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MUNDO

Os manifestantes israelenses realmente querem democracia?

Por Orly Noy, com tradução de Waldo Mermelstein
Um manifestante fica em frente a pneus em chamas na rodovia Ayalon, Tel Aviv. Dezenhas de milhares de manifestantes foram às ruas após o primeiro ministro Benjamin Netanyahu demitir o ministro da Defesa, Yoav Gallant, depois que ele pediu uma pausa na reforma judicial pelo governo
Oren Ziv/+972 Magazine

Um manifestante fica em frente a pneus em chamas na rodovia Ayalon, Tel Aviv. Dezenhas de milhares de manifestantes foram às ruas após o primeiro ministro Benjamin Netanyahu demitir o ministro da Defesa, Yoav Gallant, depois que ele pediu uma pausa na reforma judicial pelo governo

O verdadeiro teste dessa onda de protestos virá assim que a vitória for garantida: as multidões voltarão para casa ou pressionarão por mudanças radicais?

Após 13 semanas de protestos públicos inflamados e sem precedentes, a noite de domingo e a manhã de segunda-feira trouxeram consigo aspectos históricos: não apenas uma escalada contínua nas próprias manifestações, mas também o anúncio de uma greve geral pelos poderosos sindicatos de Israel; novas greves das universidades do país; e paralisações em embaixadas israelenses em todo o mundo. Essas cenas, juntamente com um possível anúncio do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de que ele está colocando seu golpe judicial em pausa, deram aos protestos de segunda-feira – especialmente aqueles fora do Knesset em Jerusalém – uma atmosfera diferente: menos medo e raiva, e mais uma rara sensação de realização. E com razão (1).

O fato de que os protestos podem conseguir suspender o golpe judicial, se não o impedir completamente, é um momento crítico para a sociedade civil israelense. Saber que um público tão grande está legitimamente se revoltando contra a ameaça de seus direitos fortalece grandemente a própria ideia de democracia.

Por outro lado, é difícil ignorar a sensação de déjà vu que acompanha esses protestos. Há menos de dois anos, um campo político comemorou a queda do governo de Netanyahu, após semanas de protestos que duraram quase tanto quanto a atual onda de manifestações. Naquele momento, também, a unidade dos protestos era contra algo – o regime de Netanyahu – e não a favor de alguma coisa. E então, como agora, os manifestantes acreditavam que o próprio caráter do Estado estava em jogo.

Mas o ponto mais crítico de todos é a compreensão dos manifestantes sobre o termo “democracia” – uma ideia em torno da qual eles se mobilizaram tão intensamente. Tanto nos chamados protestos de Balfour (2) quanto nos atuais contra o golpe judicial, a democracia era uma demanda central; apenas um grupo limitado, embora persistente, de manifestantes anti-ocupação procurou enfatizar as conexões entre a violação dos direitos palestinos nos territórios ocupados e a capacidade de Israel de manter um regime democrático.

Durante os protestos de Balfour, Oren Ziv, do [site] +972, conversou com uma série de manifestantes que asseguraram que a derrubada do regime de Netanyahu seria apenas o começo. Depois disso, disseram eles, começariam a trabalhar sobre outros males da sociedade e conseguiriam justiça para áreas onde ela estaria em falta. Se Netanyahu fosse afastado, afirmaram que não se deteriam. Mas eles pararam.

Graças aos esforços dos manifestantes anti-ocupação nas manifestações de Balfour, um número significativo de pessoas foi exposto pela primeira vez às injustiças da ocupação e começou a se interessar pela questão; alguns até se tornaram ativistas comprometidos que participam de protestos e continuam a acompanhar pastores palestinos na Cisjordânia ocupada até hoje. Mas, em geral, após a queda de Netanyahu, as multidões que tomaram as ruas foram para casa e saudaram o “governo da mudança”, que foi formado pouco depois, com um profundo sentimento de alívio.

Devido ao fato de esses protestos, desde o começo, se unificaram em torno da [ideia] de se livrar de Netanyahu e não chegaram a definir a alternativa desejada, o fato de que essa coalizão híbrida tenha agrupado veteranos opositores da ocupação, como Mossi Raz e Gaby Lasky, e falcões de extrema direita, como Naftali Bennett e Avigdor Liberman, foi visto como uma vitória. Esse mesmo governo, que comandou a duplicação na taxa de demolições de casas em Jerusalém Oriental ocupada e que foi responsável pelo ano mais mortal para os palestinos da Cisjordânia em quase duas décadas, acabou se sacrificando no altar da preservação do regime do apartheid nos territórios ocupados.

Tudo isso não é para recriminar as centenas de milhares de manifestantes que tomaram as ruas nos últimos meses, nem para questionar o significado do movimento de protesto. O objetivo é o de recordar a esses manifestantes que a realidade israelense exige uma mudança fundamental que vai muito mais além do que simplesmente impedir o golpe judicial, por mais maligno que ele seja. De fato, este governo está planejando aprovar leis e políticas que prejudicarão os grupos mais vulneráveis: expandir a autoridade dos tribunais rabínicos; cortes severos na habitação pública; uma maior privatização do sistema educativo; livrar-se da Rede Pública de Comunicações e muitas outras coisas. Não podemos deixar de observá-las na medida em que ocorram.

Mas a mudança que precisamos vai além dos planos desprezíveis deste governo. O movimento de protesto trouxe consigo uma oportunidade de falar a respeito dos axiomas mais básicos sobre os quais a sociedade israelense foi fundada e que continuam a animá-la mais de sete décadas depois. Mesmo que Netanyahu anuncie que está congelando temporariamente o golpe judicial – e mesmo que ele chegue ao ponto de anulá-lo inteiramente – nosso autoexame só terá começado, e as perguntas que teremos que responder serão profundas.

Se não compreendermos como chegamos a este ponto, estaremos nos condenando a ter exatamente a mesma situação no futuro — não muito diferente do que ocorreu na sequência dos protestos de Balfour. Se não nos perguntarmos honestamente onde estavam os cidadãos palestinos durante as manifestações de massas ou sobre o papel da linguagem nacionalista e militarista no protesto – que pode ter sido bem-sucedido taticamente, mas aprofundou ainda mais o fosso entre os cidadãos palestinos e judeus – não conseguiremos formular uma verdadeira democracia que deve incluir todos os cidadãos.

Se continuarmos a nos concentrar apenas nos aspectos processuais da democracia, como a composição dos comitês do Parlamento, ou a exigência do estabelecimento de uma Constituição, ignorando o conteúdo de tal documento (a saber, a verdadeira igualdade, liberdade e justiça), ficaremos mais uma vez com um arremedo de democracia. Se nos recusarmos a entender neste exato momento que a democracia não pode, por definição, coexistir ao lado de um regime de ocupação, apartheid e supremacia, não só inevitavelmente nos encontraremos novamente lutando contra uma ditadura, mas da próxima vez, essa ditadura será muito mais violenta e desinibida.

Confira o texto original

Orly Noy é editora da Local Call, ativista político e tradutora de poesia e prosa em farsi. Ela é a presidente do Conselho Executivo da B’Tselem e ativista do partido político Balad [de Israel]. Sua escrita lida com as linhas que se cruzam e definem sua identidade como Mizrahi (3), uma esquerdista feminina, uma mulher, uma migrante temporária que habita  dentro de uma imigrante perpétua, e o diálogo constante entre elas.
NOTAS

1 Na segunda-feira, 27 de abril, ao redor de 20h no horário israelense, Netanyahu confirmou o congelamento temporário da reforma do judiciário durante o recesso do Parlamento, que termina em 13 de abril (https://www.haaretz.com/israel-news/2023-03-27/ty-article/.premium/netanyahu-announces-freeze-to-judicial-overhaul-as-general-strike-shutters-israel/00000187-22bb-d7c4-ab8f-febf8f980000)
2 Protestos realizados em 2020-2021 contra o mandato anterior de Netanyahu, que receberam este nome por se concentrarem em torno da Residência Oficial do Primeiro-Ministro, na rua Balfour, em Jerusalém.
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