Em uma entrevista de 60 minutos, menos de uma semana após o ataque do Hamas ao sul de Israel, que matou mais de 1.400 israelenses e viu mais de 200 sequestrados para a Faixa de Gaza, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que o movimento islâmico palestino “se envolveu em uma barbárie que é tão relevante quanto o Holocausto”. A avaliação se somou a um rol de declarações de políticos e comentaristas israelenses, americanos e de outros países, que vincularam explicitamente os massacres de 7 de outubro ao genocídio nazista, seja citando os ataques como a maior perda de vidas judaicas desde a Segunda Guerra Mundial, seja retratando o Hamas como sucessores nazistas ou nazistas.
A enviada por Biden para monitorar o antissemitismo, Deborah Lipstadt, por exemplo, tuitou no dia seguinte ao ataque que este foi “o ataque mais letal contra judeus desde o Holocausto” e, pouco tempo depois, o Museu do Holocausto dos EUA publicou um tuíte semelhante. Políticos israelenses também ajudaram a impulsionar esse discurso. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse ao chanceler alemão Olaf Scholz na semana passada que “o Hamas são os novos nazistas (…) E assim como o mundo se uniu para derrotar os nazistas… o mundo tem que estar unido atrás de Israel para derrotar o Hamas.” Netanyahu expressou sentimentos semelhantes ao presidente francês, Emmanuel Macron, na terça-feira.
O valor retórico de carimbar seus inimigos como nazistas – o que a direita israelense e seus apoiadores frequentemente fazem quando se fala em falar sobre palestinos – é a maneira como sugere, implícita ou explicitamente, que há apenas um curso de ação lógico, até mesmo moral: a eliminação completa dos designados como nazistas e de qualquer pessoa que seria considerada afiliada a eles.
Assim o discurso atual é inundado de apelos descarados por genocídio e limpeza étnica, emitidos a partir de um leque angustiantemente amplo de fontes, e alimentado pela ideia de que, nas palavras de um colunista do jornal mais lido de Israel, “o Hamas e os habitantes de Gaza são a mesma coisa”.
De fato, a invocação constante do Holocausto parece ter feito pouco para sensibilizar aqueles que pedem a destruição de Gaza para as lições do Holocausto. Além das exigências de assassinatos em massa vingativos e das abundantes referências aos palestinos como “animais”, imagens nazistas também têm circulado entre hasbaristas (1) nas redes sociais; em um desenho que poderia ter saído direto de Der Stürmer (2), uma bota das IDF (Forças de “Defesa” de Israel é retratada prestes a pisar em uma barata com a cabeça de um combatente do Hamas.
A ironia é transparente e grotesca: o próprio tipo de propaganda obscena que ajudou a alimentar atrocidades inimagináveis está sendo adotado para, ostensivamente, evitar uma repetição dessa mesma história – e justificar os assassinatos em massa e punições coletivas a uma etnia que estão em curso.
É cruel, num momento em que há uma preocupante deterioração do conhecimento sobre o Holocausto, testemunharmos que a memória do Holocausto esteja sendo aplicada como uma faca de dois gumes. O que deveria ser um conjunto universalista de lições aplicadas a atrocidades em todos os lados está sendo distorcido para validar objetivos violentos e etnonacionalistas. Como enfatizaram as centenas de manifestantes judeus e os que se associaram a eles que lotaram o Capitólio dos EUA na semana passada para protestar contra a guerra de Gaza, “nunca mais significa nunca mais para ninguém”.
De fato, se o legado do Holocausto for interpretado no sentido de dar a Israel carta branca para enjaular, bombardear, matar de fome, desidratar e, de outra forma, exercer poder necropolítico sobre os 2,3 milhões de palestinos em Gaza – quase metade deles crianças – então “nunca mais” não soa apenas como falso. Torna-se um apelo à violência descontrolada, um grito de guerra numa campanha de retaliação que visa a eliminação.
Essa “holocaustização” do que está acontecendo em Israel-Palestina coloca a todos nós – judeus, palestinos, aqueles na região e na diáspora – em um precipício perigoso. Operar nesse quadro, segundo a sua lógica interna, é condenar-nos a uma guerra de soma zero, cujos termos são claros e devastadores: um conflito que só pode ser resolvido pela aniquilação de um lado ou de outro. É uma receita para o derramamento de sangue perpétuo – uma exortação, nas palavras de Netanyahu, a “viver para sempre pela espada”.
Não é preciso ir muito longe para encontrar evidências de que essa mentalidade está a caminho de ter uma aceitação mais ampla. O Departamento de Estado dos EUA instruiu seus diplomatas a evitar o uso de palavras como “cessar-fogo” ou “desescalada”. Um venerado grupo judeu de 122 anos em Boston acaba de ser expulso da organização judaica da cidade depois de participar de um protesto pedindo um cessar-fogo. Em uma guerra que foi adaptada a um modelo do Holocausto, um apelo para parar de matar mais agora é interpretado como fracasso moral.
Qual é, então, o objetivo aqui? Quanta ruína em Gaza, que está se espalhando para a Cisjordânia, é considerada necessária? E mesmo quando a matança em massa terminar, o que fazer? Enquanto não houver uma solução política – uma opção que este enquadramento do Holocausto torna impossível – a violência catastrófica persistirá. E vai, como a história recente mostrou, piorar muito.
É verdade, como observou Adam Shatz na London Review of Books, que há mais do que mero cinismo em jogo nas comparações do Holocausto que proliferam à nossa volta, sobretudo pelos israelenses e pelos próprios judeus da diáspora: como ele bem aponta, os ataques do Hamas iluminaram “a parte mais brutal da psique [dos judeus]: o medo da aniquilação”. A ativação desse medo está agora sendo exacerbada por relatos ameaçadores de ataques antissemitas em vários países, de violência interpessoal a sinagogas sendo atacadas e até parcialmente destruídas.
Esse reconhecimento, no entanto, não diminui os perigos de retratar os militares israelenses como estando presos em uma luta à morte contra um mal extremo. Além disso, dada a enorme assimetria entre as capacidades militares israelenses e palestinas, e o fato de Israel ser apoiado por uma superpotência global, só há um lado nesta equação que está sendo ameaçado de potencial genocídio, os palestinos.
Isso em nada contradiz o fato de que, como o Hamas impiedosamente demonstrou em 7 de outubro, os judeus israelenses estão pagando cada vez mais um preço pelos contínuos abusos de Israel. Como meus colegas Meron Rapoport e Amjad Iraqi escreveram na revista +972, os ataques dissiparam definitivamente a ilusão de que Israel pode para sempre subjugar, segregar, deslocar e executar sumariamente palestinos com uma reação mínima. Mas, por mais assustadores e chocantes que tenham sido os ataques de 7 de outubro, eles não são um indicador de que os judeus – em Israel ou em qualquer outro lugar – enfrentam a violência em massa apoiada pelo Estado da maneira que os palestinos o fazem e o tem feito há décadas.
Os palestinos, sobretudo os de Gaza, estão sob a ameaça muito real de uma segunda Nakba, se é que a Nakba tenha em algum momento terminado. Os ecos de 1948 estão em todo lado: mais de 7.000 palestinos mortos em três semanas de ataques aéreos israelenses e 1,4 milhão de deslocados; bairros arrasados e “cidades de barracas”; conversas sobre expulsões em massa para o Sinai e a disputa política sobre o destino de potenciais refugiados. Aqui, a história se repete. Além disso, assim como as comunidades judaicas em todo o mundo, as comunidades muçulmanas também estão enfrentando um aumento nos crimes de ódio violentos.
Há, portanto, duas questões imediatas em jogo: acabar com os bombardeios a Gaza e garantir a libertação de reféns israelenses e outros mantidos em cativeiro lá. Invocar o Holocausto nas atuais circunstâncias terríveis não nos aproxima desses objetivos – apenas os afastam ainda mais. Pode dar a ilusão de conceder autoridade moral e clareza aos procedimentos, mas em uma guerra que já matou mais de 8.000 pessoas cujo número segue crescendo, tais afirmações são enganosas na melhor das hipóteses e cínicas, na pior. Certamente, com toda a discussão atual sobre o Holocausto, poderíamos honrar seu legado melhor do que desta forma
Natasha Roth-Rowland é editora e escritora da Revista +972 Magazine. Ela é doutora em História pela Universidade da Virgínia e escreveu sua dissertação sobre a história da extrema direita judaica em Israel-Palestina e nos Estados Unidos. Natasha anteriormente passou vários anos como escritora, editora e tradutora em Israel-Palestina, e agora em Nova York.
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