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MUNDO

A continuidade da Constituição “Pinochet-Guzman-Lagos” se consolida após o triunfo da ultradireita

Raul Devia Ilabaca, San Antonio (Chile)*, com tradução de Celia Barbosa

No Chile, no dia 7 de julho de 2023, foi instalado um novo conselho constituinte, que ratifica o avanço da extrema direita representada no Partido Republicano, cujo representante máximo e figura pública é o ex-candidato presidencial e futuro candidato ao mesmo cargo, José Antonio Kast. Com seu estilo “Trump – Bolsonaro”, e seu próprio partido, deram uma maioria esmagadora ao Partido Republicano de extrema-direita, com 22 conselheiros constituintes eleitos de um total de 50. 

Com os outros 11 votos obtidos pela direita tradicional (UDI; RN; EVOPOLI), foram reunidos os votos suficientes para terem maioria absoluta na constituinte. Na instalação da mesa que presidirá este conselho, impuseram, com esses 33 votos, que uma jovem mulher, advogada, conservadora, conselheira de Kast, “BEATRIZ HEVIA seja a presidenta. Os que apóiam o Governo (Socialistas; Comunistas e Frente Ampla) só obtiveram 16 conselheiros constituintes, e elegeram a vice-presidência desse espaço, um acadêmico, ex-reitor da universidade e social-democrata.

As diferenças com a Convenção Constitucional são abismais. Só para dar um exemplo, os povos originários conseguiram incorporar “UM CONSELHEIRO”, ou seja, temos um conselho constituinte de 51 membros, a convenção tinha 155. Outro exemplo é quem preside este conselho e quem presidiu a Convenção: hoje é Beatriz Hevia, advogada, conservadora, ultra-direita, loira, branca; a anterior era “Elisa Loncon”, Doutora, Acadêmica, Mapuche, representante de todos, que foram eleitos pelos próprios povos originários, que habitam o território do Chile.

Como é que o Chile mudou tanto em três anos? Como é que podemos entender esta bipolaridade na realidade política chilena, depois da explosão social que questionou as bases profundas do neoliberalismo, que reinou durante trinta anos, quando milhões de nós marchamos nas ruas para derrubar os pilares da ditadura, que permaneciam de pé, que conseguimos encurralar o congresso e o governo de Piñera, com um processo constituinte exemplar, com paridade de género, com povos indígenas com assentos reservados e uma lista de independentes representando a diversidade dos movimentos sociais, ambientais e feministas, no qual 155 deputados constituintes debateram durante um ano e apresentaram um texto que foi elogiado em todo o mundo? Mas a chamada “Classe Política”, com os poderes fáticos, económicos, empresariais e os donos dos meios de comunicação social, conseguiram com as suas fake news que num plebiscito de saída em que votaram a aprovação ou a rejeição, no qual, pela primeira vez na história do país, com registo automático e voto obrigatório, levaram cerca de 15 milhões de chilenos às urnas através, e a maioria rejeitou 0 projecto de constituição do século XXI, com 62% contra, e 38% que acreditavam que esta era a futura transformação do Chile.

Como entendemos esse novo processo constituinte? Por quê? Após a derrota do Plebiscito de 4 de setembro de 2022, que na prática significou o encerramento do ciclo político aberto com a eclosão de outubro de 2019, o governo Boric, juntamente com a direita tradicional, a UDI e até mesmo o Partido Comunista chegam a um acordo parlamentar para fazer uma nova reforma constitucional, que abre as portas para um processo, limitado, tendencioso, liderado pelo Congresso (NT: de maioria da direita), com limites e bases constitucionais que garantem a manutenção de seus privilégios e da oligarquia no poder.

Para isso, devemos ir à fonte: em 12 de dezembro de 2022, a Lei 21533 é aprovada no Congresso Nacional, com o apoio quase unânime dos partidos com representação parlamentar, exceto dos republicanos, que não fizeram parte desse acordo e cuja tese era manter em vigor a Constituição que Jaime Guzmán e uma comissão de Ortuzar propuseram à Junta de Governo, com seu ditador Pinochet, que foi aprovada em 1980, sob o regime militar.

Pois bem, este acordo e reforma constitucional de Dezembro do ano passado abre a porta a esse processo constituinte gerido, dirigido e canalizado entre o Governo de Boric e o Parlamento, que fecha a porta à participação das pessoas e dos povos originários no mesmo, através dos mecanismos definidos na Lei 21.533, nomeadamente os seguintes

a) São estabelecidas 12 bases ou pilares fundamentais, limites que não podem ser transgredidos durante o processo.

b) Uma Comissão Técnica de Admissibilidade, composta por 14 membros, é nomeada pelo Parlamento, o pleno do Congresso, Câmara dos Deputados e Senadores, que supervisionará e determinará se as regras propostas estão em conformidade com os limites impostos.

c) São nomeados 24 especialistas, propostos pelos partidos políticos com base na sua representação parlamentar, 12 na Câmara dos Deputados e 12 no Senado, que sejam militantes ou simpatizantes desses partidos e que sejam aprovados por unanimidade por ambas as câmaras, cuja missão será redigir uma proposta de Constituição, “Constituição a ser entregue ao órgão eleito de conselheiros constituintes” e participar no processo constituinte até ao fim.

d) É realizada uma eleição de 50 conselheiros constituintes, com base nos círculos eleitorais senatoriais, com base em candidatos de pactos eleitorais de partidos políticos ou independentes, individualmente e não em listas, e o mesmo para os povos nativos, candidatos individuais, de modo que a base desses conselheiros eleitos são os partidos tradicionais e não os povos organizados.

e) Estes órgãos interagem entre si, com textos redigidos pelos 24 especialistas, e revistos pela comissão técnica de admissibilidade, para se certificarem de que cumprem as 12 bases fundamentais determinadas a priori pelos partidos políticos, de modo a que um texto constitucional definitivo seja aprovado pelo conselho constitucional já eleito de 51 membros, entre 7 de junho e 7 de dezembro de 2023.

f) Para as normas sobre as quais não há acordo, terão de recorrer a uma comissão mista de 12 membros, escolhidos 6 da comissão de especialistas e 6 do conselho constituinte, para chegar a um acordo sobre uma proposta a ser levada ao texto definitivo, um texto constitucional que será plebiscitado.

g) Será realizado um plebiscito no dia 17 de Dezembro de 2023 para votar a favor ou contra o texto constitucional proposto por todas estas instâncias aos cidadãos, uma votação com registo automático e voto obrigatório, ou seja, um universo eleitoral de cerca de 15 milhões de eleitores.

As instituições burguesas já estão funcionando, definidas pelos partidos políticos com representação parlamentar. O acordo assinado em dezembro de 2022 foi incorporado em sua totalidade. A partir de agora, com discussões a mais ou discussões a menos, da extrema direita e até do Partido Comunista, todos os conselheiros constituintes (50), mais especialistas (24), com a comissão técnica de admissibilidade (14), nos próximos cinco meses maquiarão o texto proposto por unanimidade pelos especialistas, e que foi entregue pomposamente, com um discurso do Presidente da República Gabriel Boric Font, o qual fez um chamado ao diálogo, com um olhar amplo, e a não se cometer “os erros da última convenção”, porque não há mais espaço para a discussão constituinte, chamando desde já a votar a favor do texto proposto pelos especialistas, pela “CLASSE POLÍTICA”, que excluiu os povos do território do Chile desse novo processo, fechando definitivamente, por enquanto, uma profunda mudança nas bases institucionais do Estado do Chile.

* Raul Devia Ilabaca é advogado e ativista social

Marcado como:
chile / constituição