O tal “calvo do Campari” provavelmente não oferece risco real às pessoas. Mesmo mandando mensagens em tom ameaçador, o perfil desse sujeito é muito diferente dos doentes que promovem tiroteios em escolas. Mas o que um tem a ver com outro?
A exposição do influenciador digital que fez um comentário machista e ridículo sobre um flerte jogou luz a um problema antigo. A rede que ataca mulheres na Internet é sofisticada. Inclusive se organizando em camadas para atrair mais gente. O Iceberg Incel é um dos maiores perigos do mundo digital.
Eles estão ativos desde os primórdios da Internet
Os mais jovens dificilmente vão entender o que era a Internet dos anos 2000. O acesso era feito pelos computadores, os smartphones só se popularizaram depois. Qualquer série ou filme poderia ser baixado de graça no Megaupload. Os chamados “internautas” procuravam conteúdo “navegando” de site em site.
Muita besteira se espalhava nas listas de e-mails ou no “Orkut”, primeira rede social que ficou popular no Brasil. Vídeos e músicas com um humor escatológico e violento viralizavam muito rápido. Não existia a ditadura dos algoritmos, tudo era repassado de pessoa para pessoa. Muitos dos que espalhavam esses conteúdos eram apenas curiosos que achavam o máximo ver coisas que jamais passaria na televisão.
Mas já existia o chorume ideológico que iria “politizar” a curiosidade mórbida de uma juventude deslumbrada com a diversidade de conteúdo da Internet. Olavo de Carvalho publicava seus primeiros textos já naquela época. O antipetismo tomava conta da comunidade “Brasil” do Orkut, com mais de um milhão de participantes. E os “masculinistas” faziam suas primeiras vítimas.
Em 2005, um jovem chocou Brasília ao ameaçar estudantes de sociologia da UnB, especialmente as mulheres. Foi a primeira vez que a “zueira” da Internet deu em caso criminal. Depois se descobriu que o sujeito era parte de uma rede de homens que descontavam suas frustrações em pessoas do gênero feminino.
Em 2011, a violência foi para o mundo real. Um jovem fez um massacre em uma escola no Realengo, bairro do Rio de Janeiro. A violência foi especialmente dirigida às meninas. Foi aí que ficaram famosos os “chans”, fóruns em que o usuário permanece anônimo e as mensagens podem ter pouca duração. Era a festa de quem espalhava pornografia infantil ou planejava atentados. E de quem queria recrutar pessoas doentes para uma cruzada antifeminista.
A blogueira Lola Aranovich sofre ameaças desde essa época. Ela foi alvo dos “homini sanctus” e dos jovens que eles inspiravam. Eles eram violentos, antissociais e alguns tinham simpatias por coisas como nazismo e pedofilia. Ou seja, não havia a menor possibilidade de eles conquistarem um público amplo. Mas a rede machista da internet passou a usar uma tática que, devemos reconhecer, foi bem inteligente e bem aplicada.
Os algoritmos ajudam a radicalizar as pessoas
Em um vídeo que viralizou recentemente no TikTok, um adolescente dá uma flor a uma menina da mesma idade. Ele se abaixa para amarrar o sapato, pega a flor e vai embora. A menina fica com cara de tacho. Pode parecer só uma besteira de um menino imaturo, não é?
O vídeo é parte da primeira camada do Iceberg Incel. Aquela que em não há apologia à violência e a exposição das frustrações masculinas pode até despertar empatia nos desavisados. Em um vídeo, é dito que o homem não pode criar dependência emocional em seus relacionamentos. Outro sugere que, ao descobrir uma traição, o homem deve terminar o namoro. E por aí vai.
Mas se olharmos as hashtags desses vídeos, vemos que tudo é parte da primeira camada do Iceberg Incel. As hashtags são palavras chave que ajudam os algoritmos das redes sociais a “entender” os gostos das pessoas. Se alguém ouve vídeos sobre a banda Iron Maiden e nesse conteúdo tem a hashtag #heavymetal, o algoritmo vai registrar que o usuário gosta deste estilo musical.
É aí que a manipulação começa. O usuário começa a receber não apenas vídeos sobre Iron Maiden, mas também sobre a banda Cannibal Corpse, que tem um ritmo mais frenético e fala de temas mais sombrios em suas letras. O maldito algoritmo sabe que o usuário quer algo parecido com o que já curtiu, compartilhou e comentou. Mas o conteúdo deve ser cada vez mais intenso para manter o usuário na rede social.
Os masculinistas de Internet sabem disso. Por isso propagam seu conteúdo em um iceberg. Por exemplo, um homem que acabou de terminar um relacionamento curte um vídeo com a mensagem “siga em frente, você vai superar”. Mas aí o vídeo tem a hashtag #redpill, um emoji com uma imagem de copo de vinho e outro emoji com um Moal da Ilha de Páscoa. São símbolos que vão levar esse homem a conteúdos mais agressivos.
As camadas do Iceberg Incel
A primeira camada é apenas chamariz para criar engajamento com as hashtags e servir de porta de entrada para conteúdos mais machistas. Na segunda, o sujeito já vai se deparar com o discurso “redpill”, que coloca nas mulheres e no feminismo a culpa pelas frustrações masculinas.
Os defensores da “redpill” dizem que os homens são “feitos de otários” ao demonstrarem afeto por mulheres. Por isso, devem “tomar a pílula vermelha”, se livrando da “Matrix” que é o romantismo. Para esses influenciadores, o homem tem que ter uma postura autoritária para manter a mulher “na linha”. O tal “calvo do Campari” está nessa turma.
Ele é um dos pick-up artists, ou “artistas da sedução”. Alguns ficam ricos vendendo cursos com “técnicas” para um homem conseguir abordar uma mulher. Nessa camada do iceberg, ainda há uma preocupação em não fazer nada que possa dar em processo criminal. Mas o discurso de ódio já é bem presente.
O sujeito que viu vídeos do “calvo do Campari” às vezes não fica mais chocado com esse tipo de conteúdo e precisa de algo mais intenso para continuar preso na rede social. Aí o algoritmo vai entregar a ele algo sobre “MGTOW”. É uma sigla que quer dizer “Men Going on The Own Way”, ou “homens seguindo seu próprio caminho”. Esses aí já desistiram de ter uma relação funcional com as mulheres. Alguns pregam que o sexo só é compensatório se for com uma prostituta ou em um relacionamento de curta duração. A apologia à violência contra as mulheres já aparece, mas, na maioria das vezes, de forma implícita.
Se o sujeito que já está viciado nesse tipo de conteúdo realmente for um doente procurando por seus semelhantes, ele chega a conteúdos sobre incels. São os que não conseguem ter nenhum contato sexual com mulheres. Por isso usam o termo, que é uma simplificação de “involuntary celibates”, ou celibatários involuntários.
Aí a coisa começa a ficar mais perigosa. Os incels não apenas descarregam suas frustrações nas redes sociais. Eles promovem ataques reais. Alguns têm conhecimento de informática e podem, por exemplo, roubar dados bancários de mulheres, especialmente feministas. Outros se organizam para fazer ameaças em massa. E tem aqueles que acabam indo para escolas assassinar pessoas.
Mas isso ainda não é o que existe de pior no Iceberg Incel. Os “homini sanctus”, que lá nos anos 2000 se organizavam para ameaçar feministas de morte, são exemplos do que a Internet tem de pior. Na camada onde eles se encontram, é comum o uso do fundamentalismo cristão. Na intepretação que essa gente tem da Bíblia, a mulher deve ser escrava do homem. Eles também falam do resgate de um passado idealizado, onde o gênero feminino estava no seu “devido lugar”.
Masculinidade exagerada e resgate de um passado idealizado são duas características do fascismo. E nessa camada, coisas como a defesa de Hitler, memes tirando sarro da morte de Marielle Franco, a apologia às torturas contra mulheres grávidas na Ditadura Militar, entre outras coisas, são bem comuns. Os psicopatas assumidos se reúnem nesse fundo do poço. Mas os conteúdos que eles produzem podem chegar a um público maior por meio das camadas mais superficiais do iceberg.
O Iceberg Incel é uma sofisticada rede de conteúdos de mídia que trabalha em cima de um ideal de masculinidade que já existia na vida real. Os masculinistas da internet não inventaram o machismo. Mas o usam para recrutar um exército de fanáticos. E são ajudados pelos algoritmos das redes sociais.
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