regime israelense é percebida como uma ameaça existencial e uma razão suficiente para a sua aniquilação. É verdade que os horríveis massacres de 7 de Outubro do Hamas em comunidades civis violaram o que deveria ser o âmbito da resistência legítima à opressão, mas a grande maioria dos israelenses estava totalmente bem com franco-atiradores   matando e mutilando palestinos que se manifestaram em massa na cerca de Gaza durante a Grande Marcha do Regresso. Aos seus olhos, nenhuma forma de protesto contra a ocupação é legítima.

Não é apenas a lógica de Smotrich que se instalou no coração do público desde 7 de outubro, mas também sua retórica. Em sua introdução ao Plano Decisivo, Smotrich escreve: “A afirmação de que ‘o terrorismo deriva do desespero’ é uma mentira. O terrorismo deriva da esperança – uma esperança de nos enfraquecer.” O público israelense abraçou igualmente a dissociação do vínculo entre o terrorismo, por um lado, e o desespero e a luta, por outro; no clima atual, qualquer tentativa de mencionar essa conexão é imediatamente denunciada como justificativa para os crimes do Hamas.

A terrível smotrichização do público israelense está materializada na total disposição de sacrificar a vida do último palestino em Gaza em nome da vitória final que o ministro de extrema direita prometeu em seu plano. É a terrível indiferença pelo número astronômico de crianças mortas e a completa internalização da ideia de que qualquer pensamento de luta e liberdade do outro lado da cerca deve ser extinto, não importa a que custo humano.

Este processo não vai parar e não pode ser interrompido na cerca de Gaza. A lógica de Smotrich já está se infiltrando na abordagem do Estado em relação aos seus próprios cidadãos palestinos, que têm enfrentado níveis  de perseguição e repressão que lembram o regime militar de 1949-66. Não é por acaso que as vozes desta comunidade estão quase completamente ausentes da esfera pública nos dias de hoje; estão sujeitos a detenções e acusações por simplesmente afirmarem a sua identidade nacional.

Em um país onde postar um vídeo de shakshuka ao lado de uma bandeira palestina leva ao encarceramento, o processo de smotrichização e internalização de sua lógica “decisiva” já foi concluído. As implicações disso para a possibilidade de reabilitar a sociedade doente de Israel após a guerra, e relançar as bases para a luta por uma sociedade em comum, são difíceis de imaginar.

Orly Noy é editora da Local Call, ativista política e tradutora de poesia e prosa farsi. Ela é presidente do conselho executivo do B’Tselem, Centro Israelense de Informações sobre os Direitos Humanos nos Territórios Ocupados, e ativista no partido político israelense Balad. Sua escrita trata das linhas que se cruzam e definem sua identidade como Mizrahi (judia oriental), esquerdista e mulher, uma migrante temporária que vive dentro de um imigrante perpétuo, e o diálogo constante entre essas identidades.

Texto original.